AMADEU BAPTISTA
Por Rosa Alice Branco
Caudal de Relâmpagos é um testemunho de 35 anos de Poesia de Amadeu Baptista. Vale a pena parar um pouco e deixar que as questões e os sentires nos tomem.
No seu livro L’Art, l’éclair de l’être, Henry Maldiney (2003, p.43) afirma que, diferentemente de outras linguagens, o poema, mesmo lido, e ouvido, é sempre articulado pela palavra silenciosa.
Muitas vezes isso é claro para nós (como no Haiku), assim como nos casos em que a nossa atenção se dirige sobretudo para o vazio, que origina o que é dado ver e ouvir, i.e., o pleno.
Quando a estrutura do poema é um soneto, por exemplo, podemos entrever e sentir este silêncio entre uma estrofe e outra, como no poema de Amadeu Baptista: “Soneto exposto” (2015). Talvez Mallarmé tenha sido o expoente máximo de um espaçamento, em que na dimensão espacial se introduz necessariamente uma temporalidade.
Então, no poema, o espaçamento faz parte da articulação da palavra silenciosa. Mas este silêncio espacial pode fazer-nos passar ao lado da essência da afirmação de Maldiney. Veremos como os poemas de Amadeu Baptista articulam o silêncio na palavra, embora à primeira vista tudo o distancie disso.
Para começar, em o Caudal de relâmpagos o próprio título nos dá que pensar, pois um caudal é uma continuidade densa e o relâmpago é um intermitência abundante de luz. É verdade que a intermitência tende aqui para a anulação através do caudal que impele à continuidade.
Porém, os relâmpagos, ainda que caudalosos, não deixarão nunca de ser fulgurações instantâneas e não há nada que possa absorver o seu carácter de cintilação. Depois desta breve analítica, convém perguntarmo-nos de que relâmpagos estamos a falar.
O título, diga-se, está muito bem escolhido. Caudal de Relâmpagos apresenta a obra de Amadeu Baptista, esta Antologia e, de certa forma, o próprio autor que faz jus ao seu aprendizado:
Do livro o final do poema “1961” diz-nos:
Aprendo a ler e a escrever,
quer dizer,
aprendo a sentir com mais força
a desobediência. (2012, Açougue, p. 379).
Há clarões que ao iluminarem mais do que o espaço em que ocorrem nos fazem entrever coerências, mais do que meras ocorrências.
Os poemas não são só um caudal no sentido quantitativo de 500 páginas. Os poemas, em si, são caudalosos, correm muito densamente para um mar que demora a chegar, porque a tortuosidade dos versos adiam o desaguar do poema.
Estamos perante um belo objecto, que se constitui enquanto Antologia Pessoal, incluindo poemas de 35 anos de vida literária, vida esta muito prolixa. De notar que a fotografia da capa é também pessoal, na medida em que é da autoria e escolha de Amadeu Baptista.
Uma antologia pessoal levanta sempre questões, sobretudo respeitantes aos poemas presentes, ou ausentes na Antologia.
Não seria pensável incluir todos os poemas do autor, nem todos os livros, num volume, e talvez nem fosse desejável. Sendo assim, houve escolhas a fazer, tanto mais que Amadeu Baptista escolheu desigualmente poemas dos seus livros. De uns, apenas um poema, de outros, mesmo mais de 10, ou os livros completos.
Há aqui um critério de pertinência que operou esta escolha e esse critério prevê, usualmente, que a escolha balance entre os poemas que correspondem às “afinidades electivas” do autor e os poemas (coincidentes ou não com o primeiro aspecto) que considera representarem melhor aquilo que pensa ser a sua Poética.
Gostaria agora de evidenciar alguns dos operadores mais produtivos na sua Poética, quer do ponto de vista formal, quer no plano dos conteúdos:
Em relação à forma, podemos destacar que:
- os poemas são maioritariamente longos e de verso longo;
- não há normalmente, nem rima, nem métrica (apenas em casos muito esporádicos, como em “soneto exposto”, p.457);
- os poemas parecem quase sempre dirigir-se a um interlocutor, podendo revestir a forma de monólogo e de diálogo;
- as personagens, quaisquer que sejam, são sempre enunciadas em primeira pessoa, ou seja estamos sempre perante o sujeito de enunciação;
- sendo estes poemas narrativos, a dimensão narrativa prolonga-se mais do que é habitual em Poesia.
Na verdade, embora estejamos diante de Poesia, é como se estivéssemos diante de biografias, de romances, como se Amadeu Baptista estivesse a fazer um esquema/guião poético das subsequentes narrativas, embora com a mesma eloquência discursiva dos livros a escrever.
Deste modo, a narrativa poética é densa, esbanja-se pela página, esgrimindo universos completos, embora a completude de um universo não dependa da sua dimensão.
Em Amadeu Baptista, há um diálogo constante entre o autor, outros escritores, pintores, músicos: outras pessoas. Um dos livros intitula-se Poemas de Caravaggio (2008) e em vários poemas do livro o autor entra no registo da Ekphrasis, de que falaremos adiante.
Este diálogo toma formas muito diversas: de homenagem a artistas que admira, de participação e apropriação (no sentido fenomenológico) da vida e da obra de um autor, de recriação, de enfatizar e perpetuar factos e momentos. De eternizar. De criar personagens e vivências para uma obra tão vasta, o que é correlato de precisar desesperadamente de escrever para colmatar as muitas formas de estar vivo. Baptista é um desses escritores que precisa de escrever para sentir que está vivo.
Estes diálogos que enceta, poeticamente, conduzem-nos à capacidade inédita do poeta para se colocar na pele do outro. Mas também o outro possui vidas que intersectam a vida de Amadeu Baptista.
Ou seja, o poeta tem uma capacidade empática, mas diferentemente da definição de empatia, em que o sujeito, ao entrar na pele do outro, deve manter a sua identidade bem distinta, em poemas como O ano da morte de José Saramago (2010), assim, como em outros, não há vidas alheias, mas um concurso de vidas que desagua no poema.
Porém, não esqueçamos de que falamos aqui de uma empatia escrita. E, embora se trate da escrita de um sujeito de enunciação, este expande-se para todo e qualquer enunciado.
Por outro lado, há um factor que podendo ser prejudicial, age aqui em favor do que acabei de dizer.
Estas incursões sobre criadores como Pavese, Cohen (em Desenho de Luzes, 1997), sobre Salgari, Trotsky, Celan (Um pouco acima da Miséria, 2014), Mozart, Verdi (Bosque cintilante, 2007), Van Gogh, Francis Bacon (Doze cantos do mundo, 2009), sobre seja quem for, são resultado, primeiramente, de uma investigação apurada, pelo que são incursões no domínio da História.
E também das histórias, pois o poeta descreve, pormenorizadamente, hábitos, vestes, manias, dores, paisagens. Mas quem narra e quem é narrado? O sujeito de enunciação confunde-se com o seu interlocutor, toma-lhe as dores e os bálsamos que são sempre exíguos. O poeta não se desliga da vida das personagens, que derramam sobre si os segredos que o poema cria a partir de referências cuidadosamente estudadas.
De poemas e versos tão caudalosos e descritivos, que descerram o mais das vezes uma trama articulada, poderia surgir a pergunta: porque os vemos como poemas e não como prosa? Uma das respostas possíveis seria que a narração se torna poema graças ao ritmo e à condensação de todo um universo, mesmo que ocupe várias páginas. Mas não seria uma boa resposta. Em Amadeu Baptista, é o poema que descerra uma história e não o contrário. O poema nunca deixa de ser poema por mais que desafie os caminhos da prosa romanesca. Sempre que o lemos sentimos o punctum barthesiano; o punhal da palavra silenciosa é articulada para que algo do que se não diz possa ser dito e o não dito seja espanto e comunhão: seja poema.
No plano dos conteúdos podemos encontrar como alguns dos aspectos proeminentes:
- a estupefação, que tem como correlato a impotência de um recomeço verdadeiramente novo, embora o poeta se torture a procurá-lo na escrita, como se lê, recorrentemente no livro Arte do Regresso (1997), de que retiro pequeníssimos excertos:
Procuro um texto impossível,
Um outro caminho para a salvação.
Procuro a palavra que nos una definitivamente … (p. 52).
Creio bem ser tarde para recomeçar, mas quero ainda uma palavra (…) Se soubesses a palavra com que te procuro
Talvez o silêncio tivesse outro significado nesta perda
absoluta de mim mesmo…. (p. 56).
- o poeta usa o tom de uma ironia amarga ao escrever a condição precária, em parte causada pela figura alucinante (no sentido psicanalítico) pai, origem do medo que há-de entretecer a sua escrita. O poema “Balada de Neve”, publicado na Revista Hífen, (1988, pp.57-69) apresenta-se como um Ode, escrito pela negativa, à figura do pai:
Quando o pai acorda procuro refúgio nos mais inesperados lugares,
Certa vez procurei refúgio no frigorífico e as minhas lágrimas congelaram,” (p.58).
Este medo, sem refúgio seguro, fica codificado no ADN dos poemas. Como o poeta escreve no poema“1968” (2012. Açougue, p. 383):
À noite,
o adolescente
tem, ainda, um medo subliminar,
- Um outro aspecto recorrente na poética de Amadeu Baptista, é o recurso a textos bíblicos e a alguns mitos primordiais, estes aqui pouco representados. Este aspecto prende-se com o da paixão, (no sentido filosófico e teológico de padecere) uma paixão que é fruto de impotência, quer esta seja obrigada ou assentida.
Este processo é ainda mais penoso, devido a uma insuportável impossibilidade de se desligarem os reinos do humano e do divino, desde a origem:
Este aspecto pode ser ilustrado com dois excertos Do livro Paixão (2003).
No poema “Crucificação”:
(…)
O Pai abandonou-me desde o instante
em que à criação chegou o homem. (p. 141).
No poema “Noli me tangere” é muito clara esta contaminação sem tréguas, entre o humano e o divino:
Tudo o que é humano me atinge,
porque tudo o que é humano é divino. (p.149).
- Este padecer relaciona-se com o recorrente efeito de mágoa que, frequentemente, se desenvolve em revolta:
- a mágoa e a ligação à mãe são dois operadores fundamentais. A mãe aparece, inclusivamente, em poemas que podem ter como objecto um tema completamente diferente;
- deste trauma originário emerge a incapacidade de fazer da infância um lugar de início e de iniciação, e não apenas de perda irremediável. A infância e a mãe estão ligadas e ligam-se entre si no tecido da poética de Amadeu Baptista. Às vezes, um rasto de luz repõe a pureza inicial da infância no mundo, mas de uma forma condicional.
Num excerto de O Ano da morte de José Saramago (2010), lê-se:
Eu era menino
e do que melhor me lembro é da viela do Anjo,
onde o mundo é intacto,
se mundo é o que por lá se vê (p.370).
- Os aspectos apontados permitem compreender que o autor acabe por se sentir estrangeiro de si próprio, até nos lugares de infância, que pareciam imaculados e intocáveis.
Vários livros despenham poeticamente a vida do poeta, desde a sua infância, ou sempre passando sobre a infância e percorrendo a sua vida do ponto de vista da infância e de quem sobre ela escreve, como no poema “A balada de neve” e nos livros: Negrume, Sobre as Imagens, Os Selos da Lituânia, Açougue. Alguns livros parecem escapar ao registo biográfico, mas lá desembocam. No entanto, não esqueçamos que as nossas biografias são sempre imaginárias. Uma autobiografia poética é duplamente poetizada, porque somos incapazes de não interpretar, de não ter uma outra perspectiva. Entre o que se vive e o que se escreve há uma travessia mais impossível do que a travessia entre o visível e o dizível, tematizada por Michel Foucault, em As palavras e as coisas.
E estas travessias fazem-nos entrar no registo da Ekphrasis, pois que também Amadeu Baptista tenta, de uma certa forma, dizer a pintura. O poeta lembra muito Diderot tentando dar a ver o que está num quadro, por exemplo, nos quadros do seu pintor de eleição, Caspar David Friedrich. Mas Diderot descreve-se inconsolável, por não ser capaz de tal proeza, julgando-se inábil.
De facto, o registo da vida não é comensurável com o da escrita, embora as referências sejam objectivas, assim como alguns sentimentos e as suas causas.
Por isso há um momento de lucidez, ou suficientemente afastado no tempo em que o poeta nota com extrema amargura em O Ano da morte de José Saramago:
Ontem vi a nossa cidade como se não fosse minha,
(…)
e eu vi-me como sempre me vi,
mais um estrangeiro no cenário familiar,
nem a minha casa fui, (p.362)
Mesmo nos poemas que poetizam a vida de artistas, de escritores, a mãe e a infância ocupam um papel crucial. São o lugar da mágoa por tudo o que não foi. Uma mágoa tão cheia de ternura, como de incompreensão estupefacta e sem perdão. Como pôde ter sido assim? Onde está o que foi? Se hoje já
a Fonte da Colher passou a ser menos do que uma referência desses dias
em que a hortaliça tolhia os meus passos pequenos
nas íngremes escadas que iam dar à rua do Monte dos Judeus
(…) (O ano da morte de José Saramago, p.353).
Quem sabe, dentro em pouco, o poeta poderá pensar que sonhou esta infância, pensar que sonhou a mãe e tudo a que não era estrangeiro. E que eternidade lhe restará, então, para sofrer na escrita? O poeta tenta encontrar uma luz em que crê e descrê, tenta desesperadamente uma resposta.
Talvez por isso, a obra de Amadeu Baptista seja, na sua globalidade, uma invocação, que pode tomar múltiplas formas, como no poema “Última Geração”:
Dai-nos o nojo, Senhor, essa flor infecta, sanguinolenta e suja
que há-de desabrochar das nossas dores
em tua Glória
e em nome do asco a que fomos submetidos. (1987, p.24).
Qualquer invocação é aqui a profecia do silêncio. Caudal de Relâmpagos, ou a procura incessante de uma hierofania que abra uma nesga por onde respirar a escrita.
(Baptista, Amadeu. Caudal de Relâmpagos Antologia Pessoal 1082 – 2017. Viseu, Edições Esgotadas. 2017.)
Rosa Alice Branco
Revista Triplov . Dezembro de 2024