A certeza

 

CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo


Conto


Vivo com a certeza que não há motivos para ter dúvidas.
Frei Bernard Monterrayo

 

1

Odeio as minhas mãos, e a única vantagem que tenho sobre elas é nenhum dos meus atos ser um ato lógico.

Não fosse isso, há muito estaria morto.

 

2

Não gosto da minha casa.

Herdei-a dos meus pais, que a herdaram dos meus avós, agora é minha, mas não gosto dela.

Não é velha, é apenas antiga, três andares e um sótão, mas mesmo assim não gosto dela.

Tem demasiadas portas e janelas.

Em vez da casa que é, com tantas portas e janelas, preferia que fosse uma prisão.

Um calabouço sem portas e sem janelas, e que eu nunca pudesse sair dele.

Só que a minha casa tem demasiadas portas e janelas, e não é um calabouço.

É uma casa com demasiadas portas e janelas, e uma das portas dá para a rua e tem uma chave que a abre e que eu carrego pendurada no meu chaveiro.

Também não gosto do meu chaveiro.

Já não é o que a minha mãe me deu, e o meu pai nunca me deu nenhum.

Este comprei-o quando a minha mãe morreu, mas também não gosto dele.

Uso-o só porque sou obrigado a usá-lo.

É nele que está pendurada a chave que abre a porta da rua, e mesmo que não queira, uso-a todas as noites.

Todas as noites as minhas mãos pegam nela, metem-na na fechadura, rodam-na, abrem a porta, e eu saio da minha casa.

Obrigado, mas saio.

Se não sair, não posso fechar a porta que as minhas mãos abriram, e eu não gosto de portas abertas.

Principalmente a porta por onde nunca ninguém entra a não ser eu.

 

3

Todas as noites saio da minha casa, mas as minhas saídas nunca mudam.

São sempre as mesmas.

Dou sempre os mesmos passos, vou sempre pelas mesmas ruas, subo e desço sempre os mesmos passeios, dobro sempre as mesmas esquinas, e cruzo sempre com as mesmas pessoas.

Todas as noites vou pelas mesmas ruas, subo o desço os mesmos passeios, dobro as mesmas esquinas, e cruzo com as mesmas pessoas.

Todas as noites nos cruzamos, mas nenhuma delas me conhece, e eu também não as conheço.

Nenhuma delas para para conversar comigo, e eu também não paro para conversar com qualquer delas, ou sequer cumprimentá-las.

Cruzamo-nos como se nunca saíssemos, nos víssemos ou nos cruzássemos.

As minhas mãos não deixam.

Nunca se aproximam de ninguém, e também não me deixam aproximar seja de quem for.

As pessoas passam por mim e eu passo por elas, mas é como se nunca saíssemos, nos víssemos ou nos cruzássemos.

Eu passo, e elas também passam.

Todas as noites eu passo por elas, e elas passam por mim, mas passamos como se nunca saíssemos, nos víssemos ou nos cruzássemos.

A distância entre nós é sempre a mesma, e embora eu não queira que seja, não consigo diminui-la.

As minhas mãos não deixam.

Nunca cumprimentam ninguém, e por isso também nunca ninguém me cumprimenta.

 

4

Faz pouco mais de meia hora que saí da minha casa, e já dobrei cinco esquinas.

Todas as noites dobro cinco esquinas.

A primeira ao sair de casa, a segunda um pouco mais distante, a terceira mais de quinhentos metros à frente, a quarta logo a seguir, e a quinta já no centro da cidade.

Sei que a próxima fica a menos de cem metros, quase junto ao rio, e não quero dobrá-la.

Hoje não quero dobrá-la.

Sinto-me cansado, e quero voltar para casa.

Hoje não quero andar mais, quero voltar para casa.

Estou no meio do passeio, já no centro da cidade, e paro.

Estou cansado, e quero voltar para casa.

Mas não posso.

As minhas mãos não deixam.

Cravam as unhas nas minhas coxas e obrigam-me a continuar andando.

Sempre que eu paro, seja qual for a esquina que tenha dobrado, as minhas mãos enfurecem-se e cravam as unhas nas minhas coxas.

Tento tirá-las dos bolsos, mas elas recusam-se a sair.

Cravam as unhas nas minhas coxas com mais força, e obrigam-me a continuar andando.

Dói, e eu sou obrigado a andar.

E ando.

Ando, mas sempre me perguntando. Por que é que as minhas mãos fazem isto sempre que eu paro, e sempre entre duas esquinas?

Será porque elas não querem que eu morra, parado entre duas esquinas, ou será porque elas querem ver o que está depois da próxima?

Não sei.

 

5

As minhas mãos são terríveis.

Conheço-as desde que nasci, e sempre foram o que são hoje.

Cruéis.

Absolutamente impiedosas.

Todas as noites pegam a chave da porta da rua no meu chaveiro, e obrigam-me a sair de casa.

Todas as noites me obrigam a sair de casa.

Todas.

Obrigam-me a sair, e a andar.

A andar sempre pelas mesmas ruas e a dobrar sempre as mesmas esquinas.

Conhecem-nas todas, mas mesmo conhecendo-as, todas as noites me obrigam a percorrê-las.

Sabem o que está depois da próxima, dobram-na todas as noites, mas não se importam que depois dela haja outra, e depois da outra haja outra, e outra, e ainda mais outra.

Para elas não importa se eu não quero sair de casa.

Para elas só importa o que elas querem.

E o que elas querem é que eu saia de casa, ande, e não pare.

Nunca pare.

E eu ando.

Ando, e por mais que pense, nunca consegui entender por que é que as minhas mãos querem que eu ande, e nunca pare.

Todas as noites penso nisso enquanto ando, mas de nada vale pensar.

As minhas mãos obrigam-me, e eu tenho que andar, e não parar.

Se parar, elas cravam as unhas nas minhas coxas, dói, e eu sou obrigado a andar.

 

6

Logo que começo a andar, as minhas mãos não cravam mais as unhas nas minhas coxas.

Tranquilas, imobilizam-se, confiantes no poder que têm sobre mim.

Só que eu conheço-as, e sei que o momento de as tirar dos bolsos e de as obrigar a obedecerem-me há de chegar.

Olho a próxima esquina, já a menos de cinquenta metros, quase junto ao rio, e continuo a andar, como se andar, mesmo obrigado por elas, fosse um prazer.

Eu sei que é preciso que elas continuem a pensar que eu não sei o que elas pensam.

Se elas não souberem, continuarão confiantes no seu poder, e eu poderei dominá-las.

Não sei quantos minutos passaram, não posso olhar o relógio, mas não me importo.

O importante é que elas continuem imóveis, confiantes, e eu possa tirá-las dos bolsos.

Sinto o dedo indicador da mão direita a querer mexer-se.

É agora.

Antes que se mexa mais, num gesto rápido tiro-as dos bolsos.

Apanhadas de surpresa, não têm tempo de reagir, e olham-me, desesperadas.

Deixo-as cair ao longo do corpo, paro, e sorrio, satisfeito, a gozar o prazer da minha vitória.

Com elas dominadas, começo a andar.

Mas o meu andar agora é diferente.

Agora eu ando porque quero, não porque as minhas mãos querem que eu ande.

 

7

Calmo, tranquilo, penso no que fazer.

Agora o comando é meu, e as minhas mãos farão o que eu quiser.

Paro, e obrigo-as a tirarem o cachimbo do bolso.

As minhas mãos estão furiosas por terem sido apanhadas de surpresa, mas agora o comando é meu.

Obrigo-as a tirarem também a bolsa do tabaco, e a encherem o cachimbo.

Elas tremem de raiva, mas eu não ligo.

Agora são elas que têm que fazer o que eu quiser.

O comando é meu.

Devagar, com calma, obrigo-as a guardarem a bolsa do tabaco e a pegarem a caixa dos fósforos, a abri-la, a acenderem um, e olho a minha mão direita.

Vejo-a tremer, furiosa por não ter conseguido escapar ao meu comando, mas não me importo.

Agora, com ela já dominada, posso olhá-la a segurar o fósforo aceso.

Sei que é a minha mão direita, porque é ela que sempre segura os fósforos que acendem o meu cachimbo.

Satisfeito por tê-la dominado, olho-a e penso. Será que as minhas mãos, que sempre, sem eu querer, me obrigam a sair de casa e a andar todas as noites por estas ruas a dobrar esquinas, também terão mãos que as obriguem a andar como eu ando?

Não consigo encontrar uma resposta, mas não me importo.

O importante, agora, é que as minhas mãos já não conseguem obrigar-me a fazer o que eu não quero.

Agora o comando é meu, e elas é que são obrigadas a obedecerem-me.

 

8

Odeio as minhas mãos.

Tenho a certeza que se não as vigiasse constantemente, elas me matariam.

Muitas vezes, sem eu querer, elas começam a agitar-se e a quererem subir pelo meu peito.

Só que antes de chegarem ao meu pescoço, meto-as nos bolsos das calças, como meto ao levantar-me, nos bolsos do casaco, o cachimbo, a bolsa do tabaco, a caixa dos fósforos, a carteira e o chaveiro.

Elas ficam furiosas, e em represália agitam-se ainda mais.

As minhas mãos são terríveis.

Cruéis.

Absolutamente impiedosas.

Só deixam de se agitar quando acham que devem.

Por isso, é que eu tenho a certeza que se não as vigiasse constantemente, elas me matariam.

Eu odeio as minhas mãos, mas elas também me odeiam.

E como me odeiam!

Todas as noites, quando me obrigam a sair de casa, andam sempre na minha frente.

Mas eu sei que mesmo andando sempre na minha frente, mesmo vendo coisas que eu não vejo, mesmo escutando conversas que eu não escuto, as minhas mãos não conseguem separar-se do meu corpo.

Por mais que se afastem, por mais longe que possam ir, por mais independentes que sejam, eu sei que elas sabem que não conseguem separar-se do meu corpo.

E é por isso que elas me odeiam.

 

9

Nunca adormeço antes das minhas mãos.

Depois que descobri o que elas são capazes de fazer quando começam a agitar-se e a quererem subir pelo meu peito, se adormecesse antes delas, tenho a certeza que nunca mais acordaria.

Elas me matariam.

As minhas mãos são terríveis.

Cruéis.

Absolutamente impiedosas.

E é por saber disso que ainda vivo, embora passe noites e noites acordado, à espera que elas adormeçam.

Mas elas também se vingam dessa minha vigilância.

Todas as noites abrem a porta da minha casa, e obrigam-me a sair.

E eu saio, e rua após rua, esquina após esquina, só pelo prazer de se vingarem da minha vigilância, as minhas mãos me violentam.

Além de cravarem as unhas nas minhas coxas quando eu paro no meio de um passeio, ainda me forçam a conhecer a presença das coisas que me cercam.

É por meio das minhas mãos que eu conheço tudo que me cerca.

As paredes dos edifícios, os automóveis estacionados junto dos passeios, os troncos das árvores, os bancos onde me sento, a casa onde moro, ou até o vidro mal lavado dos copos onde tomo os meus brandies Macieira.

A única coisa que as minhas mãos não me obrigam a conhecer são as pessoas com quem cruzo.

De resto, tudo eu conheço através delas.

E eu sei porquê.

Porque cercado de coisas, as minhas mãos sabem que o meu mundo interior fica menor.

 

10

Odeio as minhas mãos.

Se não fossem elas o meu mundo seria outro.

Nele não existiriam paredes, troncos de árvores, automóveis, cachimbos, copos mal lavados, nada a não ser eu.

Nem sequer a casa de onde elas me obrigam a sair todas as noites.

Mas eu também me vingo.

Mesmo sem vontade de fumar, agora que consegui apanhá-las de surpresa, obrigo-as a tirarem o cachimbo do bolso, a tirarem a bolsa do tabaco, a enchê-lo, a pegarem a caixa dos fósforos e a acenderem um.

A boquilha do cachimbo está na minha boca, o fósforo já está aceso, mas eu não vou fumar.

Tudo que as obriguei a fazer, tirarem o cachimbo do bolso, tirarem a bolsa do tabaco, enchê-lo, metê-lo na minha boca, pegarem a caixa dos fósforos e acenderem um, tudo isto não passou de um pretexto para me vingar.

Deixar o fósforo arder até ao fim, e queimar os dedos delas.

Castigá-las.

Só que elas não sabem disso.

Felizmente, as minhas mãos agem sempre como se tudo tivesse, obrigatoriamente, uma sequência lógica.

Para elas, eu obrigá-las a tirarem o cachimbo do bolso, a tirarem a bolsa do tabaco, a enchê-lo, a metê-lo na minha boca, a pegarem a caixa dos fósforos e a acenderem um, só pode ter um significado lógico.

Eu querer fumar.

Mas eu não vou fumar.

Posso obrigá-las a tirarem o cachimbo do bolso, a tirarem a bolsa do tabaco, a enchê-lo, a metê-lo na minha boca, a pegarem a caixa dos fósforos, a acenderem um, e não fumar.

A única vantagem que eu tenho sobre as minhas mãos é nenhum dos meus atos ser um ato lógico.

Não fosse isso, há muito estaria morto.

 

11

Agora, como sempre faço quando vou fumar, foi a minha mão direita que acendeu o fósforo.

Acendeu-o, e eu sei que ela está a pensar que este fósforo que está a arder e já quase queima os dedos dela, foi aceso para acender o meu cachimbo.

Mas não foi.

Eu nunca digo às minhas mãos o que quero que elas façam quando as consigo dominar.

Por isso, nem a direita, que acendeu o fósforo, nem a esquerda, que segurou a caixa, sabem que não vou fumar.

Para elas, se tirarem o cachimbo do bolso, tirarem a bolsa do tabaco, enchê-lo, metê-lo na minha boca, pegarem a caixa dos fósforos e acenderem um foi um ato absolutamente lógico, eu também só posso agir com uma lógica perfeitamente absoluta.

Para as minhas mãos todos os meus atos têm que ser absolutamente lógicos.

Se elas tiraram o cachimbo do bolso, se tiraram a bolsa do tabaco, se o encheram, se o meteram na minha boca, se pegaram a caixa dos fósforos e acenderam um, para as minhas mãos eu só posso querer fumar.

Cometer um ato lógico.

Absolutamente lógico.

Por isso, não estão preocupadas e fazem o que eu quero que façam.

Que a mão direita continue a segurar o fósforo, e a esquerda faça uma concha para que o vento não o apague.

Mas eu não vou fumar.

Vou castigá-las.

Eu sei que quando a chama do fósforo começar a queimar os dedos da minha mão direita, eu também vou sentir dor.

Mas ela vai senti-la primeiro do que eu, e esse será o seu castigo.

 

12

O fósforo já está a queimar os dedos da minha mão direita, mas eu tenho prazer em sentir a queimadura.

Ela sentiu-a primeiro do que eu, sofreu antes de mim, e esse foi o seu castigo.

A minha vingação.


Cunha de Leiradella

E-mail – leiradella@sapo.pt


revista triplov

INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA

Portugal / junho 2021