TRIBUTO A ANNABELA RITA
Este texto foi-nos amavelmente cedido por Teolinda Gersão. Trata-se da apresentação aos livros “No Fundo dos Espelhos” e “Labirinto Sensível” de Annabela Rita, levada a cabo no Instituto Camões, Lisboa,em 28.10.03.
É importante realçar o trabalho desta autora e a sua dedicação ao ensaio, um género que tanta falta nos faz num País que necessita de Crítica Literária como meio de divulgar, estudar e analisar o vasto universo da Língua Portuguesa.
Arquivo: http://www.storm-magazine.com/novodb/arqmais.php?id=157&sec=&secn=
Annabela Rita
Por TEOLINDA GERSÃO
É com o maior prazer que hoje apresento dois livros de ensaios de Annabela Rita,ambos de 2003, “No Fundo dos Espelhos” e “Labirinto Sensível”,este último sobre a obra de Casimiro de Brito,seguido de uma Antologia Pessoal do mesmo autor.
Trata-se, neste caso, do volume inaugural de uma colecção de Poesia,que traçará um itinerário pela Poesia Contemporânea de Expressão Portuguesa, Faces de Vénus, a que se seguirá um itinerário paralelo, no campo da ficção. Iniciativa particularmente oportuna, que procura trazer a literatura para mais perto dos leitores, e à qual em boa hora Annabela Rita decidiu lançar-se.
Penso, aliás, que não é o menor dos méritos desta Professora da Universidade de Lisboa,doutorada em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, investigadora do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa e do Centro de Literatura Portuguesa e Brasileira (da Universidade Católica) e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia,(e estes são apenas alguns dos seus dados curriculares) – penso que não é o menor dos seus méritos, dizia eu, a tentativa de levar o interesse pela literatura a um público mais alargado do que o estritamente universitário. Os seus ensaios, sempre rigorosos e apoiados num vasto saber teórico, conseguem todavia não ser herméticos e por isso cativam o público não necessariamente especializado.O que só podemos saudar e aplaudir,porque a literatura é de facto para ser lida por um público vasto (idealmente: por todos,) e não apenas comentada em pequenas tertúlias e círculos relativamente fechados.
Regozijo-me, portanto, com esta iniciativa, e sinto-me muito honrada por apresentar o seu primeiro volume,tanto mais que ele se debruça sobre um poeta que há várias décadas venho lendo e admirando.
Casimiro de Brito tem uma voz pessoal e um percurso sui generis, integralmente fiel a si próprio,indiferente a modas e tendências. A sua poesia é límpida e cada vez mais depurada,mais despojada do acessório e centrada nas suas linhas de força essenciais. Não é por acaso que um seu livro de poemas, “Duas Águas, Um Rio”, surje em co-autoria com António Ramos Rosa : Casimiro é intrinsecamente conivente com este poeta.Assim,também não é de estranhar que um ensaio deste autor se debruce sobre a poesia de Ramos Rosa,e seja ao mesmo tempo uma leitura da sua própria :
“Um sistema poético pode ser tanto mais enigmático e abundante (de propostas) quanto mais se rarefazem os seus materiais.Quanto mais o poeta se aproxima da sombra ou do silêncio”. (Vagabundagem na Poesia de Ramos Rosa,p.10).
A vasta obra de Casimiro utiliza géneros muito diferentes, romance, aforismo, ensaio,polifonia dramática, fragmento, diário,e sobretudo poesia,que está sempre presente e subsume todos os géneros citados.
É uma obra solidária com o seu tempo histórico e com as circunstâncias da sociedade a que pertence (vejam-se por ex.livros como Prática de Escrita em tempo de Revolução, Um Certo País ao Sul, Vietnam. Em Nome da Liberdade, etc).
Desde cedo também Casimiro se interessa pela poesia oriental. Poemas Orientais é de 1962, Zen Zénites, seguido de uma versão de um wu-lu ou aforismo do meu mestre Lien- Tzu é de 1979, Na Via do Mestre é de 2000, À Sombra do Bashô, de 2001.
Talvez tenha influência da sabedoria oriental a sua cada vez maior sabedoria da poesia e da vida,a arte do despojamento,da nudez,do vazio,do “pouco”,do silêncio,do nada.
Ou talvez não seja necessário invocar o oriente e possamos pensar apenas num percurso interno,na depuração que a própria arte traz consigo a quem a pratica desinteressadamente,como os alquimistas,várias vezes citados neste livro,que procuravam,sem interesses mercantis, o ouro da perfeição. (Aliás a ilustração de Annabela Rita escolhida para a capa do livro sugere,a meu ver, uma retorta alquímica). Como a dos alquimistas, a arte de Casimiro tornou-se com o tempo cada vez mais rigorosa e cristalina. Partilho convosco alguns versos,pertencentes a vários poemas, folheando a pequena antologia pessoal que acompanha este livro:
“Apenas invejo os mestres da arte de bem morrer
-as pedras,as árvores,alguns animais-,
coisa que o homem raramente alcança.
…
Ambição suprema: a arte de perder.
….
Só poderás agarrar o mundo
Se tiveres as mãos vazias.
…..
O melhor que escrevo
É quando apago
…
O aforismo é um quase silêncio;uma pegada de gaivota
Na areia da manhã.
….
Eterna é a arte
De dizer o indizível.”
Cito ainda versos de alguns poemas de amor –porque o amor é um dos temas centrais de Casimiro de Brito:
“Entraste na casa do meu corpo,
Desarrumaste as salas todas
E já não sei quem sou,onde estou.
O amor sabe.O amor é um pássaro cego
Que nunca se perde no vazio.
…
Tu
Que não cabes em casa nenhuma
Tu
Que vais leve como as nuvens no outono
Habitas em mim e ouço
O teu perfume a tua
Respiração
Nas rosas que se abrem
E dissipam
No meu poema.”
Poderia continuar, com imenso prazer, o resto da noite, a ler-vos Casimiro. Mas não dispomos de tanto tempo,e por isso passarei a alguns comentários breves sobre o ensaio de Annabela Rita sobre este poeta, Labirinto Sensível, e ao seu outro livro que hoje aqui é lançado, Do Fundo dos Espelhos.
Saliento apenas o que mais me interessou nos dois livros : o olhar. O olhar do leitor sobre as obras,da ensaista sobre os seus objectos.
Este aspecto fascinou-me, porque não se trata de um olhar inocente. Em certo sentido, é um olhar perverso – tal como o do poeta ou ficcionista – porque subverte o senso comum, a superfície, a convenção e a pretensa normalidade das categorias racionais.
E chego a um aspecto, a meu ver central, em Annabela Rita: Encontramos nos seus ensaios, como seria naturalmente de esperar, a bagagem teórica e o instrumental necessário das técnicas de análise literária. Mas encontramos também algo mais,que não vem nos livros e o saber universitário não fornece : Annabela é também pintora, artista plástica, portanto capaz de um outro olhar, que é o olhar do artista. Como está bem patente nos quadros da Exposição hoje aqui inaugurada (onde estão incluídos os dois quadros a partir dos quais se construiram as capas destes livros).
Esse enfoque eminentemente visual parece-me deixar nos seus ensaios marcas profundas. Annabela Rita tem uma maneira muito própria de apreender o aspecto plástico dos textos – de ser sensível ao modo como o autor os encena, ao que neles há de teatral, de cénico, de arquitectónico, de perceber que os textos são também constituídos por dinâmicas de formas num espaço.Como se diz num dado passo,citando Scheffer :”O espaço teatral não tem uma função decorativa,o seu papel é compor um lugar onde a própria representação se torna inteligível”(Labirinto Sensível,p.29).
Este espaço teatral, na sua modalidade pictórica,inclui aspectos como: ponto de vista, perspectiva, profundidade, grande angular fixada no conjunto ou visão próxima de aspectos isolados ou fragmentários, jogos de luz e sombra, cor, espelhos, imagens, interacção das imagens,labirintos e trompe l´oeil dos labirintos e das falsas perspectivas (de que os espelhos são também exemplo),duplos,rostos e máscaras,o espectáculo,finalmente, que os textos também constituem.
Como se diz noutro lugar deste livro, a partir do Renascimento deixámos a cultura da escuta e entrámos na cultura do visual. Annabela não recusa a primeira – coloca-se na posição de escutar o texto literário,isto é, de o deixar acontecer,sem interferir,de respeitar a sua existência em silêncio.
Mas há também um segundo momento,em que ela lê o texto situando-se “na sua própria casa”, procurando as linhas estruturantes que se lhe impõem: estas são,predominantemente, visuais.
Assim, por exemplo, o título do livro cronologicamente primeiro publicado este ano, Do Fundo dos Espelhos, evoca imagens, reflexos e auto-reflexos,e o subtítulo, Incursões na Cena Literária, entende o texto (e a própria literatura) como espectáculo,como teatro onde decorre determinada acção ou sucessão de acções.Os motes ligando ou anunciando os ensaios assemelham-se a didascálias:”Lentamente,o esfumado invade a panorâmica em busca da objectiva e,implosivo,o signo interioriza cada vez mais seus reflexos e seus fantasmas”.
Não é por acaso que os autores que lhe interessam têm frequentemente algo a ver com o mundo do teatro – Garrett que revoluciona o teatro português,Camilo cujos romances põem em cena situações fortemente dramáticas,Eça de Queiroz que é talvez o mais “teatral” dos nossos escritores,porque na sua obra tudo é encenação e teatro (em sentido estrito, a ópera e os teatros ocupam um lugar importante nos seus livros,mas também, em sentido alargado, as reuniões sociais, as recepções nos salões privados,os jantares,os passeios públicos, são formas de teatro, as personagens são postas em cena e nela se movimentam segundo um ritmo e uma dinâmica eminentemente teatrais e todos os pormenores,rigorosamente escolhidos, são os adereços necessários a determinado cenário,sabiamente montado peça a peça).
Ou Cesário Verde, cuja poesia tem uma componente fortemente visual e como tal é apreendida pela leitura de Anabela ,no ensaio “Cesário Verde- do Sentimento às Imagens”.
O aspecto visual em que me centro (e seja-me permito,por isso,não me debruçar aqui sobre os excelentes ensaios dedicados neste livro a outros autores,como Luisa Costa Gomes,António Vera, António Graça de Abreu, Albano Martins e outros) é no entanto ainda mais saliente no ensaio sobre Casimiro de Brito.Labirinto Sensível, lhe chamou a autora,em parte,penso, por paralelismo com Pátria Sensível, e porque Casimiro é um autor eminentemente sensorial,sensual e sensível, e também ele privilegia o visual,como a leitura da sua obra deixa claro.
Labirinto porque as direcções são múltiplas e em constante abertura,como de resto acontece em toda a obra do autor. No projecto inicial, o poeta concebeu o livro como uma obra visual e plástica,escultórica e pictórica,em que os poemas seriam inscritos em placas de madeira,permitindo “a leitura manipuladora e lúdica,de reordenação incessante,favorecendo a re-semantização também sistemática dos poemas-peças”(p. 23).
Labyrinthus, a que o autor chamou “polifonia dramática”, é percorrido por catorze legendas, cada uma definindo um tópico e no conjunto definindo a poética e o pensamento de Casimiro de Brito: o poeta, a vida, o corpo, a mulher, o tempo, a escrita, a terra, o homem, o amor, a obra, o texto, o mar, o escritor, a morte.
Annabela encontra assim em Labyrinthus um guia,um fio de Ariadne para a leitura de toda a obra casimiriana (p. 24) a partir destes tópicos centrais.
Leio-vos a sua proposta inicial,sublinhando o aspecto visual que tenho vindo a afirmar, e ao mesmo tempo como convite a prosseguirem na leitura de todo o livro :
“Lendo Pátria Sensível, uma problemática se me impõe como fulcral. A da perspectiva(c)ção,acto de perspectivar diversamente (segundo diferentes pontos de observação) objectos que podem,por sua vez,ser acções.A perspectivação é,no fundo,o processo cognitivo através do qual o sujeito da escrita reflecte sobre aquilo que funda a sua actividade : o olhar. O acto de olhar institui uma relação entre dois pontos, observador e observado, e, portanto, o distanciamento espacial e/ou temporal necessário para que ela se realize:
“o que pede o olhar é um pouco de distância”
Julgo que a escrita deste texto, a ficção, radica exactamente na perspectiva(c)ção:elegendo-a como problemática básica, quase matricial, o sujeito de escrita tenta compreendê-la: a da teatralização da sua escrita,encenando o próprio olhar e dramatizando a sua identidade.Deste modo,vai-se esboçando no espaço textual a espectacularidade: da reflexividade entre o processo e a sua representação resulta um efeito espectacular auto e hetero fascinador.” (p.31-2).
Termino com a citação de Maurice Blanchot que a autora faz a seguir e que poderia ser entendida como mote a todo este livro:
“Si la fascination est la passion de l´image, écrire c´est disposer le langage sous la fascination”. (p.32)
Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita