Uma nova forma de análise literária

 

TRIBUTO A ANNABELA RITA


UMA NOVA FORMA DE ANÁLISE LITERÁRIA: SAIR PARA FORA DO TEXTO
Por Miguel Real


No âmbito da historiografia e da crítica literárias, não existe passado para os livros de Annabela Rita em Portugal. Do que não existe, como os seus anteriores ensaios, No Fundo dos Espelhos (2 vols., 2003-07), Emergências Estéticas (2006), Itinerário (2009), Cartografias Literárias (2010; São Paulo, 2012), Paisagem & Figuras (2011) e Luz & Sombras do Cânone Literário (2014), integra as categorias clássicas da análise literária, tradicionalmente praticadas, num horizonte estético e cultural mais abrangente do ponto de vista de uma nova análise, pertinente ao século XXI, que designa por inter-artes. Não se trata apenas de dissecar, comentar e aprofundar o texto segundo uma hermenêutica específica, a que o crítico ou historiador dá a sua preferência, de compará-lo intertextualmente segundo o tema ou o estilo ou o complexo linguístico morfossintáctico, de operar relações e analogias entre livros ou obras, processos tradicionais da análise literária, mas, na verdade, de sair para fora do universo exclusivamente gráfico ou escrito, sair para fora do texto.

Aqui começa a revolução operada por Annabela Rita: lendo e analisando o texto, não o eleva a rei e senhor da interpretação, não o torna um “monumento histórico”, fixo, cristalizado, deste partindo e a ele regressando, mas, usando-o como motor caleidoscópico, relaciona-o (1) com os diversos patamares do horizonte estético e cultural da sua época, como o pensamento mítico, o identitário, a pintura, a arquitectura monumental ou histórica, a fotografia, o cinema, os complexos comportamentais ou hábitos e costumes … (2) depois, ou em simultâneo, opera analogias e comparações com outros horizontes estéticos e culturais de épocas diferentes.

Neste sentido, às categorias clássicas de análise textual acrescem, nos ensaios de Annabela Rita, novas categorias provindas de outros patamares estéticos, como a perspectiva, a panorâmica, o travelling, o zoom, o close up, que, aplicados ao texto literário como terreno próprio da ensaísta, não deixa de expandir-se para outras artes (inter-artes), tentando detectar esse quid que define toda a ficção.

Trata-se, portanto, não de enclausurar a literatura no interior da cela da ficção, prosseguindo velhos critérios analíticos, mas de engravidar a literatura pelo contributo (poderoso) das restantes artes, evidenciando-lhe a natureza particular, a origem, os processos de criação, isto é, de fazer nascer um campo estético “do que não existe” ainda, mas, no futuro, se revelará como fértil campo criador e criativo.

Dito de outro modo, premonitório, é já hoje convocado, neste livro, “o que (ainda) não existe”, dando conta, menos de um resultado definitivo e mais de uma metodologia nova, a metodologia relativa ao campo estético da “inter-artes”. Neste sentido, se um ensaio só é novo (não cumulado de pequenas “novidades” académicas, mas verdadeiramente novo) quando opera um rasgão com o passado, interpretando-o de um modo radicalmente diferente, causando até alguma estranheza, Do que não Existe, de Annabela Rita, oferece ao leitor uma versão da análise textual já própria do século XXI.

Por isso, a autora tece o itinerário do labirinto de imagens que vão de Cesário Verde, Teolinda Gersão e Gonçalo M. Tavares às representações monumentais por que a Europa se tem historicamente figurado, convoca e entrelaça, pelo olhar melancólico da “Joaninha”, a história do retrato, da paisagem, da narrativa europeias. Ou, dito de outro modo, transforma símbolos literários em símbolos culturais, associando inclusive esse símbolo social do novo tempo que é o “Google Maps”.

Dir-me-ão que se trata de uma perspectiva comparatista. É verdade, mas uma perspectiva comparatista que sai para fora da literatura e abarca a totalidade da realidade estética para dar conta daquela. Donde, a partir de Almeida Garrett se chega à “cartografia monumental” e, paradoxalmente, ao “Evangelho Português”, para se regressar ao terreno próprio da literatura, agora entre Garrett e Camilo, com incursões sobre o ensaio cultural de António Quadros.

Enfim, é justamente deste labirinto cultural, conceptualmente entrelaçado mas rigorosamente claro, que se trata “do que não existe”, por exemplo, da relação entre António Ferro, o homem e a obra, Leitão de Barros e a Exposição do Mundo Português de 1940. E daqui parte-se para a interpretação da representação imagética dos “Painéis” de Nuno Gonçalves para se chegar à representação literária decadentista de Guerra Junqueiro nos finais do século XIX.

Do que não existe – eis, entre o frágil ensaísmo português do século XXI, um fortíssimo desafio hermenêutico.


Miguel Real,

Quinta de Santo Expedito,

Colares,

Janeiro de 2017


Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita