Por FRANCISCO JOSÉ VILAS BOAS SENRA DE FARIA COELHO
Arcebispo de Évora
A história da salvação ensina-nos que Deus estabeleceu alianças com o povo de Israel, chamando-o a experimentar o seu amor e o seu poder libertador através de pessoas com rosto e nome, no concreto do tempo e do espaço, na História.
A primeira grande aliança surge logo nas primeiras páginas da Bíblia, designada, por alguns biblistas, como Aliança Adâmica: Deus estabeleceu uma aliança com Adão e Eva, os pais da Humanidade (GN 1,26-30; 2,16-17). Nesta grande alegoria, repleta de metáforas e poesia, quando Deus criou o Homem e a Mulher, à sua imagem e semelhança, estabeleceu com eles um relacionamento religioso, ético e moral. Deus expressou como seria esse relacionamento através de mandamentos com consequências de vida e morte. Mesmo antes de a Humanidade pecar, havia uma aliança na Criação que tinha sido destruída pela infidelidade do Homem, pelo pecado. Mas Deus não desistiu do seu “projeto”, fazendo uma aliança de Graça (renovação da aliança) com a Humanidade. Imediatamente, após a primeira queda no pecado, geradora de morte, Deus restabeleceu a sua aliança na gratuidade da sua misericórdia. Assim, a Graça de Deus manifestou-Se logo que surgiu o pecado, revelando-Se como Deus-Criador e Deus-Amor (GN 3,15-19).
A aliança incondicional entre Deus e Noé e Deus e a Humanidade constitui a segunda aliança bíblica, também designada por Aliança Noética. Depois do dilúvio, Deus prometeu à Humanidade que nunca mais destruiria a vida na Terra com um dilúvio (GN 9). O arco-íris foi o grande sinal desta aliança, constituída pela promessa, por parte de Deus, que a terra nunca mais sofreria um dilúvio, enquanto símbolo de destruição. Na afirmação, porém, do permanente “Juízo de Deus”, Ele pode e vai julgar o pecado (2PD 2,5).
O chamamento de Deus a Abraão surge como a terceira aliança bíblica, também designada por Aliança Abraâmica (GN 12,1-3.6-7; 13,14-17; 22,15-18). Deus prometeu que faria o nome de Abraão grande (GN 12,2), que Abraão teria uma grande descendência (GN 13,16), e que seria «pai de muitas nações» (GN 17,4-5). Uma outra provisão na Aliança Abraâmica é que as famílias do mundo seriam abençoadas através da linhagem de Abraão, os filhos de Abraão (GN 12,3; 22,18). Esta é já uma referência ao Messias, que viria da linhagem de Abraão, o Pai na Fé.
A quarta aliança bíblica, a Aliança Palestiniana (DT 30,1-10), aprofunda o significado da “Terra Prometida” referida na Aliança Abraâmica. De acordo com os termos desta aliança, havia como que um pacto entre Deus e o seu povo. Assim, se o povo desobedecesse, Deus faria com que fosse espalhado pelo mundo (v. 3-4), acabando, porém, por restaurá-lo numa nação (v. 5). Quando Israel for restaurado, então todo o povo obedecerá na perfeição (v. 8), fazendo Deus com que prospere (v. 9).
A quinta aliança, a Aliança Mosaica, surge como uma aliança condicional que traria à nação de Israel a bênção de Deus pela obediência ou a maldição de Deus pela desobediência. A parte mais importante da Aliança Mosaica (Ex 20) é constituída pelos Dez Mandamentos (Decálogo) e por toda a Lei, cuja obediência e desobediência do povo de Israel os livros históricos de Josué e Ester relatam detalhadamente. Os temas da bênção e da maldição aparecem detalhadamente descritos em DT 11,26-28.
A Aliança Davídica, a sexta aliança bíblica, apresenta as promessas feitas a David: Deus prometeu que a linhagem de David duraria para sempre e que dela surgiria um reinado perpétuo (2SM 7,8-16). Percebemos nesta aliança que o trono de David nem sempre será próspero, mas surgirá o tempo em que alguém da linhagem de David reinará eternamente. Ele será o Justo e fará justiça entre todos os povos e nações, Ele será a Luz das Nações. O Novo Testamento concretiza este futuro rei em Jesus, o Cristo (LC 1,32-33).
Na Nova Aliança, a sétima, Deus promete perdoar os pecados. Jesus Cristo veio para cumprir a Lei de Moisés (MT 5,17) e criar uma nova aliança entre Deus e o seu povo, selada com o seu próprio sangue. Agora que estamos sob a Nova Aliança, tanto os judeus como os gentios podem ser livres da penalidade da Lei. Todos temos a oportunidade de participar na salvação como um dom gratuito (EF 2,8-9).
À maneira do Povo Bíblico, que sempre releu a sua História a partir das alianças com Yahweh, também Portugal, enquanto Povo e Cultura, necessita mergulhar as suas raízes no húmus da sua História para aí se encontrar com a sua identidade, percebendo objetivamente a impossibilidade de se narrar sem um decisivo encontro com o Cristianismo. Numa metáfora, e inspirando-nos no povo de Israel, também nós podemos revisitar a História de Portugal e relê-la a partir das suas alianças celebradas com Deus, através de Nossa Senhora ao longo dos seus nove séculos de História, eis um desafio que Annabela Rita sabe propor, com exímia profundidade e ampla visão.
Portugal foi, desde o primeiro momento, Terra de Santa Maria. Tal designação envolvia já a ideia de consagração da nação a Nossa Senhora pelo recém-nascido Portugal, cuja independência fora internacionalmente confirmada em 1179 pelo Papa Alexandre III (1159-1181), um dos Papas mais insignes da Idade Média que convocou o XI Concílio Ecuménico de Latrão, no qual se decretou a eleição pontifícia por um mínimo de dois terços. Reencontrar-se consigo mesmo, refazer-se na sua identidade e contribuir com a sua cultura, eis o desafio em tempos de globalização. Realidade que nos propõe e pede o contributo da nossa fecunda experiência de diálogo com povos e culturas.
Por isso, em Sfumato. Figurações in hoc signo, Annabela Rita revisita e convoca a memória colectiva, particularmente a que contribuiu para configurar uma identidade de Portugal como povo singular e de missão para assumir, como cabeça/rosto (Camões, Pessoa) da Europa de ideal vibração (messiânica, utópica), a frente avançada do (re)fazer da cartografia mundial e de uma História correspondente a tal escala, aventura globalizadora (Jorge Nascimento Rodrigues, Roger Crowley) de que, qual Prometeu alquebrado, envelhecido e exausto (Eduardo Lourenço, Zygmunt Bauman), quer reerguer-se, reinventando-se e estranhecendo-se (Rob Rieman, Eduardo Lourenço)…
Em tempo de crise das identidades nacionais, de globalização acelerada, dissolvendo fronteiras espaciais e temporais e valores tradicionais em benefício de supra identidades, eis o olhar ensaístico a perscrutar as “brumas da memória” colectiva em busca do que nos foi constituindo como sujeitos da História: com a metáfora da técnica pictórica davinciana promotora do efeito de profundidade, de um além do retrato em primeiro plano, Annabela Rita busca linhas de sentido de si que as artes e as letras foram conformando para unir e reforçar o sentimento comunitário fundador e legitimador de nações emergindo numa Europa dilacerada por guerras, sentimento que a moveu para além dos seus limites continentais, soprando-lhe as velas das caravelas em demanda de outrem, de uma alteridade que desejava desvendar e afeiçoar-se a si.
