Variações in hoc signo

 

TRIBUTO A ANNABELA RITA


VARIAÇÕES IN HOC SIGNO
Por José Carlos Seabra Pereira


Eis-nos perante mais um trabalho de Annabela Rita, intelectual tão operosa no magistério universitário e na escrita quanto nas iniciativas institucionais de irradiação do saber, tão irrequieta de espírito quanto voluntariosa no discorrer. Aqui nos surge novamente com vontade de cumprir-se no duplo movimento de conhecer e transmitir sucessivos objectos de estudo – ansiosa por indagar, dilucidar, discriminar, correlacionar, conjecturar e inferir.

Por vezes, a escrita digressiva de Annabela Rita pode começar por suscitar uma impressão de apressada passagem de um passo a outro do trajecto por onde nos conduz, deixando o leitor por satisfazer no seu desejo expectante de aprofundamento do tema, de exploração do motivo ou da figura, de desenvolvimento da análise crítica ou do comentário de certa doutrina ou tese. Outras vezes, aquela ânsia de prospectar e facultar generosa cópia de elementos ou factores de novos estádios de saber não se inibe de lances de elenco vertiginoso, que porventura começam por provocar no leitor inadvertido a sensação estranha de réplica operativa da antiga figura retórica do “catálogo”.

Creio, porém, que o leitor familiarizado com a obra da professora e ensaísta, mormente com os livros que mais proximamente precederam o presente Sfumato – Figurações in hoc signo. é levado a adoptar outra perspectiva e outro juízo. Por um lado, apercebe-se de que se trata de um regime discursivo coerente com a índole fundamental do projecto de Annabela Rita: sem descurar ocasiões de pesquisa e de corresponder então à exigência heurística, não quer reivindicar a descoberta de elementos (histórico-culturais, antropológico-culturais) nem a proposta de teses hermenêuticas absolutamente insólitas ou de inédita apropriação em construção ideológica; deseja, antes, encontrar a singular valorização dos macrossignos – mitos, símbolos arquetípicos, topoi pregnantes de indeterminação semântica, situações emblemáticas, personagens paradigmáticas – através da sua convocação pertinente e da sua articulação genésica, considerando por conseguinte supérfluo deter-se em disquisições sobre dados que prevê serem do conhecimento dos seus leitores.

Por outro lado,  talvez os não-ditos de Annabela Rita – em paralelo ao papel que a essa característica dos textos artísticos (assim denominada por Umberto Eco na sua semiótica literária) cabe na promoção da cooperação interpretativa e comunicativa do receptor – se traduzam numa irónica prevenção contra os demónios da analogia e da generalização que tanto tentam e vulnerabilizam os discursos de especulação imaginária e simbólica, identitária e canónica, isto é, justamente aqueles que Sfumato busca, acompanha, compreende e questiona.

Vinda dos Estudos Literários para outros campos conexos do pensar a Arte e a Cultura, a autora de Sfumato conhece bem os atributos da Imaginação, a valência criativa que o Romantismo lhe reconheceu e legou à Modernidade e o alcance científico que a epistemologia pós-positivista lhe conferiu na nossa contemporaneidade (com Poper, Lakatos, Kuhn, etc.). Além disso, convive persistentemente com as múltiplas facetas do Imaginário como domínio antropológico, que as artes e a literatura desde sempre exploraram e de que continuam a alimentar-se. Consequentemente, Annabela Rita retoma, de livro para livro, a visitação aos espaços e tempos do Imaginário, e recomeça com inteligência imaginante a demanda de novas iluminações da natureza humana que na História se oculta, se insinua, se anuncia, se cifra ou se revela.

Nesse percurso, o que está em causa – como síngulo e como comunidade – é o Homem que se distingue no mundo como ser de linguagem e de consciência; ser que, com a linguagem vai crescendo  naquela consciência cognoscente e constituinte do real a que a fenomenologia de Husserl deu primazia; ser, pois, de consciência e linguagem perceptivas e reflexivas, a que logo  urge a comunicação.

Por isso, Annabela Rita sabe que o Homem se dá a compreender como ser de semiose, de semioses múltiplas, gerando e explorando sistemas de signos e códigos, primários (as línguas históricas e “naturais”) e secundários (sistemas míticos, religiosos, filosóficos, morais, sociais, jurídicos, políticos,  artísticos, etc.), com sua valência cognitiva de programas de conhecimento e sua valência pragmática de programas de comportamento; e sabe que, assim, esses sistemas semióticos valem para o Homem como outros tantos sistemas modelizantes do mundo.

Sem precisarem de explicitação, estes princípios de semiologia geral subtendem a investigação de Annabela Rita e têm-na conduzido a privilegiar as relações que, em níveis diversos, os criadores de pensamento e de mensagem estética dinamizam entre o sistema literário e os sistemas semióticos das outras artes. Por essa via apelativa, os seus trabalhos vêm alargando progressivamente o âmbito de inquirição das práticas simbólicas do Homem, em particular do Homem português.

Congenitamente, o seu discurso desinibe-se na feição dada ao método conjectural e inferencial, no recurso não teorizado à abdução e aos “passeios inferenciais” pela sua “enciclopédia” (segundo a acepção de U. Eco), aos procedimentos epistemológicos não-positivistas de saltos associativos e imaginantes, em que intuição sensível e intuição intelectual se estimulam mutuamente e se conluiam para novas hipóteses de hermenêutica cultural, enquanto a dicção se cadencia, com bruscas síncopes ou exuberantes redundâncias, sob a instigante tonalização da catáfora polivalente do título e das indutoras epígrafes.

 

Não faltam na trajectória intelectual da autora contactos com o valor do simbólico na antropologia social e cultural, tal como nas condições de existência das artes e da literatura, nas formas da sua concretização textual e da sua recepção; desde a Retórica e a Estilística até à hodierna teoria do funcionamento institucional da literatura como um dos principais campos de bens simbólicos e modalidade específica do que Bourdieu designou e caracterizou como «campo intelectual» (com sua promoção e disputa do capital e do poder simbólicos). Tudo isso se deixa entrever, de quando em vez, neste Sfumato e em alguns dos ensaios anteriores, desde Cartografias Literárias (2010), até conceder lógica relevância à problemática do cânone nos livros Luz e Sombras do Cânone Literário (2014), Do que não existe. Repensando o Cânone Literário (2018) e Perfis & Molduras do Cânone Literário (2018).

Porém, o conspecto actual da ensaística de Annabela Rita releva de uma vontade de compreensão mais ampla das cifras e marcas que o Homem vai inscrevendo na História como ser de formas simbólicas, tal como o pensou Ernst Cassirer, grande e injustificadamente olvidado filósofo, e o viu Susanne Langer, sua emérita discípula em filosofia da mente e em estética semântica.  Pelo menos, creio que a leitura de Sfumatto ganhará em ser prosseguida à luz de certas orientações expendidas por Cassirer na trilogia da Filosofia das Formas Simbólicas e no Ensaio sobre o Homem, bem como por Langer em Feeling and Form. em Problems of art  e nos Philosophical Sketches. Em ambos, encontramos a defesa da Arte e da literatura como criação de «vida virtual» ou «mundo virtual», todavia sem fuga ao princípio de realidade, antes primando por peculiar via cognitiva que se consuma em específica forma de «apresentação simbólica». Em Cassirer, postula-se para a linguagem, como para as demais formas simbólicas da cultura humana (mito, religião, arte, ciência…), que por sobre a variabilidade dos usos importa mais a lei intrínseca dessas formas (que proporcionam a construção do mundo dos objectos, da percepção e da intuição objectiva, da representação do espaço e do tempo, do número e do eu). Em Langer, corrobora-se que, na medida em que as formas naturais da experiência subjectiva sejam abstraídas ao ponto da apresentação simbólica, podemos utilizar essas formas para imaginar o feeling e entender-lhe a natureza; e o autoconhecimento, a introvisão de todas as fases da vida e da mente, surge da imaginação artística. Mais: sempre que chama a si um motivo da realidade (do mundo natural e histórico), a Arte transforma-o em obra de imaginação «e impregna de vitalidade artística a sua imagem»; então, o «resultado é impregnar-se a realidade comum com a expressividade da forma criada. Isto é a objectivação da Natureza, que torna a própria realidade um símbolo da vida e do sentimento.»

Sem comprometer a leitura de Annabela Rita com o sistema filosófico de Cassirer nem com o radical princípio teórico-metodológico peremptoriamente estatuído no Ensaio sobre o Homem, parece-me que é colaço o intuito voluntarioso da ensaísta, ao deslocar-se da close reading dos textos estético-literários não só para a decodificação e valoração desses textos no quadro de um paradigma semiótico-comunicacional, mas também para um plano em que a hermenêutica literária se associa a um exercício de recolecção de dados heurísticos carreados pela pesquisa de historiadores político-sociais e político-culturais, para se integrar num plano de estética e semântica simbólica.

Assim procura contribuir para um saber multidireccional, mas com estrutura de horizonte – o horizonte de uma visão da cultura como processo intérmino de libertação e elevação do humano, o horizonte de um discernimento da parte nobre que nesse processo histórico cabe ao Homem português.

Acontece que, nessa deriva de Annabela Rita como em E. Cassirer, transpostos para esse plano os factos transformam-se em formas simbólicas e adquirem «uma unidade interior» – não uma unidade de produtos nem de efeitos, mas sim de processos criadores em ordem àquele fim comum.

Nessa perspectiva, as actividades humanas superiores, que são viabilizadas pelos sistemas simbólicos e decorrem das práticas simbólicas, além de assumirem vitalidade em operações científicas e artísticas, em ritos e cerimoniais, em vigílias e celebrações, em pactos e afrontamentos, em apoteoses ou refundações de regimes, encontram modos plurais e metamorfoses sucessivas de resiliência activa ou de sobrevivência memorial na emblemática e na heráldica, em ex-votos e ex-libris, em ícones e imagens sacras, em estandartes e rituais cívicos ou religiosos, em objectos de ostentação sumular de poderio e projecto (como a esfera armilar manuelina), etc.

Aí se manifesta uma polaridade que se resolve em «tensão entre estabilização e evolução», com modalidades diferentes e variáveis de proporcionalidade entre esses dois vectores. Se, por exemplo, nos sistemas arcaicos do mito prevalece a tendência para a estabilização, já nas formas da religião se verifica um avanço contínuo para formas dinâmicas de pensamento e de sentimento ético-religioso; e nas formas da linguagem realiza-se idêntico processo de compatibilização da permanência de relações estruturais e de convenções comunicacionais com a mudança diassincrónica nesses sistemas multiestratificados, na sua existência como fundamental semiótica  social (como explanou M. Halliday).

Ora, em Arte – isto é, na literatura e nas outras artes – o equilíbrio dos dois vectores conhece uma alteração peculiar: como Annabela Rita poderia dizer em passos hermenêuticos que contemplam a abertura in fieri da figuração imaginária e da apresentação simbólica e buscam a intencionalidade arquetípica, na terminologia de Cassirer e Langer «a prerrogativa e a distinção da arte» reside no poder de originalidade, isto é, de criatividade não sujeita a regra (pré-)definida, não obstante o papel primordial que ainda aí a «tradição» desempenha no condicionamento expressivo do irredutível «talento individual» (para elegermos os consagrados termos de T. S. Eliot). Acresce que a categoria arquitextual que sobremodo atrai a ensaística de Annabela Rita é a do cânone literário, o da sua historicidade e contingência, o da sua funcionalidade na dinâmica conflitual do campo literário e na sucessão de gerações ou de movimentos hegemónicos no quadro estilístico-periodológico – que ilustra exemplarmente a dialéctica cassireriana de sustentação arquetípica e perturbação original e que Annabela Rita prefere focar mais como potencial em aberto do que como clausura de conseguimentos modelares.

Por quanto pretende guindar e cristalizar de mais representativo das formas artísticas que, entre motivos inspiradores e poética dos efeitos, ganham os estilos de época e as singularidades autorais numa literatura nacional, o cânone literário serve oportunamente de ponte para outro domínio cultural que atrai recorrentemente a ensaística de Annabela Rita e domina boa parte deste Sfumatto: os discursos identitários e, em particular, as convicções e contestações da identidade nacional, mormente no que concerne a Portugal.

Aliás, em favor da afluência deste livro à panóplia de questões que se coenvolvem nas especulações e controvérsias em torno  da identidade nacional, dos seus fundamentos (antropológicos ou históricos, providenciais ou sociológicos, messiânicos ou políticos), bastaria ele poder constituir-se em estrada real do imaginário e do simbólico, campo fértil do mito (como narrativa poderosa que figura uma possibilidade, benigna ou maligna, do humano, projectando ou não experiências históricas, mas seguramente subsumindo arquétipos da aspiração transmanente), cartografia de espaços aureolados de genius loci  e de lugares investidos de legado ou poder catalítico de epifanias, hierofanias, teofanias, de acções sobrenaturais, de intervenções maravilhosas, taumaturgias, etc., e de estâncias sagradas de iniciação esotérica, itinerários de Peregrinação, caminhos de Cavalaria espiritual, roteiros templários, evocação de tempos qualificados e sua consagração em monumentos do Património colectivo com que a historiografia apoia a reanimação pela memória vivencial…

Além disso, porém, a temática e a figuração identitária oferecem a Annabela Rita campo privilegiado de analogias entre a dinâmica do sujeito individual e a do sujeito comunitário no processo fundamental de acesso à «conscience de soi» e de ulterior conquista da «connaissance de soi», como ensinou Georges Gusdorf. Decerto, declaradamente ou subliminarmente, esse desejo de clarificação do processo de consciência de si e de conhecimento de si é corresponsável – a par da paixão das ideias e das ideologias, do culto do pensamento diaporemático e  do propósito de paideia cívico-cultural – pela importância transgeracional das concepções e controvérsias identitárias.

Mesmo nos nossos dias, apesar dos estigmas da Pós-Modernidade e dos tropismos da Globalização, entre nós abrandou a “obsessão da portugalidade” denunciada por Onésimo Teotónio de Almeida, mas não têm faltado simpósios sobre Representações da Portugalidade, nem reemergências do discurso identitário, nem confrontos de posições afirmativas ou reactivas sobre ideias de identidade nacional, nem renovadas caracterizações do ethos português, das suas potencialidades conaturais e das suas crises conjunturais (de José Gil, com Portugal Hoje – O medo de existir, 2004, e Em busca da Identidade – o desnorte, 2009, até Miguel Real, com Portugal – Ser e Representação, 1998, A Morte de Portugal, 2007, Fátima e a Cultura Portuguesa, 2018).

Nesse mare magnum de discursos e contra-discursos –    essencialistas ou só substancialistas, providencialistas ou só fundacionalistas, relativistas ou só historicistas, contratualistas ou só construcionistas -, não se impõe a Annabela Rita um imperativo de juízo apodíctico nem uma arbitragem de facções. Prevalece, como em livros precedentes, a livre e sinuosa busca de valores míticos e simbólicos, de caminhos de gnose e beleza, de criações imaginíficas e de intersemioses artísticas – e só por aí poderão certos passos pender mais para a tradição da «nação orgânica» (de matriz herderiana e romântica) do que para a tradição  de «nação cívica» (de matriz iluminista e liberal).

Talvez, no entanto, subjaza à travessia dos paradigmas identitários e das suas denegações um apego à ideia-sentimento de nação como “comunidade de sonhos”, assente na vontade comum de partilha de um passado, de empenhamento no presente e de projecção no futuro. Talvez a esse apego se associe o interesse de sondar as formas por que ao longo da História se exprime a convicção de que a relação transgeracional com a nação implica, como queria E. Renan, uma teleonomia de memória e esquecimento, tal como a convicção de que a definição projectiva da consciência nacional implica opções protagonizadas individualmente ou grupalmente (pois se «consciência significa memória e antecipação, é porque consciência é sinónimo de escolha», como discernia H. Bergson).

Certo é que esse apego e essas convicções aparecem conotados por uma moderada convocação da grande narrativa das «comunidades inventadas» (evidenciado criticamente com Benedict Anderson, mas compreensivamente integrado pela análise de Anthony Smith e estudiosos congéneres) e condicionados alusivamente pela noção de que os tempos correm no sentido de identidades plurais, abertas, mutáveis.

Em todo o caso, a demanda de insights em Sfumatto, como em Luz & Sombras do Cânone Literário (2014), Do que não existe. Repensando o Cânone Literário (2018) e Perfis & Molduras do Cânone Literário (2018), torna-se mais inteligível e sugestiva para o leitor que tiver a estruturar o seu horizonte de leitura (e de expectativa) um roteiro dos principais pronunciamentos padronizados por José Mattoso sobre a formação da nacionalidade portuguesa, por Martim de Albuquerque sobre a definição da consciência nacional, por Adriano Moreira sobre a epicização do Estado nacional católico em expansão e de vários mestres sobre as ramificações da intencionalidade camoniana de missão ecuménica  para a promoção universal do império das «leis melhores», por Lúcio de Azevedo sobre a evolução do sebastianismo e por vários mestres sobre a sua sublimação quinto-imperial no visionarismo do Padre António Vieira e sua descendência, por Fernando Catroga sobre o nacionalismo cívico e respublicano posterior à queda do Ancien Régime e por vários mestres sobre as contraposições em torno da decadência nacional no seio da Geração de 70, sobre o nacionalismo cultural de Teófilo, sobre as derivações neo-românticas do tradicionalismo messiânico (entronizando a «Nação precursora», como certo verso de António Corrêa d’Oliveira), sobre a mitogenesia de Pascoaes e suas variantes no seio da “Filosofia Portuguesa”, o contraditório de racionalismo pragmático padronizado por António Sérgio e a alternativa de estratégica de mitografia soreliana e paretiana ilustrada por F. Pessoa, etc.

Com José Mattoso e todos os que avisadamente se acolhem ao seu magistério, predomina o estudo documentado, reflectido e conferido do processo histórico de formação da nacionalidade e do seu devir, como nação normal na comunidade das nações, como Estado entre Estados adversários ou aliados, que responde com acertos e erros, com êxitos e desaires, aos desafios de sucessivas conjunturas, condicionado mas não arrastado por determinações físico-naturais, nem conduzido teleologicamente por qualquer predestinação providencial para condição excepcional na História da Humanidade. Mas não é em vão que o principal «Ensaio sobre as origens de Portugal» se intitula Identificação de um País (1985); e no estudo de tal processo histórico, retomado em vários livros e sintetizado em O essencial sobre a formação da Nacionalidade, atenta-se também na gestação da «identidade cultural» e no desenvolvimento da «consciência nacional», e avança-se até ao delineamento de «os caracteres nacionais» (geofísicos e económicos, culturais e linguísticos) – embora arredando sempre recognições arquetípicas ou prognoses messiânicas, tal como figurações míticas ou  simbolizações alegóricas. Aliás, José Mattoso revisitou o problema de A Identidade Nacional em 1998 para reanalisar o processo dessa categoria mental (entretanto negada enquanto tal por Boaventura de Sousa Santos e ideólogos aparentados); e acaba por ponderar os «discursos» contemporâneos sobre essa problemática, visando declaradamente uma perspectiva de «identidade sociológica», contestando a inventariação tradicional dos caracteres específicos do Povo português e denunciando os (eventuais) intuitos de nacionalismo político e as especulações de profetismo messiânico associados a esses  «discursos»: «Nem o sebastianismo nem a saudade, postas em relevo por António Sardinha, nem o universalismo internacionalista, propalado por vários autores, nem olirismo sonhador aliado ao fáustico germânico e ao fatalismo oriental, apontados por Jorge Dias, nem a plasticidade do homem português, intuída por Natália Correia, nem o culto do Espírito Santo, qu fascinou António Quadros, nem a capacidade para criar uma «filosofia portuguesa», patrocinada por Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro e José Marinho.»; e, convergindo com Villaverde Cabral, «o essencial das diferenças empiricamente observadas entre os valores, atitudes e comportamentos da população portuguesa e os do resto da população europeia pode e […] deve ser explicado pela história nacional e o seu carácter contingente, e sobretudo pela configuração demográfica, social e económica do país». Na óptica tipificada por José Mattoso seria preciso distinguir as interpretações «que partem da observação empírica de caracteres comportamentais que podem corresponder a hábitos mentais, mas cujo grau de generalização é difícil medir, das que se baseiam em especulações de tipo idealista ou até de feição mística», sendo que em seu entender as primeiras merecem obviamente maior atenção. Apesar disso, têm cabimento certos matizes de ponderação crítica: «Este facto exclui o conceito de identidade nacional como um dado da «natureza» ou como um problema do âmbito do «ser», mas não necessariamente a sua permanência, ou pelo menos a sua durabilidade. Com efeito, é fundamentalmente um fenómeno da consciência colectiva, que se baseia, por um lado, numa percepção das diferenças comuns verificadas em relação à população de outros países, ao nível das estruturas sociais, das manifestações culturais (nomeadamente da língua, dos hábitos e dos valores) e, por outro lado, de uma certa percepção do passado comum». Em suma, «a História constitui para a sociedade actual um dos fundamentos mais importantes da memória colectiva, e, por conseguinte, da consciência de identidade. Até a um passado mais ou menos recente, conforme o grau de instrução dos sujeitos em causa, a memória colectiva apoiava-se frequentemente em mitos, alguns deles criados justamente para servirem de suporte da crença na perpetuidade ou mesmo na sacralidade da Pátria. Tal foi a crença no milagre de Ourique, surgida no fim do século XIV ou princípio do seguinte e cuidadosamente cultivado pelas elites nacionalistas até meados do século XIX […] No século XVI, porém, a gesta dos portugueses tornou-se epopeia, pela pena de Camões. O seu fundamento não era o mito, mas a História, tal como na sua época ela se entendia. A transposição da História para a epopeia deu-lhe, porém, a força do mito […] A sobreposição da História e do mito agravou o sentimento da «decadência» nacional, mas o seu carácter heróico constituiu um forte apoio para fortalecer os sentimentos patrióticos e, consequentemente, a consciência da identidade nacional. Os rituais colectivos, sobretudo as comemorações de  centenários […] contribuíram para generalizar a função social da memória colectiva».

Entre as prevenções de Mattoso e as denegações redutoras de António Sérgio (hostilizando em nome das condições histórico-sociais as motivações de espírito étnico, teofilianas ou martinianas, as injunções do Volksgeist romântico, oitocentista, e neo-romântico, novecentista), Adriano Moreira interpreta o sebastianismo  e seu legado como reacção a determinado contexto político e social, «à falta de outra resposta mais imediatamente exequível e eficaz, mais racional, mais orientada no sentido de assumir os comandos políticos e dominar os factores da crise»; mas, logo reconhece que o elemento fundamental da tradição sebastianista é o abeberar-se na «convicção de que a Portugal corresponde uma missão ecuménica», o justificar-se «na ideia de que o comportamento lusíada pode formar modelos de convívio úteis a toda a humanidade» e, consequentemente, o esperar, não o regresso empírico do Desejado, Imperador-Menino, mas sim a espécie de mundo que o Encoberto viria implantar – «função e resultado de uma predestinada acção de Portugal no mundo».

Este é, todavia, o viso problemático que lacera a prossecução do programa da dinastia de Avis e do Manifesto d’Os Lusíadas, ao contrário da trave-mestra do «desígnio nacional», que justifica e exige o ofício político de «demorar-se sobre a definição dos objectivos imediatos do poder e sobre a articulação de tais objectivos com as finalidades transcendentes da Nação».  Assim sendo, na óptica tipificada por Adriano Moreira aproximamo-nos de uma via de integração superadora do realismo sociológico e político, não cativo do racionalismo pragmático, e da teleonomia messiânica, não tributária da gnose esotérica (de providencialismo transracional em António Quadros, de sincretismo hermético em António Telmo), num conceito estratégico nacional que desde o plano dos Infantes, desde a componente franciscana da Descoberta e Expansão (evidenciada, à ilharga de influxos joaquimitas enfatizados por outros historósofos, por Jaime Cortesão n’O humanismo universalista dos portugueses: «acima de tudo, a Cavalaria deu ao Português o sentido do serviço social e o desejo contínuo de superação. Foi um apelo supremo à s suas energias para servir a grei e a humanidade. […] Em cada português que embarca para o descobrimento do Mundo, há em germe um cavaleiro andante e um místico franciscano. Um aventureiro e um santo.») e desde o manifesto d’Os Lusíadas (lido à contraluz de Diogo do Couto, porque escrito com conhecimento de causa do Soldado Prático) seria o projecto do Estado nacional em movimento na História e se haveria de consumar, através da ponderação realista e da execução situada do programa do Poder político e da cidadania conscientemente interventiva, na eficiência da exemplaridade lusíada em prol de graus superiores de Humanidade.

Finalmente, a recepção do(s) livro(s) de Annabela Rita  ficará debilitada se o leitor não tiver presente a reiterada e decisiva reflexão de Eduardo Lourenço sobre a questão da identidade nacional, de tal modo ela se vê invocada, explicitamente aduzida ou subrepticiamente aproveitada nas linhas colaterais de caracterologia psicossocial padronizada por Jorge Dias na sua caracterização homem português como «sonhador activo», de ethos lusíada mais ou menos confortado por manifestações do Inconsciente colectivo (na linha da Filosofia Portuguesa, de Álvaro Ribeiro a Pinharanda Gomes), de singularização lusa na manifestação das estruturas antropológicas do Imaginário (na linha do enunciado pelo próprio Gilbert Durand e por seus discípulos), enfim da herança da poética da imaginação criadora e do profetismo lírico de Pascoaes e do seu pensamento oracular entre a Arte de Ser Português e O Homem Universal (messianismo cívico-cultural do advento da nova e superior «civilização lusitana» e de sua doação ao Mundo, num segundo momento de messianismo lusíada, para cujo impulso, com reequacionação do entendimento da decadência nacional, a dialéctica mnésico-prospectiva do sentimento-ideia saudoso e a imaginação da Saudade lusíada como nume tutelar da Grei é já mito soreliano e paretiano) e da herança da sua reformulação pessoana em sonho galvanizante de «um Império cultural sem imperialismos de culturas nem de verdades» – ambas moduladas pro domo sua por António Quadros e sua família intelectual como «Valores, mitos, arquétipos, ideias» no complexo de Memórias das Origens, Saudades do  Futuro, mas também na dinâmica de grupo com louvável fidelidade a O que é o Ideal Português (colóquio,1961) e na verosímil projecção «Para uma civilização de língua portuguesa» (Espiral, 4/5, 1965).

Através de conferências e prefácios, de artigos e ensaios, de livros como O labirinto da Saudade. Psicanálise mítica do destino português (1978), Nós e a Europa, ou as duas razões (1988) e Portugal como Destino, seguido de Mitologia da Saudade (1999), a coerência orgânica da visão lourenciana comporta matizes cuja matriz transparece porventura na asserção de que «Poucos povos serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente Quixote e Sancho.» E a sua lição não estabelece (ou infirma) os constituintes aferidos de uma efectiva «identidade nacional», antes incide, como se reflecte em Annabela Rita, na «imagem» mítica  do ser de Portugal que a imaginária auto-representação dos portugueses foi elaborando; mas é perfeitamente clara e argumentada a tese de que, no seu cerne, está – aliciante e perigosa, diria eu, lembrando com Rilke que a beleza é o limiar do terrível – «a estrutura da nossa hiperidentidade, a nossa dupla identidade de povo europeu não-hegemónico e de povo, apesar disso, disseminado e supervivente no espaço imperial».

Eduardo Lourenço considera que «para o indivíduo, o grupo, a nação, a questão de identidade é permanente e se confunde com a da sua mera existência, a qual não é nunca um puro dado, adquirido de uma vez por todas, mas o acto de querer e poder permanecer conforme ao ser ou ao projecto de ser aquilo que se é». Sem hipóstase, nem sequer postulação, da «alma nacional», assinala que, todavia, «só no caso do indivíduo se pode falar de projecto, porque só no seu caso há um autêntico sujeito dele, uma relação de interioridade consigo mesmo. Um grupo ou uma nação só são sujeito como metáfora do indivíduo que simbolicmente e por analogia constituem. Sujeito, quer dizer, memória, reactualização incessante do que fomos ontem em função do que somos hoje ou queremos ser amanhã. A esse título, também a identidade […] não é mero dado mas construção e invenção de si». É certo que «por ter sido largamente quem fomos» – ou, diria Dom Manuel Clemente no início de Portugal e os Portugueses, pela «impossibilidade de deixarmos de ser quem somos, tal a densidade interior que acumulámos» -, sofremos de «hiperidentidade, de  quase mórbida fixação na contemplação e no gozo da diferença que nos caracteriza ou nós imaginamos tal no contexto dos outros povos, nações e culturas»; e por isso mesmo, de novo em paralelo com Dom Manuel Clemente, ressalta que «Nas relações consigo mesmos os Portugueses exemplificam um comportamento que só parece ter analogia com o do povo judaico».

Em suma, «dado fundamental da autoconsciência nacional» e afinal «nossa única e auto-represe~entica identidade» é o «mito interior» da «existência imaginária» atribuída vivencialmente ao efectivo «papel medianeiro e simbolicamente messiânico que, após haver consolidado a sua autonomia como Estado-Nação ao conferir-lhe segunda dimensão («a dimensão imperial do século XVI, espaço de comércio, de poderio, de evangelização e de cultura, ao mesmo tempo real e fabuloso pela desproporção entre o que nós éramos como potência europeia e a vastidão desse novo espaço.»), desempenhou num certo momento da História ocidental convertida por essa mediação, pela primeira vez, em História universal».

Quer «a prodigiosa irrealidade da imagem e dos mitos» (sem invalidar o quanto de efectivo e positivo houve na projecção imperial, enquanto «ecumenismo prático, vivido, na secular aventura da Fenícia moderna que é Portugal»), quer a «memória ainda viva dela nos vestígios artísticos ou literários (Jerónimos, Lusíadas, cronistas, arte barroca)», qualificam o «processo, ao mesmo tempo real e imaginário» através do qual os portugueses construiram (como os demais Povos) um «passado original sem o qual não teriam futuro, ou apenas um presente sem espessura».

Isso mesmo o sabe e nos refracta in hoc signo a escrita aventurosa de Annabela Rita em Sfumato.


Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita