Sombras da meridiana clareza

 

AMADEU BAPTISTA


Por António Cabrita

 

Um poeta faz 25 anos de edição e realiza uma antologia pessoal. Profusa, como de resto a sua obra, expõe linhas de força, núcleos temáticos, plasmados com vitalidade, fôlego e um ecletismo de processos descoroçoantes. São 25 anos de trabalho, de uma dedicação exclusiva. Não importa aqui situar o poeta em qualquer ranking – trata-se aliás de um poeta que se exprime compulsivamente, por necessidade interior. O que interessa é a probidade, o fazer operário, a incansável entrega a um labor. Chega um crítico (que ainda por cima é poeta) e sob a pressão do espaço e do tempo faz  um fresco ligeirinho.

O crítico parece dizer bem, mas manifesta várias desatenções e algum desconforto, ilustrado em pequenas farpas cirúrgicas, aqui e ali, que fazem pensar se o crítico não escreveu apesar de si próprio, arreliado pela persistência do autor, um moscardo flamejante que zumbe e desassossega.

Falo de Amadeu Baptista, que saiu com uma antologia pessoal de 260 páginas, Antecedentes Criminais / Quasi, 2007, e da crítica que lhe fez Eduardo Pitta no Público, no dia 8.

Vamos aos factos. Escreve Pitta: «escrevendo sobre Negrume, de 2006 – livro que esta antologia recupera na íntegra -, um ensaísta exigente como Luís Adriano Carlos  sublinhou a “dilaceração tumultuosa da consciência face à contradição quotidiana de quem habita níveis existenciais não comunicantes”». Não sei o que pensará a exigência de Luís Adriano Carlos face ao deslocamento que o seu excerto sofreu do prefácio de Poesia Digital  para uma suposta recensão a Negrume que nunca escreveu, mas os 25 anos do poeta pediam um bocadinho mais de rigor e não este artifício de escriba pressionado pelo tempo, pelo espaço, pelo seu imago.

Adiante, escreve Pitta: «Nenhuma ambiguidade perturba o discurso do poeta, que aconselho com proveito aos arautos do “real absoluto”. Por falar em real convém lembrar que uma das formas de que Amadeu Baptista se serve para o pôr em pauta tem que ver com enunciados de natureza sexual explícita, embora a parcimónia da actual recolha pareça desmentir a asserção. Do meu ponto de vista, livros como a Noite Ismaelita (2000) e A Construção de Nínive (2001) estão insuficientemente representados, por oposição a Arte do Regresso (1999) e Paixão (2003) mas uma antologia pessoal é o lugar por excelência da idiossincrasia, e seria fútil insistir na perspectiva do crítico». E seria fútil exactamente por reveladora das idiossincrasias do crítico, pois que acrescentar se A Construção de Nínive é publicado em Antecedentes Criminais na íntegra? Sentiu o Pitta falta de algum coito? Por outro lado, o texto dá a impressão de que A Noite Ismaelita é outro texto recheado de kamasutra. Ora, nos antípodas, é um livro quase místico de inspiração sufi e onde ao contrário do anterior não há alusão ao golpe e contra-golpe do sexo.

Ademais, será legítimo fixar para um poeta tão plural uma imagem redutora e distorcida? O poeta adora sexo (e quem não?) e declara-o com à vontade e persuasão retórica. Usando a mesma veemência com que navega na infância, numa escrita contemplativa, na religiosidade, na pintura, na música: experiência estética de que dá amplo testemunho. A sexualidade explícita – já que estamos a falar em medidas – é uma parte ínfima da sua obra, dominada isso sim pelo erotismo, por uma sensualidade a que não se furta nem o seu (irregular) pendor místico. As coisas (o sagrado e o profano) estão nele tão interligadas que inclusive o poema que dá título a A Construção de Nínive (o tal da sexualidade “desenfreada”) é colocado (nesta antologia sem separadores, cortinas ou títulos de livros, como assinala Pitta) a anteceder os poemas de Paixão, um livro de inspiração bíblica, de modo a que possamos sentir a sua ressonância salomónica. Amadeu Baptista dá as chaves. O que não é habitual é um poeta manifestar-se num espectro tão amplo e isso, admite Pitta, chateia à «poesia de sabor único» (Pessoa) que hoje agrega tantos militantes.

Voltando a Pitta, lê-se: «Se tivermos de escolher uma palavra para caracterizar a obra de Amadeu Baptista, essa palavra seria catarse. Isso explicará o desacerto da recepção crítica, por oposição ao sucesso de obras “lisas”, isto é, não problemáticas.  Antecedentes Criminais prova que o ónus é equivalente à aspereza do discurso». Apesar do acerto de contrapor ao  sucesso momentâneo da lisura de alguns a injustiça do relativo silêncio (comparativamente) a que a obra de Amadeu Baptista tem estado sujeita, pois dá muito mais trabalho a perspectivar, este parágrafo enferma de equívocos e lugares-comuns.

Primeiro, a catarse. Não se deve menosprezar a inteligência dos autores. Amadeu Baptista compreendeu cedo que a catarse é impossível ou é de um inacabamento que  enquistou na aporia. A sua é, sim, uma poesia pejada de pathos, mas não esqueçamos o papel de uma poderosa estratégia de fingimento que neste poeta propende a uma nunca referida pulsão dramatúrgica. Com outra propriedade escreveu Baptista-Bastos (um não poeta) sobre a antologia, quando a apresentou na Fnac: «O poeta fala de si para se aproximar das emoções do outro (…) Não é porém uma poética do testemunho, mas sim, a definição, muito singular, da nossa posição existencial (…) no seu bojo, contém-se uma subtil convocação da experiência – e da experiência tornada consciência.» O que se amplifica na seguinte advertência de Deleuze «Escrever não é contar as lembranças, as viagens, os amores, os lutos, sonhos e fantasmas. Ninguém escreve com as suas neuroses. (…) A literatura só se afirma se descobre sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal.» Daí que Amadeu consiga ser blasfemo e perseguir o sublime, consiga ser metafórico e descritivo, ser subtil e ser directo, capaz de moldar-se ao soneto e de expandir-se no poema longo: a sua experiência de escrita trasladou o vivido para o orbe de um impessoal, e agora joga com os géneros. Quanto à sua ‘neurose’ é a mesma que demanda Bernardo Soares quando aspira a “ver o polícia como Deus o vê” – lugar onde a catarse é de há muito uma categoria abandonada. Pode ser sido até pretexto mas já não é de todo o seu telos.

Segundo, não há em Amadeu Baptista aspereza de discurso, há é temas que exigem uma linguagem menos pura, menos poética – ainda que pareça paradoxal, às vezes o não-poético é o mais poético.

Por fim, uma afirmação com ar de ditame, sobre a propensão de Amadeu para o poema longo: «Rosto Soberano (…) dá a medida da especial apetência do autor pelo discurso torrencial, com os riscos correlatos da metaforização, da acumulação de materiais e do eco retórico que uma e outra produzem. Prefiro o registo vigiado dos sonetos, mais conformes a uma prosódia segura». Não interessava antes saber se, corridos os riscos correlatos, o autor leva a tarefa a bom porto, em vez da preferência do crítico? Os textos longos funcionam e resultam, são desenvoltos, arejados, mantêm a tensão da escrita, ou não? O que é uma prosódia segura? Mede-se tal pelo menor quociente de riscos? Se Amadeu demonstra ser capaz de pequenas escaramuças (a prosódia segura), que pode impedi-lo de empreender grandes batalhas? O sentido de medida do crítico? Segura no mesmo sentido em que uma mãe galinha diz ao seu filho que não deve sair à rua? Será um crime, adquirida a técnica, preferir os riscos ao capitoné da prosódia? A poesia deve ser analisada a partir do que é e expõe ou a partir de um suposto dever ser e de moldes pré-formatados? Tenho de aceitar Ungaretti contra Pere Gimferrer? Larking contra Ted Hughes? O fito é reduzir, em vez da abertura? Ora, um poeta conciso e breve como Eduardo Pitta devia saber que só tem fôlego quem pode.

Pitta saberá que eu sei que escrever para os jornais leva a precipitações (e nos jornais pensa-se que se explica a física quântica nos mesmos caracteres com que se anuncia um estrangulamento por ciúmes na Rua do Norte), a confiar-se demasiado na opinião (primeiro passo para a idiotia, pecado que foi também o meu tantas vezes), mas como poeta compreenderá que uma obra que levou 25 anos a erguer não devia ser observada com olhos de sono.»

 

António Cabrita – sobre ‘Antecedentes Criminais’, julho 2017


Revista Triplov . Dezembro de 2024

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