Nessa busca, a autora folheia a nossa patrimonialidade material e imaterial (das velhas crónicas, lendas e tradições, às modernas Artes e Letras), escuta o diálogo que lhe atravessa os tempos e as práticas estéticas e, através dos pontos luminosos mais evidentes, reconhece e assinala um pensamento estruturador da heterogeneidade: aquele que a torna compreensiva in hoc signo, signo com que a comunidade (europeia e, nela, as nacionais) se funda, explica e legitima perante ela própria, que lhe impulsiona a acção, as utopias, as fraternidades, que sopra, por isso, nos mais vincados vestígios da sua História, factual e imaginária. Dele derivam as genealogias régias miticamente tingidas de edénica, diluviana e épica memória, os mitos fundacionais, as galerias de heróis e mártires, as tapeçarias de factos por eles cerzidos. Dele sopra a força de um ideal que, apesar das clivagens, impulsionou para além dos seus limites continentais uma Europa fracturada por guerras mas aspirante a dissolver os Adamastores dos abismos oceânicos, encontrando(-se) (n)o outro, capaz de o reunir a ela num ritual espiritualizado em edénica praia brasileira, como representado na Carta do Achamento de Pêro Vaz de Caminha. Dele resulta e para ele converge, afinal, a emergência quase epifânica de uma “terra inteira” de pessoano poema. É sob esse signo que Ulisses se transmuta em Vasco da Gama e os Argonautas nos nautas portugueses, que a velha épica se refunde na moderna, que a viagem e a arte que a exprime se vão reconfigurando. É sob esse signo que a popular “Nau Catrineta” plasmada nos painéis da Gare de Alcântara por Almada Negreiros codifica uma hermenêutica da cultura portuguesa, simbólica figuração oferecida como que em oração de um povo de uma Europa em bélicas chamas: país de aliança(s) e missão divinas, angelicamente protegido de fáusticos pactos. É sob esse signo que Guerra Junqueiro encena a história nacional na sua Pátria, cristologicamente modelada. É sob esse signo que Portugal se tem refundado através das crises da sua História: renovando a sua legitimidade e razão de ser assim e de perdurar em sucessivas alianças entre o homem e o divino, o povo e Deus, o aquém terreno e o além transcendente (Deus, Virgem Maria, Cristo, Anjo Custódio).
Sfumato. Figurações in hoc signo é uma obra dividida entre a observação mais genérica dos signos-sinais dessa representação ocidental (mais particularmente, europeia), matéria do capítulo “Figuras na Paisagem”, e o case study português na sua singularidade constitutiva, tema dos 2 capítulos seguintes (“Paisagem com Figura(s)” e “Paisagem & Figura(s)”), concluindo com uma Antologia de textos evocados no estudo. A primeira parte (“Figuras na Paisagem”) percorre alguns elementos da gramática do sistema de elaboração identitária do imaginário ocidental (mas também do oriental, confluente): episódios (gestos, rituais, visões e afins), objectos, genealogias, arquitecturas, profecias e maldições, etc.. Todos eles são factores de legitimação e/ou de reforço de uma consciência comunitária. A segunda parte (“Paisagem com Figura(s)” e “Paisagem & Figura(s)”) folheia a memória colectiva (nas artes, letras e tradições) no processo de construção identitário nacional, assinalando alguns lugares da gramática sistémica da legitimação de Portugal como nação, comunidade política emergindo no tempo-espaço de finisterra europeia, replicando muitos dos seus signos-sinais, mas adaptando-os a si e aos seus para se entender e se projectar no futuro. Por fim, na Antologia final, reúnem-se textos referidos no trabalho, esclarecendo o estudo e favorecendo o aprofundamento de alguns aspectos do mesmo para quem queira prosseguir a reflexão.
Na cultura portuguesa, a autora evidencia uma linhagem de pensamento identitário com (des)continuidades, apesar das diferenças perspécticas, linhagem que vai da velha historiografia e tradição oral até ao grupo da Filosofia Portuguesa e aos seus mais assinalados desenvolvimentos (Manuel J. Gandra, Paulo Loução e outros): os que lhe concebem uma identidade e ciclicidade históricas em horóscopo cifrada (Fernando Pessoa, António Telmo, Manuel J. Gandra), os que lhe verbalizam a utopia (Bandarra, com as suas trovas, Padre António Vieira, desde a Chave dos Profetas à História do Futuro, em especial), os que lhe salientam o projecto áureo (António Quadros) ou de gnoseológico recorte (Dalila Pereira da Costa), os que… Por fim, destaca-se o modo como, mesmo o Modernismo habitualmente visto como ruptura com a tradição cultural, a revisita e se constrói através dela.
Sfumato. Figurações in hoc signo surge na sequência da trilogia ensaística de Annabela Rita composta por Luz e Sombras no Cânone Literário (2014), Do que não existe. Repensando o Cânone Literário (2018) e Perfis & Molduras no Cânone Literário (2019), para que convergiu longa reflexão editada sobre a Literatura no seu concerto das Artes, aspirando a esclarecer esse mesmo itinerário de reflexão sobre a inscrição cultural das obras do nosso cânone literário encarado como cristalização cultural esteticamente configurada do imaginário comunitário. E, de facto, elabora uma espécie de thesaurus de sinais in hoc signo, iluminando o pano de fundo obscurecido já pelo esquecimento em que essas inscrições se foram insularizando como estrelas brilhantes e assinala rotas compreensivas, bordadas a ouro. Thesaurus resgatado pelo olhar ensaístico que deseja, como a autora afirma na abertura da obra:
“Perscrutar o sfumato que o tempo confere aos grandes tópicos identitários estruturantes do imaginário colectivo nacional, mergulhar nessa evaporação (o termo é davinciano) progressiva dos contornos das figuras (personalidades, factos, ideias, visoes, ilusoes, pactos…) que insinuam o irreconhecimento do cenario original, das cores, dos modos, do real.”
Num tempo de crise do pensamento ocidental e, mais particularmente, cristão, eis um encontro necessário: o do homem com a memória do que o foi constituindo, com as suas matrizes culturais, no plano individual e no plano colectivo. Só esse encontro o devolverá a si, só ele lhe indicará os caminhos da sobrevivência do seu antropos cultural, portanto, das Artes e das Letras em que ele se projecta. Por isso, é bem-vinda esta reflexão que, como na velha épica convocada por Almada Negreiros na fachada da Faculdade de Letras, persegue a machina mundi mostrada a Vasco da Gama para esclarecimento do que somos e consequente reinvenção do que seremos…
Saudamos e felicitamos pela dimensão visionária desta obra, Annabela de Carvalho Vicente Rita, personalidade destacada dos estudos literários em Portugal, Especialista nos escritores de maior relevo da Literatura Portuguesa dos últimos dois séculos, em que avultam os seus ensaios inovadores sobre Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luís, Sofia de Melo Breyner, Casimiro de Brito, Teolinda Gersão, Ana Hatherly, entre outros.
Doutorada e com Agregação e dois pós-doutoramentos em Literatura, é professora e Directora de Licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Presidente / Academia Lusófona Luís de Camões | Instituto Fernando Pessoa | Assembleia Geral da COMPARES, Coordenadora / CLEPUL, Directora/ Associação Portuguesa de Escritores | Observatório da Língua Portuguesa | Sociedade Histórica da Independência de Portugal. Membro de instituições científicas e culturais nacionais (Grémio Literário, Sociedade de Geografia de Lisboa, etc.) e estrangeiras (CREPAL – Centre de Recherche sur les Pays Lusophones Centre de Recherche sur les Pays Lusophones/Sorbonne e outros), integrando diversos Conselhos Científicos de revistas e de projectos.
Das suas principais obras, destacamos: Eça de Queirós Cronista (1998; 2017); Labirinto Sensível (2003-04); No Fundo dos Espelhos (2003-2007); Emergências Estéticas (2006); Itinerário (2009); Cartografias Literárias (2010; 2012); Paisagem & Figuras (2011); Focais Literárias (2012); Luz e Sombras no Cânone Literário (2014); Do que não existe. Repensando o Cânone Literário (2018); Novas Breves & Longas no País das Maravilhas (2018); Última vontade régia incumprida (2018); No Fundo dos Espelhos. Em Visita (2018); Perfis & Molduras no Cánone Literário (2019), revelam a fecundidade da sua investigação e a fidelidade do seu olhar interior consciente que só no reencontro humano com a beleza se poderá vislumbrar esperança.
Nesta obra, que muito apreciamos, a autora propõe-nos um encontro com o húmus donde brotamos, a que pertencemos e com o qual nos voltaremos a refazer para nos cumprirmos no encontro com a nossa própria matriz, o fio de ouro que nos une a todos, interliga e explica, de povo e cultura aquém e além-mar.
Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita