TRIBUTO AO PROF. GALOPIM DE CARVALHO
O doutoramento
Como já relatei, o meu envolvimento com a Sedimentologia teve início no ano em que, como aluno finalista, comecei a acompanhar o trabalho do então assistente Carlos Romariz, nesse tempo, a preparar a sua tese de doutoramento. Esta consistia no estudo geológico e sedimentológico da região de Soure (Coimbra), essencialmente constituída por rochas sedimentares. Iniciado no terreno com trabalho de cartografia geológica, tal estudo incluía uma extensa componente laboratorial visando a identificação desse tipo de rochas e o seu significado como indicadores dos ambientes onde se tinham formado há muitos milhões de anos. Era a sedimentologia a dar os primeiros passos em Portugal. Anteriormente a esta fase, enquanto que as rochas ígneas tinham inúmeros estudiosos, sendo descritas com todo o detalhe, com observações ao microscópio e análises químicas, as rochas sedimentares eram habitualmente classificadas a olho, sobre o afloramento, no terreno, ou sobre uma amostra aí arrancada a golpes de martelo. Esta dualidade de comportamento está bem patente, por exemplo, nas Notícias Explicativas das Cartas Geológicas de Portugal, na escala de 1/50 000, nas quais as rochas ígneas e, mesmo, as metamórficas eram alvo de tratamento pormenorizado, por petrógrafos experientes, ao passo que, relativamente às rochas sedimentares, e são sempre muitas, não havia esse cuidado. Falava-se de calcários, de areias, de arenitos e de argilas sem especificar as suas particularidades.
Parte do trabalho de laboratório necessário à preparação e estudo das rochas sedimentares colhidas no terreno por aquele meu assistente, hoje professor jubilado, foi-me confiado, como estagiário que comecei a ser do então Centro de Estudos de Geologia Pura e Aplicada da Faculdade de Ciências de Lisboa.
Entre o vasto e diversificado equipamento de laboratório que me foi confiado, havia uma bateria de utensílios de pirex e de porcelana, montados em suportes metálicos e unidos por tubos de borracha, destinada a filtrar as suspensões de argila, com vista a posteriores análises. Admitido a trabalhar como auxiliar de investigação, um privilégio que muito me honrava, tive o azar de, no segundo ou terceiro dia, deixar cair, da bancada ao chão, toda aquela tralha, que se desfez em estilhaços, deitando a perder toda a operação em curso. Foi reduzido à minha insignificância, que dei conhecimento do sucedido ao Dr. Romariz.
– Isso só não acontece a quem nada faz. – Aliviou-me ele, numa frase que não esqueci.
Foi neste estado de encantamento por estar a participar num ramo nascente da geologia[1] que, sem auscultar a minha opinião, o director do Centro me definiu tema de tese (nesse tempo era assim) e me mandou para França, com uma bolsa para estudar briozoários no Institut de Paléontologie do Museun National d’Histoire Naturelle. Um tal tema nada tinha a ver com aquele meu encantamento. Era antes um obstáculo face ao despertar de uma vocação. Como referi, em pormenor, dei cumprimento a esta decisão do professor Teixeira, na perspectiva de, uma vez em Paris, ter a possibilidade de continuar a embrenhar-me no ramo da sedimentologia, propósito que concretizei ao frequentar as aulas do Prof. Pierre Birot, no Institut de Géographie e ao matricular-me no 3ème Cycle de Sedimentologie, na Universidade de Paris. Regressado com esta espécie de mestrado, não foi difícil convencer o meu director, a deixar-me continuar a linha de investigação que ali iniciara. Assim após quatro anos de muito trabalho de campo, de laboratório e de gabinete, apresentei-me às provas de doutoramento na Universidade de Lisboa, no dia 7 de Outubro de 1969, com a dissertação intitulada “Contribuição para o Conhecimento Geológico da Bacia Terciária do Tejo” Esta dissertação foi publicada nas Memórias dos Serviços Geológicos de Portugal, Nova Série, nº 15.
Ver publicada uma tese de doutoramento era um privilégio actualmente vedado às novas gerações, pois os custos das respectivas edições são hoje muito elevados e as disponibilidades financeiras das instituições que as promovem, de reduzidas que são, não o consentem. Nesse tempo havia sempre uma revista científica de uma Faculdade, de um Museu, de um Serviço do Estado ou de uma Sociedade Científica que publicava as poucas teses que então se concluíam. Nos dias que correm, o doutorando processa, ele próprio, no computador, todo o trabalho da dissertação (já não têm a comodidade de dispor de uma dactilógrafa e de um desenhador), imprime-a e manda “encadernar” uma dezena de cópias que distribui entre os cinco membros do júri, restando-lhe umas tantas para depósito na Reitoria, numa ou noutra Fundação que lhe deu apoio e para oferecer a quem mais entender. Este procedimento tem a grande desvantagem de, ao contrário do que era uso no meu tempo, não permitir a conveniente e desejável divulgação dos estudos realizados.
Uma outra grande diferença entre as provas de doutoramento de então, feitas em dois dias seguidos, e as provas de hoje era a obrigatoriedade de o candidato ser interrogado sobre dois temas tirados à sorte de um conjunto de doze, afixados com trinta dias de antecedência, cobrindo a generalidade das disciplinas científicas ministradas ou investigadas no grupo (hoje departamento) a que pertencia a menção do respectivo doutoramento. Esta modalidade, consentânea com uma época que estimulava o eclectismo do docente, não era incompatível com uma especialização num dado domínio. A mim, couberam-me em sorte os temas “Morfologia do Litoral Português Metropolitano – Relação com a Litologia e a Tectónica” e “Corneanas”. No primeiro dia fui interrogado, durante cerca de uma hora, por cada um dos dois professores da Universidade do Porto, Carrington da Costa, no primeiro tema, e Montenegro de Andrade, no segundo. A argumentação da tese, no dia seguinte, coube aos meus dois orientadores, os professores Orlando Ribeiro e Carlos Teixeira.
A argumentação do Prof. Orlando proporcionou um debate vivo, com grande elevação e elegância da sua parte, dando-me oportunidade de defender as minhas convicções. Como era hábito deste ilustre Mestre, para além das pedagógicas discussões que tinha com os seus orientandos, nas visitas que com eles fazia ao terreno, lia com eles o manuscrito, em fase final das respectivas dissertações e aí, uma vez mais, voltava a discutir, dava sugestões, fazia correcções de forma e de conteúdo, e ensinava a escrever em bom português. E foi isso que ele fez comigo, o único não geógrafo entre os muitos que orientou. Na sua argumentação, colocou-me três questões, duas pacíficas, fáceis e rápidas de responder, e uma terceira, visando um tema face ao qual as nossas divergências vinham de trás, relacionadas com um certo tipo de depósitos grosseiros do topo do enchimento detrítico da Bacia do Tejo, muitas vezes referidos por rañas. Discutíramos essa e outras temáticas no terreno, junto dos afloramentos, durante as várias excursões que ali fizemos e, uma vez mais, na fase final da redacção da tese, nas várias tardes que me recebeu na sua casa de Vale de Lobos, frente ao manuscrito que leu com a maior atenção. Eu tinha, pois, razões para crer que o tema das rañas, tão caro aos geógrafos ibéricos, iria estar ali naquele dia e não me enganei. Assim, preparei-me convenientemente, para esse debate que considero o mais agradável de entre os vários em que tive de me envolver.
Com o Prof. Teixeira foi diferente. Como referi atrás, este catedrático era um homem de amores e desamores, nem sempre justo nas suas avaliações, sobrevalorizando os que lhe eram mais queridos, negando valor àqueles que não lhe entrassem no coração ou que dele tivessem saído. Nesse tempo eu estava entre os primeiros e, assim, em vez de argumentar a dissertação que submeti à apreciação do júri, usou o seu tempo de intervenção, falando do meu trabalho, do meu percurso na docência e na investigação, com palavras elogiosas, deixando-me um tanto embaraçado, sem capacidade para lhe responder. Ao dar-me a palavra e uma vez que não me confrontou com qualquer discordância, convidou-me a descrevê-lo, no que gastei sem interrupções o tempo a escoar-se na ampulheta colocada sobre a grande mesa do júri, frente ao Reitor.
Devo acrescentar que, ao contrário dos actuais cinco membros do júri, nesse tempo que foi o meu, para além do Reitor Fernando Barreira, dos professores citados e do Prof. Kurt Jacobsohn, como presidente do júri, eram membros do mesmo, todos os professores catedráticos da Faculdade. É claro que estou a falar de uma época em que o número de doutoramentos por ano se contava pelos dedos de uma mão. Hoje em dia o número destas provas é considerável, impossibilitando aquele ritual bafiento, tão ao gosto dos catedráticos de então, num tempo em que estes formavam grupos, estabeleciam compromissos, faziam e retribuíam favores, contavam espingardas, apadrinhavam uns candidatos e cilindravam outros. Um tempo em que algumas destas provas, ouvia-se dizer cá fora, pelos mais desbocados, eram verdadeiras touradas.
Passados alguns meses, já doutor por extenso, fui promovido a 1º assistente além do quadro o que me habilitava a reger aulas teóricas e me aumentava o vencimento mensal de três mil e duzentos para quatro mil e quinhentos escudos. Um luxo!
[1] – Em Coimbra, Soares de Carvalho, hoje Professor Jubilado da Universidade do Minho, inovara o mesmo ramo de investigação nos anos 40.
Revista Triplov
Tributo a A.M. Galopim de Carvalho – Índice
Portugal . Outubro . 2022