Escrita e o seu contrário

 

NICOLAU SAIÃO
Tributo


Pórtico

      Com uma vistosa mestria na prosa, a lembrar os mestres da língua que chegaram depois dos diamantes lapidados de José Agostinho de Macedo, Nicolau Saião usa neste seu livro o verso de forma muito mais reservada e lírica, num registo pessoal, delicado e intimista, que lhe serve para amar o mundo a sós através do canto e sem necessitar das palavras que são justificações.   António Cândido Franco, 16-5-2019


E DEPOIS EU ESCREVI
Por Jules Morot
Trad. JOÃO GARÇÃO

    Às vezes é fácil olhar em volta e ver o quê? Talvez tudo, talvez nada. O grande e sonoro mundo das existências desesperadas, prazenteiras ou sujeitas à confirmação dos momentos de angústia. Aquilo que, não sem certa dose de ingenuidade, se costuma convocar sob o nome de quotidiano.

    Então, por vezes, aparece a escrita. As escritas, porque aqui trata-se de existir em diversos tons.

    Mas de que falo eu? Desse excelente amigo um pouco amável, um pouco cínico, que nos conta histórias para rir ou para chorar? Ou da senhora amargurada que nos revela histórias íntimas e muito cómicas à força de serem trágicas? Não, seria demasiado simples, demasiado irrisório virem desinquietar-nos com semelhantes ninharias. As nossas não são épocas amenas, o próprio ambiente nos prega partidas inesperadas, uma parede que cai, um braço ensanguentado no vão duma porta, um vulto inquietante lá no princípio do bosque, aí mesmo, no sítio onde um renque de dálias nos chama à beleza de um fortuito momento de plenitude.

  E depois há o cansaço. O desapego de muitas deambulações. Algumas figuras mortas que de súbito nos pesam como montes de cinza, nos estorvam como matagais insustentáveis.

  E então, de repente, há a poesia.

  Não a que se consegue depois de um paciente exercício de interiores bem habitados, nem sequer a que nos aparece, sem que a esperemos, convocada por indizíveis rituais de amorosa persistência, mas a que de repente explode e nos aguarda e nos atira um olhar de viés e se cola aos nossos passos como se daí dependesse tudo, a nossa vida, a nossa morte, todo um conjunto de poderosas nostalgias em que nos sentimos senhores e servos, o mar e a estepe, a certeza de que tocámos muitas coisas proibidas. Por exemplo, a sageza. Ou, o que é o mesmo, a rota que nos leva do riso desgarrador ao silêncio mais melancólico.

   Nestes poemas coexistem uma raiva e uma ternura muito peculiares. Elas são feitas de ritmos em que se misturam coisas grandes e coisas pequenas, a amargura, a alegria, os desencontros, a devastação de um mundo, o medo e a surpresa indemne, o conhecimento que bem pode por vezes visitar-nos. Mas nunca o desencanto. E nunca a indiferença.

   Mas também o amor. Se não em existência, pelo menos em potência. Ou em expectativa. 

  Ou em perfil, ainda que feito só de penumbra ou, até, de irrisão. Porque somos feitos de muitas ausências, será bom que nos precatemos. À solta, muitos animais incoerentes arrastam-se dissimuladamente na nossa direcção. Há que responder-lhes, não deixando para trás numerosas e sólidas figurações com que nos possam fixar. Neste terreno de suspeitas e escaramuças, conservemos a nossa boa estrela.  

   Porque o silêncio vazio tenta por vezes situar-nos e nós fomos feitos para as vozes. Ainda que tenuemente, ou melhor, sem vermos que rente ao nosso corpo corre já uma outra luz, ou outro sopro de vento que nos dará, compassivamente, alguns minutos mais para nos acrescentarmos à existência. Porque se trata de existir tanto quanto possível em plenitude.

   E ela, acreditai-me, significa.                                                              

    La Jolle (Toulouse), Junho de 2008     


                        

Introdução

PORTALEGRE

A cidade, com o tamanho que lhe é próprio, cresce na noite até ao alvorecer. Os sonhos dos habitantes das casas imersas na escuridão que pouco a pouco se desvanece, vão apanhar o dia pela sua cabeleira de claridade. As cidades têm nome. Secreto ou simbólico, ele é contudo o nome que as caracteriza, dado pelos séculos ou pela inspiração do Mundo.

A cidade… Como um pássaro numa árvore da aba da Serra a vejo agora, a podemos ver agora. Cidade de ruas estreitas onde os desejos e os sentimentos, as amarguras e os dias felizes, os antigos passos cadenciados de carruagens desaparecidas, hábitos desaparecidos, rostos e figuras desaparecidas, deixaram uma sombra de nostalgia. Cidade de coisas novas envolta em passado e ruídos novos, cidade de monumentos onde o espírito cruzou o espírito, onde a grandeza se fixou em pedra, em madeira, em arabescos, em cores indistintas. Cidade que roda como um rosto amado num espelho de casas e nuvens rumorosas. Cidade de torres, cidade de vistas largas onde por vezes a paisagem alarga as vistas curtas. Por estas ruas és feita de passos cadenciados, estas ruas que circundam o teu corpo cravejado de portas, de lugares fecundos, de ausências, de desejos e espantos, de naturalidade e fé, de bondade e de maldade, do sereno existir duma cidade. Povoação de telhados confusos, cruzados, de chaminés com seus fumos, com seus lutos, com seu adivinhar de varandas e ninhos de gente. Cidade das ruas velhas e sonolentas, ásperas, doces e pérfidas, ruas quotidianas sempre diferentes, sempre abertas aos ventos, ao sol, ao revoar das lembranças daqueles que te sentiram com eles dando a volta ao mundo em que existes e te perpetuas. A velha rua dos Potes, do Comércio, a Corredoura, a rua dos Canastreiros, os teus largos diversos – numa casa só se podem adivinhar. Perene regra de vida que é esta em que me é definido o teu povo anónimo e mulheril, viril e pobre, rico de semelhanças com o povo de outrora, de outras terras, da terra mãe que é a terra do homem do dia-a-dia, eterno no seu rumorejar cordial e absorto, com bocas abertas para o riso e a maledicência, para os nomes da ironia e da piedade. Cidade de árvores citadinas, civilizadas, mas que não perderam ainda o seu ar de mistério natural. Cidade de portas vermelhas, de gaiolas e engaiolados, de roupas e gente pendurada, de frutos e de tostões, de igrejas e misericórdias, de impiedade e destino certo, cidade audaz e nobre, loquaz e linguareira, cidade de nomes de gente que a gente inventou, cidade onde os quartéis se entrecruzam com a memória do passado, heroicidade e frustres vivências. Cidade de santos e cruzes para os sete reinos de santidade e perdão, cidade que ao trabalho consagra os dias da sua viagem rotineira, cidade de brazões, de motas, de carroças no mercado, de automóveis e operários, de arte e de artistas, de pessoas que comem e que procuram comer, cidade de contrastes e proibições, cidade melancólica, soturna, alegre, robusta e mercantil, de cabritos e veterinários, de coisas de barro e do barro das coisas que se multiplicam, cidade de brinhol e café, de poeira e polícias, de legumes dentro do desejo incompleto dos nostálgicos do Oceano, pois a fauna do mar das cidades é inconfessável. Se dos teus monumentos me aparto à realidade os concedo: cidade de palácios e azulejos, cidade de pedra e cal onde as fontes iluminadas de figuras e estátuas, de relevos e volutas, de tradição e lenda desenham nas casas senhoriais um segmento de realidade temporal. Cidade das janelas e dos longes do além, a voz que de ti me chega é dolente como o ruído das praças por onde se expande a vida dos que te habitam e te visitam. Cidade de jardins onde o amor se acolhe e surge. Cidade de jardins suspensa no fremir dos cafés, dos cantinhos da má-língua, da gente que toda a gente conhece, da gente que não se sabe se é realidade ou hábito, gente de nomes sonoros, de tradição sabida, nomes que estalam na língua como um pregão, cidade justa e injusta, atenta e desastrada, nobre cidade onde por vezes os homens não se medem aos palmos. Cidade prenhe de velhos, vasos a caminho de outra vida cidadã, plantas que o tempo vai lançar noutra floresta, cidade de árvores e arbustos sob as estrelas e a lua, no suor dos Verões, no pó da velhice que é humana e perdura. Cidade onde à juventude se pode dizer que um lugar será diferente se o olharmos com olhos intactos, generosos. Cidade de lagos domesticados e serenos, cidade que se vê e se apalpa, se passeia e se canta, cidade sentada no jardim e sobre os seus pensamentos. Cidade onde há sempre uma flor à entrada dos sonhos dos poetas de bronze e de carne palpitante, onde as flores podem ser de ferro para as estátuas amarguradas. Cidade dos castelos entre entontecidos e maravilhados, cidade que agrada às crianças, cidade da chuva e das vielas, das serras azuladas ao crepúsculo do cantar dos campos, do casario, dos miradouros e das sombras, cidade de linhas trémulas na noite que se expande contra o seu rosto pouco a pouco diluído, pouco a pouco sumindo-se numa outra viagem para o sono dos homens, do mundo, das cidades onde a frescura corre já anoitecida, inocente e imutável, cidade que se conserva desenhada, fantástica, harmoniosa e prudente no coração das casas e dos que a habitam com o seu indistinto e saudoso aceno de despedida.


OMNIA IN UNO

 

RETÁBULO DA ALEGRIA (de Juan Solano)

Do lado esquerdo o tom é de azul escuro  com

pequenas recorrências de negro sfumato e leves

pontos de branco de zinco: como pombos ou

cegonhas passando na noite   simplesmente

aflorando o seu primeiro sinal de céu ou

madrugada.

 

Depois, no centro, uma figura cerrando sua

dimensão  seu único e secreto

perfil de traços marcados   os traços mais pesados

de vermelho sanguíneo   onde

o amarelo de espanha, o terra de siena se confrontam

com rasgões simulados de tinta desfeita.

 

Essa a alegria, o quadrado

de cartão ardente   acinzentado um pouco nas

pontas   a penumbra

que com as mãos se edificou e

freme   estremece e se une ao que criado foi    seu

 

transfigurado rosto para   séculos e séculos de piedade.

 

EFEMERIDADE

Pequena    pousada sobre

um muro

 

um silencio de água

de vidro fosco

de risco de unha

de sopro nessa manhã

de amor

 

ou de viagem

voltando

sem ódio ou

mágoa

Apenas gesto

contra a luz

 

Apenas um dedo

correndo sobre a

pele

minuto

hora enorme

 

de caminho e

regresso

tão distante.

 

Afago nem sequer

esboçado

mas tão cheio.

 

E tão sem nada.

 

VOAR

Não o vôo mas a

sombra

 

O sinal posto sobre o ar

a dor do vento naquela voz

que cresce

nessas nuvens perdendo-se na terra.

Não a

súbita asa de um

rosto

erguido entre árvores

e montes

como figuras agora contra o tempo

que adeja sobre os ramos

– essa febre como uma chuva errante –

mão que não paira

mas se recorda e vibra

num esvoaçar

tenaz

 

Ave exacta no mundo

– sua serena hora –

e agora já na lonjura

 

perdida e solitária.

 

CIDADE

E ele pensou: hoje serei uma cidade

e depois serei uma árvore nessa cidade

e depois  ainda  um esquecimento

numa rua e num recanto de um pátio.

 

E quando essa cidade tiver figuras

de pessoas e de animais

pôr-lhe-ei ainda mais figuras

que se olharão entre elas e se reconhecerão

 

E desaparecerão pouco a pouco

 

para que fique apenas uma amargura

e muitos risos desconhecidos

 

MAGNÓLIA

Naquela terra não havia magnólias. À beira dos caminhos

nos jardins e nos pequenos vasos de flores dentro das casas

as mulheres e os floristas cultivavam aspidistras

rosas-chá, malmequeres e pequenos bolbos de tulipas vermelhas.

Um namorado, certa vez, colocou na botoeira um girassol.

Meninas dos colégios assustavam-se e, correndo pelos parques

faziam esvoaçar contra a luz candente da tarde pequenas flores campestres.

 

Então, um dia, apareceu na cidade um hortelão

que num pequeno cesto tinha um pano multicolor

sobre algo que não se conhecia.

 

Uma jovem destacou-se de entre os demais e disse-lhe

qualquer coisa em voz sumida. E o hortelão

olhou-a longamente.

E depois principiou a andar devagarinho.

E na rua começou a espalhar-se uma penumbra que de repente

todos perceberam que iria doravante ficar ali para sempre.

 

ÁGUA

De corpo

Onde acabas e recomeças

De terra

Onde é teu o perfil incompleto

De fogo e ar

Onde exultas e te revolves

Do que dentro existe e cessa

Do que de fora brota

 

Daquilo que nunca te encontrará

Do que é pequeno e amplia o mundo

Do que jamais se perdeu

 

Do que se sabe e repousa

Do que não se encontrou

 

Do que morre

Do que é silêncio e claridade

Do que é mais que um sangue

 

Um puro momento feito

Entre ti e o teu reflexo inerte.

 

RESISTÊNCIA

Não apenas a música

mas o som

o ruído que envolve

o oculto grito

 

Não o nome somente

mas vestígio

o timbre recordado de seu

espaço

 

Não apenas figura

mas silêncio

silhueta ou contorno

na memória

 

Não o medo ou o azougue

sobre esta carne morta

 

Mas um vívido traço

ainda que incompleto

 

Mas singeleza como

um corpo inconformado.

 

MADRUGADA

No interior a polpa: um nó convulsamente

preso na carne feita para amar

No exterior partículas

tão exactas e puras como um dia. No depois das paredes

nesse ar que se dissipa

nesse negrume fixo e já disperso

– para sempre encontrado –

o clarão que nos une e que nos leva

entre as horas e os tempos, entre vozes que findam.

 

A cor o mundo o nome

eternamente nossos.

 

GRANITO

Um poeta pode durar sei lá 80 anos

Há mesmo alguns que duram noventa anos

Por seu turno uma mesa de madeira   dessas vulgares

dessas com um tampo de tábua que as boas donas de casa procuram

sem sucesso que fiquem menos rugosas

– e de repente um rasgão de luz o perpassar duma lâmpada

um traço de vela que alguém acendeu no escuro

devolve-lhe o seu perímetro real de pinho decepado

de pobre utensílio ou de superfície usual –

Mas dizíamos nós  aí vinte trinta anos

aí uns setenta se for bela usança de uma casa afastada?

 

Olhei e vi: um muro nem mesmo bem cuidado de

granito

(palavra que contém não apenas o simulacro exterior

de matérias geradas pelo interior da terra

mas também o que se sente ou se adivinha ou que

se desejaria fazer frutificar: e é a mancha

de qualquer líquido por exemplo    a água

mas nunca azeite ou vinho  ou até mesmo mercúrio

o sólido cruzando o seu contrário

enigma)

apenas pedras sobre pedras naquele campo a anoitecer.

 

E um arrepio correu-me dos dedos aos olhos.

E nada mais perguntei a mim mesmo.

E nada mais desde esse momento quis saber.

Disse para mim: granito.

Disse para mim: é então este o granito.

E olhei de novo em volta como se de repente

 

uma emoção anónima terrível singular me tivesse alcançado.

 

SORRISO

Como pode entender-se

sua firme estrutura

de momentos e coisas

para esquecer   lembrar? Participa das cores

(amarelo  vermelho)

com que o nomeiam

e também da incerteza

com que o olham. Antecipa verdades

antepõe-se a mentiras

e serve de desculpa

como serve de enleio. E faz inda esquecer

o tenso  o trémulo

sinal do dia

no rosto de quem já

a noite teme.

Imaterial, tão breve

e tão distante

– mas o peso de séculos

nele mora: um sorriso de quem

conhece o tempo

que pelos anos vai

com sua mágoa junta.

 

A voz que o justifica

sem que o encene  o talhe

para que sempre exista

 

em toda a face humana.

 

DOIS CÊNTIMOS DE AMOR

Dois cêntimos, ou seja: quatro escudos

No tempo das luzes sobre as casas

E das árvores   apenas com o conhecimento de quem se ia

Quase para sempre –

Um pacotinho de rebuçados dos de açúcar e anis,

Duas mãos cheia de ervilhanas,

Três mãos de pevides,

Dois selos para cartas vulgares ou especiosas

Uma esmola pelos que lá se tinham,

Três maçãs,

Meia hora ao bilhar,

Meia hora de ping-pong,

Quatro carteirinhas de bonecos da bola,

Uma vela para alumiar mortos e vivos.

 

Não dá contudo para mandar uma mensagem.

Mas se desse que poderia obter-se?

Um olhar? Um trejeito? Um começo de frase?

Uma palavra encantada e tão terrena?

Um “e eu também”? Um “mas” seguido de um silêncio interrogativo?

Ou um simples beijo luminescente e natural?

 

Ou nada disto – apenas um suspiro, um resto de respiração?

 

Como findar o poema? Com a mão posta

No teu cabelo? Ou com um olhar que se recusa a partir?

Que dois cêntimos são tão pouco.

Que dois cêntimos são tanto.

 

Assim sendo, eu te digo com uma voz antiga

E feita agora mesmo (pois que vozes não há feitas

A não ser quando se trocam os tempos

Contra o fluir do tempo, puros e imarcescíveis):

 

Dou-te dos meus rebuçados

Dou-te um selo para que me escrevas

Dou-te ervilhanas, as mais belas que tiver

Um pedaço de sorriso

A melhor maçã

O meu mais doce beijo para que a amargura não nos fira

 

Com o seu silencio e a sua luz que fulmina.

 

ESTAÇÃO

De Portalegre? Sei onde fica…

Fui lá um dia

co’a tia Anica!

Tinha lá primos

e uma cunhada.

Conheço bem.

Vale a jornada!

 

Tem coisas belas

simples, singelas

de nobre terra:

a volta à Serra,

a fonte nova

e uma grande árvore

cheia de brio

quer esteja quente

ou faça frio

lá no Rossio

 

Tem a Corredoura

mais o Bonfim

(e alguns fulanos

assim-assim…)

 

E tem o Corro

e a grande Sé

que é imponente

p’ra toda a gente

quer tenha ou não

(queira-o ou não)

a sua fé.

E tem comércio

bem aviado

mais a indústria

de fiação

com bom mercado

p’ra dar o pão

afiambrado!

Vale bem a pena

viver-se lá:

tem gente grada

bondosa, amena

(calva ou barbada)

como não há…

 ***

Olhe o comboio que vem chegando!

Então adeus. Tive prazer

em conversar. Céus, que está frio

neste lugar!

 

Sim. Portalegre… Sei onde fica!

Fui lá um dia… Co’a Tia Anica.

 

Tem a Corredoura

mais o Bonfim

(e alguns malandros

assim-assim…).

 

POEMA

Sugeriram-me um poema sobre Setembro. Comecei

de imediato a pensar: tirar um Setembro das recordações? Criar

um Setembro que jamais existiu? E criar como? Só como entidade

fortuita, como vivência crepuscular? Num princípio de manhã?

Setembro como lugar e hora, como estância perdida? Porque

Setembro é algo de impalpável, estranhamente inexistente, um risco numa

parede entre duas portas cerradas. Ou então

algo tão intenso e cheio de presença como uma sombra enorme

num pátio abandonado. Setembro como memória perene? Setembro como fuga

como chegada à palavra e ao horizonte das formas?

 

Eis a voz. Eis o nome. Eis o lugar que se escolheu. Um vestígio

de matéria absurdamente concreta. Porque os demais momentos

são agora um ruído junto das casas que se habitaram

com todo o seu encanto e desencanto primordiais. Com a semelhança

de olhares e de ausências.

 

E assim Setembro me poisou num ombro

como réstea de sol  num dia inteiramente comum. Setembro

que é dito, que é escrito, que é rememorado

Setembro que se olha e nos define como seres ao anoitecer

ante este muro sobre o qual já se vêem os astros habituais

e que são tão nossos como o grito súbito de uma ave indistinta.

 

Setembro que não sei dizer

Setembro que nos foge quando o tentamos olhar

Setembro que lembro e que conheço como uma cor amada

mês que morre e revive em mim como um soluço um beijo um aceno

 

de mão sulcada por muitas linhas e pensamentos.

 

PALAVRA

     “Um dia seremos salvos por uma palavra”  
Diodoro de Sicília

As palavras não caem no vazio

diz no Zohar

nem dele chegam até nós

As palavras crescem umas vezes na amargura outras na indiferença

outras ainda no reboliço das horas

as palavras afeiçoam-se alegremente como um brinquedo de madeira

como uma iguaria que tanto tempo se aguardou

sob uma latada, na manhã ou na noitinha nascente.

As palavras sabem tudo ou então  o que inda é melhor

nada sabem   e buscam o seu lugar entre os objectos da casa

num recanto do contentamento

Uma vez pensei

em qual seria a palavra mais bela, a que de repente criaria

para este aquele  um momento de completa serenidade

um hálito fortuito de alegria

ou simplesmente um minuto de angústia

– aquela que não punge, que é recordação

ou apenas realidade.

 

A palavra roseiral, que em pequeno ouvi

e que sempre me acalenta

a palavra horizonte, que nos intriga e que tem por detrás

tantos sonhos humanos de aventura e de crime

A palavra silhueta, a palavra caminho

e essoutra – madrugada – que abre o nosso coração

e o torna a fechar depois.

E tantas, tantas outras que nos rondam os dias que temos

e tivemos

Por exemplo a palavra que nos cai em cima como uma árvore abatida

– pobreza – essa palavra tão infeliz, tão só. Tão perturbada.

Palavras em espanhol, com seu guiso e suas lonjuras, palavras

em francês esvoaçando, em romeno com o seu passo

balançado como uma dança

palavras em islandês e quíchua, essa improvável levitação.

 

Mas a mais bela palavra sou eu que a tenho

e a trago sempre comigo: nos ouvidos, na memória,

no coração e nos pulmões

Entre as mãos e sobre um joelho, no cotovelo

e num bolso da camisa

e por ela serei salvo. Por ela cheguei ao meu país

onde o mistério se acoita.

Essa palavra

fui eu que a descobri.  E é inteiramente minha.

 

Qual foi e qual será

qual era? Quem a conhece?

 

Quem a descobrir

que ma diga ou então, não podendo

 

que me a escreva, numa folha

amorável que me mandar

ou numa pedra

que me atirar

envolta num papel com ela escrita

 

em qualquer dia que calhe.

 

SAGRAÇÃO

Ora no alto ou no baixo

com o coração desnudo

nas endechas de uma reza

pois que S.Pedro vê tudo

 

Seja de manhã ou noite

com sono com fome com medo

pois que S.José vê tudo

sem lhe contar o segredo

 

Se Maria se declara

se lhe manda uma carta azeda

pois que o arcano tem tudo

mesmo que a morte não ceda

 

Ainda que os outros não saibam

o bambino fica ao canto

e eles os dois vêem tudo

e até a vida é um espanto

 

Vejo metade dum peixe

vejo dois braços no ar

e um coração com três partes

negro azul e outra vez negro

 

Árvore que não é bem árvore

cabeça sem ser cabeça

uma flor vermelha e branca

sobre os dois que tudo vêem

 

Viajante, se pensares

que esta voz é a dum vivo

viste o princípio de tudo

com o teu olhar altivo

 

Eram dois agora são um

lá no átrio circular

depois não serão nenhum

para o mundo começar

 

Aqui, ali, acolá

perto do inexistente

pois assim é que bem bom

p’ra ti e p’ra toda a gente.

 

Pois que S.Pedro vê tudo

pois que S.José vê pouco

pois que a mudança é o génio

 

da lâmpada ainda que rouco.

 

ENVIO

Se nos pedem um poema, num qualquer dia de Abril

a nós que moramos entre o exílio e o reino

que é como quem diz   entre a hora do lobo e a hora

do  cigarro, devemos responder: “Sim senhor. Vá com Deus.

Lá o terá, em tempo”. Ou, entrando na verdade – entrando

na grande manhã – dizer logo que não

que ultimamente os meses nos aborrecem

que há um som inquietante à hora de deitar

em suma, estamos a Sul

da tal alegria, do tal raminho de hortelã

como quando em criança isso bastava ao velho olhar

de um dia a outro dia: segunda, sexta-feira…

Mas descrevamos os meses, descrevamo-los

como mapa deslindado ou então como simples hipótese

(ou seja, maravilha abandonada, imagem temerosa

que o acaso nos ofertou, coisa feita de somenos

ou de somais realidade legítima ou sinistra): descrevamos

Janeiro, lugar onde há um rasto de sangue numa pedra

ou Fevereiro, o tempo em que a voz disse coisas inúteis

e Março, paraíso dos calendários e dos planetas que rodam

no céu de Abril quando a cinza cobre os campos e as fontes.

Olhemos Maio, pátio lajeado onde a chuva já não tamborila

a não ser que uma certa mão faça deter as horas

e olhemos ainda Junho, e façamos uma pausa

para pensar, por fora do poema, em coisas como uma sala vazia

um rumor de passos atravessando o antigo corredor

e a lembrança dos outros países de mistério

para sempre desaparecidos. E Julho, com os seus vultos imprecisos

com nuvens e ventos e outra quinquilharia poética, que

no entanto prende as horas de realidade ou de abandono

dos minutos de Agosto, lugar verdadeiramente ausente

– que nisto não há simulações, apesar do que se possa conceber

e a cada ondear do poema corresponde uma recordação

ou uma tristeza  ou uma

perda de coisa ou pessoa, de imagem ou reflexo

(esse Agosto das flores mortas sobre rostos de pedra) –

E então chega Setembro, a antecâmara dos finos silêncios

quando uma linha traçada num papel pode representar o adeus

e já se anuncia Outubro, guindaste sobre uma ponte derrocada

para que o Natal se apresente com as amplas figuras do mundo

e os ventos tornados brisas de angústia e de lembrança desaparecida.

E antes ficou Novembro, com plantas que se estendem sobre os corpos

com dias de aniversário que os anos foram devorando, com

algumas velas no mar, alguns animais passeando entre as árvores.

O Novembro dos seres e dos não seres imateriais e algo solenes

por vezes com vinho novo dentro e fora do que se escreveu

e os olhos em amêndoa e plantas exóticas pelos cantos.

 

Os meses têm o seu minuto e o seu perfil

chegam sem que a gente se dê conta e então é tarde demais

eles oscilam por vezes como se o cansaço os apertasse

entre designações ora vagas ora luminosas (como a chama duma vela)

e mal nos distraímos é de novo madrugada.

E eis que já partiram, com seu logro e sua bondade

como vagabundos ao luar, olhando os horizontes exactos

naturalmente reconhecidos, amados    com sua eternidade

 

ou ironia.

 

SETE POEMAS EUROPEUS

 

ENCONTRO EM PARIS

Atravesso os bairros e sou um homem só entre as casas

onde patrões e criados vão vivendo o seu dia

E Paris é para mim a face de Manolo Fuertes Refólio

o barbeiro que sabia aparar-me o cabelo

e que depois se exilou nestes lugares de salvação

 

Até Saint Michel verei pelo menos 60 conhecidos

mas o seu rosto já não é o que me lembro de lhes ver.

Notre Dame fica perto e repousa tranquilamente.

Todos os anos a imaginava, como que levitando na manhã

esperando os seus fiéis franceses que a sonham amorosamente.

A ela voltam uma e outra vez e olham em redor admirados

pensando se um de nós acaso não será um príncipe ou um mago

vindo de terras estranhas debaixo de um impulso fremente

 

Depois baixam os olhos com tocante delicadeza

pois a nossa expressão entrou-lhes bem no centro do coração

 

e o ar em volta ficou como se lhe tivesse fugido o sol.

                                                                       (1999)

 

QUERIDO PRIMO JACOB

Chamas-te assim, mas eu apetecia-me chamar-te Tiago

ou Jaime, para dar fantasia aos meus versos

Vou caminhando e pensando nas presenças que às vezes

me visitam nos cinco dias de semana

em que vale a pena trabalhar

os tais em que se ganha ou se perde o universo.

 

Mas eu digo-te: lembro-me do pai e da mãe todos os dias

e estão como dantes estavam: risonhos e um pouco perdidos.

Mas a sua semana entrava pelo mundo adentro.

 

Quanto a mim, sou apenas o NS

o seu menino tão cansado   e sempre repleto de memórias.

                                                                                 (Arronches, em 99)

 

 NA COZINHA

Deuses que entram e saem

com o pão

a fruta

uma bilha de água

um gesto de mãos

um de barriga ao léu

dois três anos

que saberá do seu futuro tempo

interroguemo-nos

 

A mamã põe os olhos no ar

assim são os sonhos

passeios por lugares insondáveis

áfrica   américa

o choro do filósofo encobre o Sol

com as suas mãos emagrecidas acaricia um ombro

 

O mais pequeno olha a um canto

o rasto de algum familiar

avós sobrinhos comadres

um burrinho branco junto ao maciço de dálias

 

Se amais as lindas canções

ide até ao princípio da noite

                                   (Vale do Jerte, 2000)

 

 O DIA DE PHILICARI

Georg Friedrich Haendel

em Meerbusch

no Hotel

com mendigos à porta

um de perna quebrada

outro zarolho

outro recordando os seus dias felizes

uma tarde junto ao rio

com uma pequena que o adorava

Zozi!” dizia ela “Zoziiiii!

De boca aberta pensa

Coça uma perna chagada

Olha o outro do lado   é uma outra

De saias até aos pés   olhando o homem

 

que agora chega de roxo e ouro, as meias verdes

um comerciante célebre que dias antes enviuvou

Zoziiii!” chama uma voz fresca morta esfomeada

Ele sorri   a boca enegrecida   os olhos mais fundos

 

Junto ao rio os mesmos barcos, a mesma água.

Philicari prende o violino, a mão hábil o queixo recolhido

O arco a direito sobre as cordas   um sussurro rouco

 

Haendel sai, a carruagem vai partir   os mendigos

olham-no a pouco e pouco   mais longe   na rua depois

escurecendo   mais e mais

 

deserta.

                                         (Toulouse, 2001)

 

NAZARÉ (VILA E PRAIA)

Não a outra, mas essa: a que do Sítio nos aponta o ocidente

E depois outras rotas para todos os quadrantes:

a praia de dentro

o jardim de fora e do fundo da nossa pequena

silhueta

– morte que se negou.

 

A solidão da praia do Norte

o assombro da luz

que alimenta a penumbra

Tudo o que por alegria calamos num passo estugado e

um pouco temeroso

Não importa, dizias tu,   além é o mundo e ouve-nos

– pequeno veraneante de roupas coloridas que a alguém entregou

sua voz seu segredo

seu nítido momento.

 

E agora

não a outra mas tu

a que não entra nessa história sagrada em que Ester

colocou seu cântaro perto do muro caiado

e que em Azarias achou seu derradeiro refrigério

A mão   a asa perfeitamente modelada

e depois seu abalar para sempre, seu

trespassado e imperfeito corpo até à claridade

–  bóias barcos refluir de vagas    as máquinas

fotográficas ao ritmo do que de longe a serra da Pederneira

conserva e permite.

 

Não a outra mas tu

a que outrora vi entre céus e uma sombra fugaz

Meu íntimo refúgio igual a mil   a cem   a um apenas.

As flores  os fogareiros  para o trabalho do peixe   a jorna entregue

a quem na memória retém surpresa e saudade

 

ou simplesmente no cimo da falésia avistou

horizontes   ruas incólumes   a escuridão das dunas.

                                                                       (2001)

 

RELÍQUIA

Onde está o silêncio onde jaz o silêncio?

Não neste braço   sujo   cortado

Não neste tapete espesso   neste bloco de apontamentos

onde se cruzam insultos   rimas

Não no pequeno perímetro das veias

 

– afinal tudo tudo entre nuvens de carbono

semelhantes a um bafo de camponês sobre a neve

onde se esmagavam insectos e excrementos de lobo

O primo velho outrora mo ensinara num mês adolescente.

 

Onde  em que ilha de desolação

sufocado  incerto  esse silêncio soberano

onde jaz    cerzido por traços de faca de pedra

Não   não o barulho de um passo que caminha para a beleza dum rosto

saindo de um vazadouro para a lama musgosa da margem

Brilhante como celofane

 

O silencio que respira

Sim o silêncio morno de quem procura o vazio

ou de quem busca uma cor imersa na carne recordada

da mão faminta    de muitos negrumes alheios

 

O silêncio que se recolhe

que se desdobra

que nos relembra de momentos e perdas

O silêncio que permutamos

O silêncio para além da luz   entre os olhos de uma fera morta.

                                                                                                                                                                    (Monforte, 2003)

 

ANUNCIAÇÃO

As mulheres do vento   parado como um planeta extinto

as mulheres doentes   as mulheres que cantam com surpresa

o seu vestido estranho como uma renda   como uma absurda mancha

as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

 

entre mim e o céu

 

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

 

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante

ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios

Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos

junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando

estremecendo como uma pétala sobre a água

Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis

escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza

Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval

mulheres de pernas como lírios rosados

andando ao longo duma estrada francesa

as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

 

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias

a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos

a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

 

Dizei-me mulheres  onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou

na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra

Vós sois o sustento dos pontos cardeais

 

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste

e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda

o fumo espalhado no parque abandonado

os olhos tranquilos frios

A rua solitariamente sob a noite de Junho

e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

 

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura

à luz frouxa da manhã   e o frio subindo até às portas como um animal

a morrer.

                                                                                

ELOGIO DO CRETINO

Devo dizer

que gosto de cretinos. Não, garanto que não é por piedade

mas por apreço convicto. Talvez com uma pontinha de malícia

mas sem acinte nem ferrete. Uma (como dizer?) maneira

de tímida ternura.

Afinal – não é verdade?- o cretino

é uma espécie humanóide altamente meritória

e multifacetada: vive connosco à mão de semear, conhecemo-lo

das ruas, vemo-lo

na TV, lemo-lo nos jornais… Ele acompanhou sempre

nos mais expressos lugares

a rude humanidade

desde o fundo dos tempos, desde os primórdios

da vida. À roda da fogueira

lá nas épocas longínquas do período quaternário

quando ainda não havia cretinices modernas ( televisão, rádio

parlamento…) podeis crer que já havia, embora hirsuto

um ou outro cretinus sapiens. E pelos tempos fora

na idade dos ancestros da pré-história

que seria dos inícios adequados

da social organização

sem um par de cretinos a adorná-la?

 

Seja na arte ou na literatura

nos ramos do saber que o mundo louva

ou demais regras e ofícios

como poderiam os cretinos dispensar-se?  Cretino foi, ao acaso

o tolo do Caim, ou o pobre do Job

ou – na quadra das letras – o bom do Pinheiro Chagas

que teve a parvoíce de ser contemporâneo

do Eça magricelas.

E nos domínios vicejantes da pintura

o tremendo Bouguereau, que dizia de Cézanne

que este só fazia borradelas.

Ou nos salões do espírito

sagrado

o magistral Bossuet, a águia de Mons

que Deus tenha bem guardado.

Enfim, nobres exemplos

de douta cretinice. Pois o cretino é plural

e em todo o lado sabe imiscuir-se.

 

(Aqui um à-parte

para os estudiosos de gabinete: não deve confundir-se

o propriamente cretino, cretinus boçalis,  com o pedaço-de-asno

que, sendo semelhante – a olhares  sem estética –

claramente pertence

a outra espécie cinegética).

 

Na boa sociedade, naquilo a que se chama

a melhor sociedade, a tal que se pauta por livros de etiqueta

escritos em geral por excelentes senhoras – às vezes excelentes cretinas –

o patarata é um valor seguro: já pensaram

que seria das páginas sociais de afidalgados

ou mesmo só de notáveis burgueses agregados

sem um ror de cretinos e cretinas interessados

em lhes saber da folha, em lhes saber dos fados?

 

A vida sem cretinos

é como um lar sem pão, teatro sem enredo, jardim

sem flores ou passarinhos (olha que imagem cretina!),

como dizem as poetisas de arrabalde

com vaporosa graça

quase divina.

 

Numa recepção de Estado, no salão duma autarquia,

numa cerimónia de homenagem a um que nada fez mas morreu tarde

ou demasiado cedo, co’os diabos do talento

seja na capital ou na feliz província

a presença de cretinos é uma jóia sem preço:

são os que convictamente

mais aplaudem, sem maldade

nem cálculo traiçoeiro

ou gritam apoiado

criando felicidade

no elenco inteiro

ou mais valia, nas forças vivas da cidade.

(E em geral,

por ironia do destino

o orador habitual

é que costuma ser,  por sinal

o maior cretino!)

 

Sim. Gosto de palonços. Ei-los que desfilam: na política,

no professorado

na res publica (que, como se sabe, significa coisa pública

– dou o esclarecimento

não esteja algum cretino a ler-me) o palonço

é fundamental.

Quem diz palonço diz palonça (explico já

não vá

alguma feminista cretina

pensar que o meu poema a discrimina).

A cretinice pura

é algo de adorável como tudo o que é puro:

um puro mel, um puro amor, uma pura

doidice, uma pura miséria…

 

Mas para que o cretino seja esplêndido

necessita de ambiente a condizer: bons ares e boas águas, está claro

mas também uma família recheada de atenções e de cuidados,

ao velho estilo patriarcal, cultivando modelarmente

os sãos e pacientes

cretinos valores.

Não precisa, todavia

de ser fundamentalista praticante

desses conceitos sem jaça: ele há tanto cretino oriundo

de meios inconvencionais. Como o cacto, o cretino

adapta-se a qualquer terreno, por mais adusto que seja!

 

Façamos-lhe justiça: o cretino, digamos, é como

um livro aberto – o que ali está

não engana. Por isso tantos cretinos, por serem senhores

graves e concentrados

até chegam a ministros,

a assessores,

a deputados.

(Também sucede que alguns

no entanto

nunca passam de criados…).

 

O cretino estimula as próprias artes, as próprias letras. Até a filosofia!

Lembremos

as expressões  fenomenal cretino, cretino piramidal, cretino apimentado,

cretino até dizer basta. Enfim, altos jogos verbais como

tudo o que o humano engenho inventa. Já houve quem dissesse

que ele é como as castanhas: nem sempre

as maiores são as mais saborosas!

Os cretinos rurais…

Os cretinos citadinos…

Os cretinos intermédios

sociais, profissionais…

Os viandantes cretinos…

 

Enfim, não divaguemos!

 

Vou, então, terminar.

Meter um ponto final

antes que, impaciente

o leitor inteligente

me apode gentilmente

de redundante ou, até,

de chatarrão

– espécie de parente

maganão

 

que também merece versos!

 

POEMAS DESENHADOS

1 MAYTE BAYON

Segredos quem os tem

 

Se fosse só

a toalha aos quadrados, o gato na soleira

o pão torrado, o peixe frito

era caso para lançar ao vento

muitos quilos de infinito

músicas de outrora, terrores

e uma que outra solidão pintada

 

Mas desta forma

não é preciso:

há sempre o mar, o frio, essências

 

e outros jogos eternos e inocentes.

 

2 GIORGIO MORANDI

Ondas de sangue adormecem

solitárias, nocturnas, imprecisas

 

As veias são assim, na tela clara

das naturezas mortas

 

As tuas mãos, pausadamente

contam o tempo

da  gestação dos frutos

e desvendam-nos coisas nos sentidos

 

Uma aqui, outra ali

 

E depois  nós olhamos

a árvore, a catedral, o rio imóvel

 

O copo e a maçã erguem melhor

o firmamento, a luz sobre as cadeiras

– são o retrato

das diferentes imagens invisíveis

animais, vegetais e minerais

 

Um ruído lá fora

 

Um pequeno barulho pouco a pouco desfeito.

 

3 CARBAJAL

A gente podia

combinar isto de antemão. Eu dizia:

coloca neste ponto uma pedra. E tu punhas

o sinal azul de um enorme jardim.

Depois eu dizia: aqui faz falta

o som de um apito. E tu desenhavas

três crianças desesperadas. A seguir

eu adormecia. E quando acordava

tudo estava terrivelmente silencioso

 

Na porta, que se tornara transparente

estava pregado um papel amarfanhado.

Nele, estranhos riscos como feitos por garras.

 

Então aparecia de repente um anjo maneta

– que desatava a rir   e de súbito se esfumava.

 

E sem sabermos como, era de novo manhã.

 

4 HUNDERTWASSER

Podes prestar-te a equívocos

no quarto da mansão inatingível.

 

Há sempre uma pergunta

uma resposta a outra coisa

um sentimento que se tornou em símbolo

 

Alguém  que não está nessa paisagem

que nem sequer  conhece os seus contornos

que é linha   isso sim   mas não por dentro

que é pele   mas  só na outra geometria

do que o pincel procura  atormentado.

 

E às vezes nós olhamos um reflexo

de sol que cai onde as figuras existiram

 

e ilumina o seu perfeito contrário.

 

ONZE INSTANTÂNEOS ARCANGÉLICOS

                     ao Floriano Martins

1 Em cada dia que nasce o mundo transfigura-se. Os quatro reinos da Natureza renovam-se a cada momento. E onde as linhas se juntam e separam é que fica o fogo dos tempos. As paisagens do mundo do pintor são por vezes inomináveis, pois dependem da existência animal dos universos dentro de tudo, incluindo os infernos sociais.

E por isso é que a noite e o dia são da mesma cor.

 

2 É do fundo do passado que as velhas obras nos olham, inquietas, aguardando a nossa palavra definitiva. A nossa existência está para além de Altamira, do Parténon, das tábuas de Kirsh e dos pomares de Belleville – mas é dentro do artista e das suas moradas ocasionais que a claridade se decanta.

E por isso é que o dia e a noite não se misturam.

 

3 Estamos rodeados de presenças – de pessoas e de coisas, de palavras ora estranhas ora familiares. Que teremos de maravilhoso para lhes dizer? De revelador, como um sulco numa rocha do paleolítico? Eis que o pintor decide pôr-se ao trabalho: as portas abrem-se por um momento luminoso e, logo após, cerram-se de novo. O que ficou, pobre coisa multicolor, será o seu pão e o seu vinho interiores e secretos – e o artista mais não pode fazer que olhar com as mãos a tremer os continentes fabulosos que entreviu.

E é então que percebe que noite e dia têm a mesma forma.

 

4 O corpo é um mundo incógnito que há que revelar na sua inocência de pedra e de madeira, mas só se não existem imagens virtuais na nossa mão e nos nossos olhos, O quotidiano do pintor é tão natural como uma cadeira, um gato ou um lápis – mas só se o que subjaz à sua busca são os sete continentes da fábula.

O dia, a noite, a amargura dos momentos são lugares muitas vezes só de passagem.

 

5 Só da nossa experiência esquecida poderemos tirar a forma mais exacta, como se uma voz velada nos permitisse traçar num papel frases adormecidas.

 

6 É na calma fecunda do dia-a-dia, na frescura das horas profundas que o artista encontra os tempos em que a vida retém a cor das madrugadas sombrias e das noites longas e palpitantes de desconhecido. Os demónios não se movem, o pincel reteve-os como uma árvore ou um muro de quinta.

 

7 O mundo tal como se vê ou se sente pode caber num bolso, donde depois se solta como um lenço manchado pelos dedos do artista. Mas é preciso que se saiba mergulhar entre os destroços que as existências dos outros deixaram nas ruas.

 

8 O pintor anda pelas ruas e reconhece o traçado do passado próximo. As memórias existem em todas as direcções, são simples e belas, terríficas ou indiferentes – e a mão do artista treme e adeja como que para lembrar a si mesmo que a naturalidade é afinal a mãe dos segredos que aprendeu.

 

9 Nas ruas por onde o pintor se locomove há outras figuras que lhe são paralelas: constitui matéria de má-consciência pretender que o artista tenha algo a ver com todas elas. Se há gentes cuja estrutura lhe é próxima, outras há que apenas são matéria de vómito ou de incógnita.

 

10 A chuva acontece na realidade e na fantasia, o sol existe em reinos diversos, da ficção ao facto concreto. Mas o que é que isso significa? Assim como o lixo é o que subjaz à civilização, o que está por detrás da existência doméstica e social é aferido de minuto a minuto pela nossa consciência do sagrado. No fundo, os momentos absurdos reconstituem uma existência passada algures e plasticamente recriada. Como se o dia e a noite fôssem apenas matéria para quadros de género.

 

11 Os pintores nunca mentem, mesmo quando pensam o contrário. Os anos encarregam-se de os aniquilar – e então a verdade que acharam desaparece – ou de os confirmar – e então tudo se torna possível. Porque, afinal, vai-se pelo mundo com dois olhos, dois ouvidos, vários pares de mãos e muitos pés diferentes: indagando, reflectindo, comparando. No fim, o que se conseguiu de certeiro, de fértil? Apenas alguns segundos de inteira alegria, algumas imagens cercadas de escuridão. Mas esse pouco é o penhor da nossa realidade, aquilo que não se deixa aos corvos e aos girassóis. Tudo está, bem vistas as coisas, para além do que se julgou possuir, mas não será esse o sinal perfeito duma meditação como um pequeno sinal de cor numa tela destruída pelo fogo?

 

ERÓTICA LEXICON

1 (a)

A –  não o simples começo

do amor alevantado   da árvore que se descobre

sobre a cabeça

num espanto de olhos de quem

se ama no chão do campo

ou de pé na penumbra   numa viela esconsa.

(Que aí seria mais

o vulto escuro

de casas na neblina ou o vidrado

de anónimas janelas). Mas sim

o a de abrir

de ficar com o alto das coxas preparado

para maiores desvelos, sem que a mão

por detrás   pela frente

atabafe o grito   inocente de alguém

virgem ainda   ou hábil    fugazmente

num ardil de maior gozo. O a do fim

da meia    preta se possível, ou de grosseira lã  com seu til

sensual   mais o resto da roupa lá no centro

do espasmo ou da voragem.

O a que se exerce na palavra   pássara

nosso amorável gosto de beijar   de ter

o vôo ao rés da boca   nos sentidos

de um abalar da língua p’ra norte ou ocidente

com a tensa amargura   de tudo se acabar.

O a da salvação   de enormíssimas tardes

do passado    da aventura rara

que jamais se esqueceu

porque foi a nossa dura condição. O a do gato

da tímida coelha ou do cavalo

do cão fremente na rua sem que uma voz

reparo lhe faça   por animal o ser. Ou o a

alucinado   do enamorado   por amor se perder

– um destino arrancado

do denso   doce pecado

no meio do coração.

 

E o a do não

do nunca   mesmo nunca   poder ser

de jamais a dois

nos tempos do Tempo   se acordar

e voltar a arder.

O a sagrado e ferido

enfeitiçado   dividido

 

de se matar   de se morrer.

 

2 (b)

Já reparou, disse Jolce, que não há algarismos nem números começados por bê? Ora pense um bocadinho…Para ter um bê precisa de chegar ao bilião. Quase o tempo da Terra!

Tem razão, respondeu Belinda um pouco admirada depois de alguns segundos de silêncio. Porquê aquele raciocínio naquela altura da conversa? pensou de si para si. Um pequeno mistério que deslindaria mais tarde, quando Jolce já não constituísse para ela qualquer segredo, quando o tivesse reduzido à condição que lhe competia de fogoso cobridor, de doce urso roncante sobre a cama de casal – larga e resistente como ela gostava, como ela exigira no seu quarto de meiga aventureira para viagens sem retorno quando as férias parece que são para sempre.

A verdade é que aquele homem a intrigava desde o princípio. Com o seu rosto  cinzelado de arcanjo um pouco brutal e o torso de pugilista amador, assim que o vira no átrio do hotel ficara a cismar. Caçadora de férteis recursos, não lhe passara despercebido o olhar algo febril e o vulto que se recortava, pujante, sob os calções de banho. Ele transportava na mão esquerda um copo de curaçau gelado que fora buscar ao bar e quando os seus olhares se cruzaram ela percebeu que tinha ali um bocado de destino. Seguira-o até à piscina. Chegar a um jantar a dois fôra uma simples naturalidade de fêmea acelerada e experiente nos seus trinta anos de gozadora de rins másculos e sapientes.

E notou ainda, disse ele com a sua voz de baixo enquanto a olhava bem de frente, a mão arrepanhando um pouco a toalha cuja alvura, nem ela sabia porquê, lhe perturbava os sentidos alerta, que algumas das palavras mais inquietantes, mais significativas, é por bê que começam? Beemoth, bendito, Babilónia, bondade, bifronte… Já tinha reparado?

Sob a mesa, com o seu pé Belinda tocou no pé de Jolce. Pisou-o mesmo com decisão e a dureza sentida deixou-a um pouco admirada.

  Mas há outras palavras, pelo menos tão significativas embora bem menos inquietantes, que começam por outras letras, disse pausadamente com a voz um pouco rouca. E atacando sem retóricas escusadas e paninhos quentes: Palavras como possui-me, como vem-te dentro de mim, como mete-mo também aí… Não acha?

Sentira chegada a altura de lhe testar de caras a qualidade de macho esclarecido, de jogador de entendimentos e de mundanais sabedorias. Estendeu a mão e agarrou na mão dele, junto da garrafa de Chateau-Yquem e do copo de vidro facetado a que uma suave coloração cor-de-rosa pálido dava uma ténue luz.

Olhou Jolce e estremeceu. O seu rosto parecia ter ganho uma doçura insuspeitada: os traços mais suaves e ao mesmo tempo estranhamente endurecidos tinham ficado como que imersos numa ligeira sombra, tal qual sucede no princípio do entardecer às coisas que nos envolvem. Na testa que os cabelos castanhos claros coroavam parecia ter-se iluminado, de repente, uma pequena estrela.

No pulso, ao rés das veias salientes, ela apalpou uma leve rugosidade e depois distinguiu – enquanto a respiração se lhe adensava – um sinal diminuto, que contudo se percebia ser constituído por três letras muito juntas, num relevozinho finamente traçado: o bê, o duplo fê e o él.

Quando levantou os sugestivos olhos doirados viu então, talvez só com um leve toque de surpresa, enlevo e algum terror, que os olhos esverdeados de Jolce a miravam fundo, bem fundo, com todo o conhecimento e uma absoluta melancolia.

 

O ARMÁRIO DE MIDAS

SAUDAÇÃO

                        (a Júlio/Saul Dias)

Não conheci o pintor nem o poeta.

Não sei se era mau ou bom como pessoa

Mas espero que fosse um bocadinho mau

O suficiente para não ser     mau a valer.

Só li um poema dele só vi um desenho dele.

Sei que em pequeno viveu perto do mar

Disseram-me que mais tarde morou noutra cidade

Onde havia não gaivotas mas cegonhas.

Disseram-me ainda que gostava de rosas

E de figurinhas de barro     e que sentia

Anjos a pairar por cima dos telhados. E isso

É bom, o coração dos anjos bate ao ritmo da chuva

Ou do andar dos animais, por vezes há anjos

Que morrem atropelados numa estrada enlameada.

Disseram-me também que ele falava baixinho e pausadamente.

Sim. Creio que estou a ver. Parece-me que o conheço

Mais ou  menos: umas vezes monstro, outras

Flor, ele devia noutras alturas ser também peixe ou árvore deslizante

Devia gostar de fruta, de mexer nos utensílios dentro de casa

De ficar parado a pintar no Inverno.

Penso em tudo isto, talvez fosse mesmo assim.

 

Mando-lhe a minha benção

Peço-lhe a sua benção.

 

TRÊS POEMAS

1 E assim chego

– colete, calça e paletó.

 

E sento-me, feliz da vida

na esplanada quase deserta.

 

Espero os ventos do sul

os musgos do norte

o sol de um pouco à esquerda do sudeste.

 

Talvez relinche como uma estrela fogosa

talvez chame o criado   e fique mudo.

 

Talvez, quem sabe, me espante um bom bocado

chapéu de feltro cinzento na cabeça

dócil e omnipresente.

 

Que pergunta, interrogo-me perplexo

fiz a mim mesmo há pedacinho?

 

2 As árvores

Não as que vi em criança

umas de roda do luar espelhado

no pequeno tanque

outras em dia de mortos

aparecendo  desaparecendo

como presenças  incertas

Não as árvores de repente ternas

como sementes

remotas como pedras

 

Mas as que gravitam em torno de nós

aflitas

 

silenciosas como um pensamento.

 

3 Nas arribas do Cabo Espichel

aí pela manhã

um tipo pensativo põe-se a recordar

os tempos dilectos da juventude

quando trabalhava com o velho Indalécio

o carpinteiro tisnado de camisas de algodão

E ambos galhofavam serenamente

um em frente do outro, de pés em cima da mesa

na sala traseira da vetusta lojeca

atestada de móveis como dantes se faziam

perto do farol do arquipélago das Berlengas.

 

     “Quando o vento acalmava, rapariga

      a morte e a doença à porta não chegavam

      à porta não chegavam, digo-te eu

      minha garota, minha garota bela!”

 

Indalécio, rei das cadeiras e das mesas

o das camisas baratas de algodão…

 

Colete, calça e paletó

e às vezes uma rosa na mão direita

– mas não como se fôsse um troféu.

 

E tudo sem palavras, sem um gesto

sem sequer uma canção que vem de longe

que vem de muito longe     e ressoa.

 

AMIZADE

               (a um amigo que me ofereceu um poema)

Excelente poema, rapaz!

E a noite vem vindo  fria fria

e entretanto

há um pedaço de melancolia

escondido,  coitado,  a um canto.

 

Já estamos mais novos

já estamos mais velhos

já temos milagres e povos,  sorrindo

sentados nos joelhos

 

Mais um neto lindo

e uma réstea leve de sol

e tantas, tantas coisas mortas:

chuvas e ventos, recantos e janelas e portas

nas casas da recordação

e ruas direitas e estradas tortas

dentro do coração

– às vezes luzindo como um farol.

 

Vai, rapaz, com teu poema belo

se assim o quiseres, para a noite bendita

ou para outro sonhado castelo.

Mas nunca te esqueças

dos nossos tempos do sete-estrelo

mesmo que de forma esquisita.

 

Certo ou incerto

– ou de voz aflita –

é o futuro do nosso passado:

brinquedo fechado

 

– e há tanto tempo aberto!

 

FALA DE SUA FILHA A SEU PAI JOSÉ RÉGIO

Sou eu, pai! Estive com umas amigas. Fui com elas

Ao cinema. Vim pela rua do Bairro Alto.

Como a cidade

Estava bela   com a noitinha a entrar. Ao pé do Castelo

Um anjo rebrilhava coberto de lantejoulas

Como as dos desenhos do tio Julio.

Comeste, pai? O que é que a dona Rosalina nos mandou?

Eia, pai – jardineira! E leite-creme como tu gostas. E figos

– num prato ratinho  dos teus preferidos!

Deixa. Eu coloco na mesa.  Tu continua a sonhar

Aí junto à varanda,  na cadeira velha de verga.

Já reparaste?

Que de luzes que aqui se juntam! Ficam tão bem

À minha blusa amarela. Sim, tu bem o sabes, a noite vai ser longa

Mas um novo planeta nos espreita lá de cima.

Não tenhas medo, pai!

Eles não andam no quintal. Eu disse-lhes

Que não andassem no quintal, mesmo em Vila do Conde.

Logo terás, depois da música

Areias do deserto e os ventos da beira-mar. E olha

Consertei-te o coração

E o teu boneco estripado.

 

Pai: ontem um moço, na rua

Olhou para mim e eu

Pensei de repente em coisas –  borboletas sobre um prado,

Um grilo tenor em alvoroço, rios correndo – em coisas que tenho

Pudor de contar a outras gentes. Que tolice, pai, não é?

Mas ele, se assim o digo, parece gostar de mim. E estou um pouco feliz.

E peço-te já versos para ele. Como os daquele príncipe

Que todo se danava se acaso a lua não vinha. O meu rapaz

Tem um sorriso esquisito

E uns olhos azuis-lilases.

 

Pai, a casa – esse navio – vai partir. Olha, ao pé, a tua estrela

Do teu menino ausente. Não te entristeças, pai. Estou tão contente!

Dá-me a tua tablete

De chocolate, dá-me a Nossa Senhora, dá-me a tua caneta

De estudante: com ela farei versos

Que tu me invejarás. Estou a meter-me contigo, pois então!

Como tu, também sei pelo caminho quais os passos

Que vão dar aos meus próprios lados. Quando dormires

Eu te velarei. E vejo-te sempre como tu me vês

Pelas pálpebras mal cerradas.

Teremos luz e calor, pai

Como tu bem mo quiseste revelar. Os deuses, coitados deles

Não terão mais remédio

Que ler teus livros inteiros. (Um dia

Pedir-lhes-ei alvíssaras).

 

Não temas, pai. Eu estou aqui. Sempre estarei aqui. Guardo comigo

As rosas desfolhadas

E o meu vestidinho branco. E agora

Vamos, pai. Deixa lá as escritas, escreverás o resto do teu conto

Lá p’ra mais tarde.

(É sempre p’ra mais tarde que se escreve). Vamos agora passear.

 

Que a grande voz do mundo

Eu já ao longe a ouço.

 

VERBO

Eu hei-de ter, algum dia

um barco para voar

entre as plantas e entre as árvores

que uma vez pude encontrar

 

Hei-de ter uma janela

e hei-de ter um pomar

que em vez de frutos dê sombras

e luzes para acordar

 

Hei-de ter uma distância

das que se perdem no mar.

 

Hei-de ter quatro caminhos

e estradas p’ra viajar

e dois mundos lá ao longe

para ninguém mos tirar

 

Cinco dias dum momento

que pude desesperar

que tirei de sobre o peito

que eram dias de encantar

 

Hei-de ter uma lonjura

que tão perto há-de chegar.

 

Hei-de ter coisas perdidas

que se acham ao abalar

momentos, segundos, horas

tão belos como o lembrar.

 

Cantam vozes quando é escuro

o tempo todo a passar

nas canções que em nós se evocam

desfalecendo no olhar.

 

E hei-de ter o som de tudo

sem ouvir e sem falar

 

Que tudo vai pelos anos

a correr e a parar

 

Pois que nada entra nos dias

que nos fazem sufocar.

 

E hei-de ter uma estrela

como o meu amor de amar.

 

E hei-de ter um campanário

para o lume vicejar

 

E sete palmos de aragem

para a noite trespassar

 

quando for a tal parede

atravessando o luar.

 

Que de uns e doutros se encontram

os retratos de ficar

 

se de palavras convulsas

o que acaba vai findar.

 

O VENTO

No começo era o vento:

o vento da chuva, o vento do sol

o vento só vento ou não mais do que um sopro

na cara   no corpo ou à esquina das casas

O vento das palavras e o vento que se lembra

ou que se esquece   e nos faz pensar

em manhãs de vento, do vento que vem

de noite e atormenta

e nos rouba de súbito

todas as memórias, todos os minutos.

 

Vento

das árvores e dos desejos

vento vulgar   vento da solidão

agora já só vento de vazios ou de presenças idas

vento duma ave que passa

vento duma voz que já se não ouve

vento que se ouve ao longe

vento dos anos   vento nas mãos que se não tocam

vento de tudo o que morreu.

 

Vento que não existe

que nunca existirá

vento das folhas que ondeiam no ar

vento das folhas dos livros nunca escritos

vento que pára de repente e cresce em nossa volta

e nos ensina os pontos cardeais

e nos faz erguer o rosto e olhar o horizonte

vento de coisas ao vento   de momentos tão nossos

vento do mar na nossa cabeça inclinada.

 

Vento que sabe nascer nas florestas

nos desertos e nas ruelas

vento que sabe matar nas cidades

vento que corre em todo o tempo   em todo o mundo

vento que é só remorso

só um sinal

 

só o sinal que jamais tivemos

de vento que rola no nosso perfil desfeito.

 

RECEITA PARA UM NATAL

                                                             à Flora

Primeiro, ficar parado

durante um momento, de pé

ou sentado, numa sala ou mesmo

noutra dependência do lar.

Depois preparar

os olhos, as mãos, a memória

e outros utensílios indispensáveis. A seguir

começar a reunir

coisas, por ordem bem do interior

do coração e do pensamento:

a ternura dos avós, uma mancheia;

rostos de primos distantes, uma pitada;

sons de sinos ao longe, quanto baste;

a recordação duma rua, uns bocadinhos

um velho livro de quadradinhos

duas angústia mais tardias, alguns restos de azevias,

a lembrança de vizinhos   ainda vivos mas ausentes

e de uns já passados.

Quatro beijos de seres amados ou de parentes

um cachecol de boa lã  cinzenta aos quadrados

e um pouco de azeite puro e fresco

igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.

Mexe-se bem, leva-se ao forno

e fica pronto e saboroso

 

– mesmo que, nostálgica,  se solte uma pequena lágrima.

 

 MEMÓRIA DE LUDGERO VIEGAS PINTO

Lud   vírgula   Pedro Oom. Os dois vírgula como

dois braços abre parêntesis   com várias mãos fecha

parentesis  dum animal fabuloso  Dois pontos   assim como se estivessem

do tamanho duma casa vírgula

como em Monte da Pedra  traço  a terra onde eu encontrava o primeiro e

combináramos receber um dia o

segundo    Fecha traço  abre a porta   deita pela janela o

toco do cigarro

Vai buscar um desenho deles para   vírgula

por um momento te lembrares melhor.  Nunca nos pudémos lá

encontrar os três   Ponto  o Lud tinha cara de mexicano   o

Pedro sempre o achei parecido com   vírgula

um antigo amanuense  duma novela

húngara  Ponto   como em Lajos Zilahy. Agora

 

um e outro vírgula estão como se fossem dois arbustos vírgula

dois arbustos perdidos numa floresta das Ardenas  Ponto final ou

três pontos  três espaços   três

lembranças amargas.

 

RITMOS

1

Percorro a cidade sem frio sem fome

Ando como uma sombra   diria: uma pequena sombra

um fragmento escuro entre automóveis   carros

baratos   carros de luxo

Um hiato de carne entre casas   Moradias

onde nunca entrarei.

 

2.

Conheço-as há tantos anos    as suas imagens enchem-me

Repleto sou uma pança de reconhecimento   de meiguice

ó casas sem nome   com nome     Casas bonitas casas feias

As casas da cidade habitual

As vozes não entram em mim    ocupam-me

As flores que não há repousam modestamente

no sítio do costume

 

As que há desafiam-nas para existirem paralelamente

Entram na minha sombra

ondeiam   estralejam.

 

3.

Afinal a minha fome é diferente

Talvez  pior que a dos bravos rapazes dos Assentos

ou do bairro anão dos marroquinos

que misturam a polícia   trancam-na em monossílabos

sangue e ruínas   pistachos   guisados de borrego

“morte, onde está tua vitória?”

– como na Bíblia se diz –

visitam com o seu gáudio os parentes

Eles são os grandes avatares do momento.

 

4.

Vede   é a calva dum tal qualquer

límpida como a lua límpida como um sol

e eu sem fome e eu sem sono

Desespero. Tenho de que me queixar    desfaleço

O meu fato de sempre  pende-me do esqueleto

ouço a música e espero   como uma sombra espero

 

Algo passa   vai para um planeta distante    vai para

o mundo   todo o mundo

 

no sítio do costume.

 

SONETO (QUASE) INGLÊS

Como por Abril velho   Abril antigo excede

Voz de meses e de anos   rara vontade havida

Sob sua estrutura ou curvatura feita

Antes de lumes    ruas   e rios adormecidos.

 

Como luz por escura   sóbria murmuração

Ou em mesa de pinho um rasto de outros tempos

Assim se solta a sombra assim figura cresce

Mesmo que só minutos nesses anos houvesse.

 

Num século fôra Agosto   noutro século Setembro

E já por terra adentro as marés encalhavam

Que meses são como horas   dias são como rostos

De muitos anos feitos em seus mares de desastre.

 

Que pois Novembro seja   ou Janeiro para sempre

Barco ou ramo   ou caminho em alta voz firmado

Penumbra que se acolhe em céus de sobressalto

Fragmentos de lembrança como um Outubro ou Maio.

 

Que por nossa memória   meses são como árvores

Que em ondulantes traços palpitam sobre as casas.

 

AFRODITE

Chegar lentamente ao teu lugar preferido

Piscar-te o olho, sentir uma pequena mágoa

Sentir sede, dizer só para dentro

Deus proteja o meu riso, deus me dê um dicionário.

Saber quase ao acaso

que ardes como numa casa um suicidado

em agonia   um animal por exemplo um canário

normalíssimo mas com um adejar suspeito

olhado de lado por alguém que não se lembrará de ti

Um corpo um cântico  sugestivo  profético

sobre uma cama que só há no poema por baixo

 

Contar-te longamente   longamente

– fingir se fôr preciso a amargura das horas –

E contar-te de novo  um bocado  um fragmento

Linhas versos um trecho excepcionalmente amargo

 

Não apenas vinho. Mas também isso.

Ou água ardente. E sal e outras maravilhas.

Olhar-te como se olha um lenço velho

De pescoço ou um par de calças esfarrapadas.

No mar, receio dizer-te, não se encontram

Linhas de fuga, finos tecidos vogando sobre as ondas.

 

Cobrir-te lentamente os membros superiores

De negrume e de coisas tranquilas e secretas

num tempo devastado e inteiramente vago.

Informar-te assim como quem não sabe o que faz

Que mais ou menos há monstros e que há vozes a toda a volta.

 

Os perigos os remotos usos os lindos cabelos entre as páginas

Estão por aqui, por ali, e tu adormeces no seu conforto.

 

TESTAMENTO

          (ao meu filho Pedro, cientista)

 Julian P. Snyders, biólogo

do Instituto Federal da velha terra dos

Iroqueses – os olhos

inteiramente iguais a qualquer de nós – observa

pelo microscópio e vê: o cendrado da cor química

como as folhas de uma tília às quatro da

manhã, no pequeno espelho suporte do

aparelho desaparece – pouco a pouco. O instrumento

é assim uma presença

viva. O ruído

como de aluvião em perpétuo movimento: a mosca

sobre a mesa. Julian P.Snyders, marca

de carne na sala mobilada, ou

António, Ezequiel, Isaías

Joaquim, Moisés, Absalão

nomes muitos, como aves na noite e

na encosta norte do seu próprio corpo

para utensílios raros.

Julian nota qualquer coisa incerta.

Rosada na tarde

branca de madrugada

como máquina folicular ou elemento

primordial, sobe enfim a seus olhos o minúsculo

foco sensível. Vega ou Hiperyon, a madeira e o

tempo destruído. Em 22 de Fevereiro de 1952, um

jardim cobria-se de novos silêncios e a

neve era de novo a cicatriz aberta

na cidade. Uma

lembrança de pastores, o

braseiro junto a muros derrocados, branco

fora e dentro do mundo. Íntima devastação.

 

Antes dizer: que esse

inteiramente só o achariam, surdos

trabalhos de alma, como objectos quebrados.

 

Julian P.Snyders, olhando

retendo, erguendo, buscando

a quem o deve atribuir, enquanto

cataclismo e criação? Nada

como parede onde um prego susteve

imagem e momento.

 

Aqui estive, então

morto e humilhado, acto

como sombra e destino, imagem em nós

projectada. Julian, etc., incomum

a mim como eu a ele – a natureza e sinal –

dissolve-se no tempo como um ardido

bosque em

 

alto caminho impossível.

 

VOZ  DE AMOR

Não te direi poemas e sim vulgares palavras

– como café, cadeira, naco de pão, um copo

de água para refrescar os minutos

ou “cuidado com o carro” ou “que te deu?” ou ainda

“não estejas triste, está aqui a minha mão”. Palavras

com que se fazem os poemas mas agora só presas

ao natural de um dia, ao natural do tempo

ao natural de quem fala com as palavras todas.

Palavras como “pena”, como “chuva” ou então “já é noite!”

e “o dia foi tão rápido”, palavras que irão cair

dentro de um bolso, no coração fendido, nos olhos perdidos

até na música que reboa dentro de um peito ausente

palavras seja de perdão seja de febre, palavras

apenas sons sobre a angústia da tarde. E a palavra “alegria”

e a palavra “segredo”

e aquelas palavras que se não dizem ou se dizem

quando as palavras findam por já não precisarem

senão de silêncio entre duas bocas que serenamente se calam.

Sim, e as palavras desaparecidas

e as que não viveram

e as que saudamos como companheiras de viagem

que reconhecemos e com quem trocamos um olhar

porque as palavras sabem esperar no escuro

e é nesse escuro que aguardam o seu momento

palavras breves

que nos amaram por fora de nós

que nos conhecem

que sempre nos haverão de conhecer

 

palavras como “ontem”

como “depois”

como “sempre”

 

palavras que já não estão em nós

pois existem em nossa volta

são o nosso ar e o nosso sangue

 

o nosso momento infinito.

 

VARIAÇÕES PARA UM AMIGO
QUE ME ENDEREÇOU UM REPTO

         “D. Quixote é o Cristo deste tempo” – MT

D. Quixote e o burro que são Cristo por ora

Ou o Sancho cavalo andando junto dos quatro

Moinho que Rocinante foi antes de todos eles

Mais a voz de Dona Aldonsa que por seu valor se ergueu

Seja manhã ou tarde ou muito depois de isso

Que vai ou fica no século que se gerou de trás

 

Cristo que por Rocinante se conhece com seu imenso

Tempo de burro como peregrino semi-morto e tenaz

Em frente suas andanças com a póstuma piedade

De ser cavalo no tempo de ser não mais que miragem.

 

Mas agora Quixote e Sancho e Rocinante

E D.Aldonsa e o burro sobre as suas figuras todas

E os gigantes que olham seu testemunho de séculos

Seja nos campos de Espanha seja nos outros lugares

Da erma melancolia para um burro ou um cavalo

Só Quixote só Cristo só  Sancho ou só Aldonsa

 

Que param junto a moinhos no depois de essas vozes

Que se geram de frente como no tempo de outros tantos

Gigantes sempre de antes como miragens valorosas

Peregrinos todos eles como muitos junto de isso.

 

E por Sancho ou por Cristo Quixote se faz tarde

Na manhã do cavalo seu testemunho dos tempos

 

Bem cedo por seus campos no depois do seu burro

Seja em lugares de Espanha ou nos séculos de piedade.

 

GUITARRA

                         a Carlos Paredes

O som das cordas retesadas

e o cântico indistinto abandonado

das cidades na noite que ao encontro

da memória e dos minutos   serenamente

dormem    serenamente esperam

sob a luz que num perfil

de homem ou de animal

sabe que além do rio

há um acorde que nunca cessará

mesmo silencioso

 

ou desfeito.

 

DORME MEU FILHO

a Antero de Quental

Dizer: eis a tristeza. Dizer: a voz marinha

Dizer: soluço   ou pedra   ou crime   ou diamante

Aranha talvez não, que o sol morto dos mortos

Escondeu toda a Terra, deslumbrado e medroso

 

Os barcos esperam docemente na manhã

Cobertos de hortências e de cravos

O canto intacto das sementes e das mãos.

 

Dizer: o escuro do mar e a inclinação

Do mar sobrevoando o universo.

 

Uma escada é um sepulcro ou uma ave branca

Apenas dependente do planeta originário.

 

E os rostos aguardam desesperadamente

O silêncio das praias frias e abandonadas

 

Nítidos, com a lua por adeus

Vão saindo da carícia e da lenda.

 

 

SEQUÊNCIA ESPANHOLA

SOLENIDADE

 

Porque me pedes o que não tenho

Rosas aos quilos, nuvens no mar

Um comboio louco p’los campos fora

A suspirar  a transpirar

 

Porque me mostras coisas tão belas

Um anjo cego sobre um altar

Um cantor surdo na  passerelle

A suspirar  a transpirar

 

Porque me dizes coisas profundas

Um som de flauta para encantar

Um tiro no peito dum marinheiro

A suspirar  a transpirar

 

Porque me dás quarenta beijos

E uma imagem subliminar

E um pontapé no baixo ventre

A suspirar   a transpirar

 

Porque me assustas  porque me espantas

Porque me fazes admirar

Os deuses que andam nas avenidas

A suspirar  a transpirar

 

Só sei que tenho a voz aflita

De me rir tanto  de protestar

Por me obrigares a andar aos tombos

A transpirar  a suspirar.

 

    PAISAGEM

Vem um e diz: quando passarem por uma porta aberta

Fechem-na com decisão

Só assim se multiplicarão

As bem-aventuranças.

 

Vai outro e refere: se um desconhecido vos fizer sinal

Num lugar quase deserto

Olhem para o céu e façam uma figa

Só assim as cigarras romperão a cantar.

 

E diz então o que primeiro falara: nos campos

Atirem muitas pedras para o ar

E ponham o chapéu sobre um maciço de dálias

E gritem alto o nome de um animal extinto

Só assim os pássaros os pombos os cavalos

Começarão a perceber

Que o contentamento não tem razão de ser

Excepto se as almas se transformarem

Num enorme barulho entre o arvoredo.

 

E o que respondia dirá então: se uma janela

Numa qualquer rua da cidade

Vos parecer que tem todos os vidros partidos

E que de lá sai um negro clarão

Ponham no ar a mão   e riam baixinho

 

Pois só assim começará a madrugada.

 

 BUCÓLICA

Olha lá, rouxinol

Onde tens a guarida?

Nos olhos de um pedinte

A fazer pela vida

 

Olha lá, rouxinol

Onde vais apressado?

Vou ali à igreja

Mais ao supermercado

 

Olha lá, rouxinol

Tens ideias decentes?

Tenho quatro narizes

E as orelhas pendentes

 

Mas, ai, ó rouxinol

Já não vejo o caminho…

Pede ao senhor polícia

Ou então ao vizinho

 

Mas é que, rouxinol

Vejo além muito escuro!

Compra um punhal de prata

P’ra ´screveres sobre um muro

 

Rouxinol, rouxinol

Tenho medo da noite!

Convida um monstro enorme

Para que ele te acoite

 

Rouxinol, já não vejo

Nem o sul nem o norte…

Compra um preservativo

P’ra dormires com a morte

 

Meu belo rouxinol

Levo vida de cão!

Marca um encontro a Deus

E dá-lhe um encontrão

 

ALENTEJO REVISITADO

a meu avô Francisco

1.

Do rosto que olha   o Alentejo é o corpo

mas não somente o corpo   a árvore

figueira junto ao mar   um pássaro

perto do coração

 

Trigo que escutamos e que vemos

antes de ser   o pão

 

A mão que desvenda

o sítio exacto da alma

vegetal   animal   e mineral

em todos os caminhos

 

Para sempre

um país sob a luz    menino imemorial

 

2.

Durante tanto tempo foste

o companheiro das coisas vivas

 

Terás de encher  agora  os teus bosques ardentes

de neblina e silencio  e animais sem condição

 

E deverás olhar as coisas mortas

como se todas as manhãs elas partissem

 

Tudo o que tens e que tiveste outrora

a paz que em vão buscaste    tantos anos

nesse lugar fecundo   ficará

 

Quanto oceano  quanta sede  quanta voz

na escuridão das searas que amanhecem

 

Alentejo   um pão cortado

na sombra dos candeeiros dentro das casas desertas.

 

JARDIM

Oxalá ninguém esteja à minha espera

naquele lugar que perdi

não sou dali, desapareci

e tinha o Inverno no meu bolso

e a manhã guardada num cofre

Não sou assim, nunca te vi

oxalá tenham mudado de ideias

Tanta alegria imediata

e hoje o tempo como está parado

este é um planeta assombrado

tenho mais do dobro da vossa idade

O mar fica muito quieto no escuro

aqui connosco mesmo ao pé

Um estranho fulano põe-se a falar

para um pouco mais longe poder estar

Cresce comprido um velho braço

para um que escreve sem parar

e de repente fica muito quieto

Oxalá ninguém ninguém me conheça

e nem me pergunte que horas são

Agora vou de sobretudo

e vogo ao sabor da corrente

e sou um trôpego anjo mudo

com uma frase inteligente

no mais incerto lugar comum

Oxalá na taberna não haja pessoal

oxalá as lojas fiquem todas fechadas

oxalá na colina não se erga um espantalho

para termos razão de abalar outra vez

e ninguém repare na mancha que temos

um pouco por baixo do coração

Oxalá que já seja Verão

e que os cães se portem como cavalheiros

e os chapéus sejam sempre amarelos

ao contrário das uvas que são cor-de-rosa

 

Oxalá não me peçam para cantar

oxalá não me peçam para levitar

 

oxalá ninguém esteja à minha espera.

 

OUTONO

Em certos dias

não há quase nada que nos console.

Talvez só uma lembrança

de uma rua ou de uma casa

daquelas especiais

que havia quando éramos adolescentes

e enquanto tomávamos uma bebida

no café onde já nos deixavam estar

seguros da nossa importância

de pequenos pássaros aventureiros

olhávamos pensando

que quem lá morava

devia ter sem dúvida uma vida cheia de sonho.

 

Em certos dias

o grande mistério fica mudo

e o frio nem cheira a alfazema e rosmaninho

e só conseguimos falar a nosso respeito

anichados pelos recantos.

 

É bom haver requinte nas pequenas coisas

meter a mão no bolso

e achar uns tostões perdidos

saber que um gato é não mais que um pretexto

para dormirmos a sono solto

Mas a primeira coisa que avistamos

nesses dias sem agasalho

é muitas vezes só a voz dos meses

o choro dos dias santificados

 

Ou o cheiro dos frutos comidos há anos

e que agora   frementes   se afastam de nós

enquanto a nossa sombra   sem fazer barulho

se coloca de mansinho  lentamente  devagarinho

 

bem junto da porta   p’ra poder ir-se embora.

 

EVOCAÇÃO

Foste a palavra   és a palavra

Mas para lá da palavra está a silhueta

a figura completa e incompleta

além das velhas salas da casa   do jardim

A voz de inverno  de verão

a voz nas manhãs de outono quando um vento súbito bulia

nas ramagens   maiores que o meu desconhecimento

A tua mão no meu ombro   uma inquietude

pelo menino pequeno   tão deserto tão vago

a criança primordial dispersa pelos anos

talvez como um soluço

E era tão frio o corredor naqueles anos

– a luz que chegava vinha nas tuas mãos –

A tua figura um pouco enevoada   como a lembro

Mais tarde percorrendo os muitos domingos a vir

Fazias bolos   rias   choravas

um dia te vi chorar com as mãos entrelaçadas

por um desgosto qualquer   uma morte na família

Um dia te vi cosendo serenamente no clarão da janela

Mãe

onde estão onde estão os caminhos de outrora

o Pai   os parentes   a cabrinha branca

o teu lampejo fortuito de um momento de amargura

Idos   como flocos de neve num horizonte cerrado

O teu vestido que nas feiras te dava luzimento

e o pão que barravas cuidadosamente como um trabalho árduo

erguendo o natural de um momento

Na noite de ruídos   recordo o teu olhar

longínquo como porta que se fecha sem parar

 

próximo como uma toada   um afago   um sereno minuto.

 

CONSELHO

Não faças nada que te coloque

Um pouco a norte do que não sabes

Seja uma página seja horizonte

Ou uma pausa na morte alheia

 

Não tenhas nada na tua mão

Seja um junquilho seja uma carta

Que não provoque a toda a volta

Sorrisos tristes ou escuridão

 

Não tenhas hoje calor nem frio

Roupa estendida numa varanda

Um prato sujo e alguém que grita

Quando em segredo morrem as horas

 

Não abomines anos tão longos

Não faças peito frente ao espelho

Não atravanques o teu destino

Não te atrapalhes não sejas velho

 

Não lembres sempre os dias idos

Não te equivoques no restaurante

Não peças chuva para almoçar

Sê uma enorme sombra na lua.

 

Não faças nada que não te ponha

De novo dentro do tempo inteiro.

 

                                         (Marco/La Codosera 2000)

 

ELE VOLTA SEGUNDA VEZ E CANTA

Eu devia ter percebido que afinal tudo estava distante

devia ter notado que algo estava ao contrário

Daquelas palavras não há   e sabe tudo a mau agouro

As navalhas não se colocam daquela maneira

dentro das algibeiras.  Nos versos elas não são assim

São só coisas p’ra espantar, às vezes para servir de pretexto

ou à culpa ou à dor.  Mas  por favor  nunca à justeza dos dicionários.

 

Eu devia ter visto que os pregos ora aparecem ora desaparecem.

Que a coroa de espinhos  e tudo o resto não perdura.

Como não me fui lembrar que podia ser apenas murmúrio ou sufocação?

 

Que fazia eu ali se os mantos  as rendas que cobriam as cabeças

as vestes tão pequenas olhadas lá de cima

mesmo algum garoto que brincava

mesmo as pedras do chão

ou um pássaro que oscilando cruzava o céu   entontecido

ou um grito de um mais impaciente

de repente eram imagem eram ilusão eram miragem

E tudo muito para além de qualquer ideia feita.

Como não me lembrei eu de que a um espanto

se segue provavelmente um arrepio?

 

Há anos que eles empregam termos que só nos perturbam.

Depois vem um grande pedaço de silencio. Depois

há sempre um  ou uma  que executa uma genuflexão

Depois   repara-se que aquilo não podia ser assim

mas é demasiado tarde,  já tudo se desvaneceu

e só ficaram ruínas  ou p’lo contrário folhas cobertas

de uma escrita compacta que é quase impossível esbater.

Um embrulho   dizem-me  e eu viro-me com inocência

Que não,  dizem-me ainda  só podia ser um animal

Ou antes – segredam-me por vezes  –  tudo o que vês

é com toda a certeza uma montanha. E então faço as minhas contas

na cabeça cruzo um esvoaçar talvez um pouco violento

uma busca de algo inconcreto que me vem à memória

uma pena tão funda   tão abandonada   tão

sem adjectivos nem contornos.

 

Eu devia ter reparado que não basta chamar ou ser chamado

As palavras  as melhores as mais exactas

são mesmo essas  umas vezes só secura  outras vezes

longe de tudo

E é então que se sabe que o ar que nos rodeia

terminou para sempre  É então que se compreende

 

que as coisas não se movem misteriosamente

que as coisas simplesmente   já não estão

nem nos mares nem na terra    nem nas casas

onde se assiste a crimes e a salvações.

 

Talvez ainda vá a tempo,  penso cá para mim,  talvez ainda

possa ver e destrinçar   verbos  e conhecer   substantivos. Que as palavras

tontas e   coitadas   horizontais e verticais    não são

efémeras ou belas,  não são sequer    cintilações

nem tampouco recordações de algo perdido

pois só residem   só se detêm sem que as toquemos

 

não no futuro   não no passado   mas no eterno presente.

 

ESPANHOLA

Ela trazia nas mãos um objecto que desconhecia

Um garfo, um maço de tabaco, três pincéis

E um retrato inacabado e seis nozes esmigalhadas

E duas meias por coser e trinta farrapos de algodão

Que umas vezes levantava no ar outras escondia num bolso

Como um osso no primeiro verso   mas já reconfigurado

 

Trazia uma profunda nostalgia mas isso era apenas engano

E não havia ali por perto papéis rasgados   trapos velhos

Tudo aquilo era não mais que ilusão logro ansiedade

Como se no segundo verso houvesse ternura e terror

E tudo em volta dançasse  cantasse  apodrecesse

 

Ela era uma espécie de ave a quem ninguém pedia contas

Era, digamos assim, um sinal que alguém compreendia

Qualquer coisa realmente absolutamente material

 

Que se raspava da parede    Colocava num belo frasco vazio

Como se tudo fosse desaparecer a qualquer momento

 

como se por trás de tudo estivesse apenas um soluço.

 

CARTA DE SAMYAZA RAFACALE AO SEU AMIGO AZAZELO EYQUEM DE REICHNAU, DUAS SEMANAS APÓS TEREM POUSADO NO PLANETA NÚMERO TRÊS A QUE CHAMARAM EUROBOROS E ANTES DA MUDANÇA DE ESTAÇÕES A QUE DEPOIS SE IRIA CHAMAR INVERNO/PRIMAVERA

Caríssimo:

Não é preciso dizer-te que isto a princípio foi monótono: amarração, desprendimento, notação de azimutes, um pouco da Teoria dos Contínuos, muita indecisão entre ficarmos mesmo na ilha ou irmos até ao continente que se divisava, horas altas, para além das montanhas com as suas cúpulas de neves eternas que pareciam sair da neblina que a certas alturas do dia cobria o mar.

O comandante Theos Gallipoli (tu sabes, o tal que depois foi nomeado pelo Conselho logo a seguir ao conflitozinho com os de Inergaum o que se calhar até foi por cunhas mas não vamos agora por aí) deu ordem para que a princípio ninguém saísse, o que constituiu uma estucha que tu nem calculas. No entanto, a breve trecho teve de se deixar de coisas, até porque depois de tanto tempo de navegação a malta estava realmente atormentada. Um dia vi materializar-se, mesmo na minha frente, a figura de meu tio Asmodeu, como sempre com um copo de boa pinga na dextra enquanto recitava pausadamente a partir dum velho manuscrito que balançava na sinistra: “A vós, os embusteiros, que o infinito passou a provérbio / direi apenas que havereis de ver / num canto do jardim   e às escondidas / uma simples cadeira / um artefacto / para as mais formosas, aquelas / que melhor irão dançar. Nos anos a vir / vos serão revelados /os certos e justos condimentos sobre as mesas: / só sangue numas / só terra noutras mais / E por isso havereis de as mãos passar/ sobre as colchas das alheias camas / em quartos serenos e alegres. Havereis de saber / que a vossa imagem está por detrás / só de branco ou de negro vestida / Como vosso pai venerável / num outono ou num verão / sem intervalos nem sonhos.”. Pareceram-me palavras proféticas, mas não o vou jurar. Em todo o caso posso garantir que não se tratou dum holograma nem mesmo duma projecção mental daquelas que o velho Mummu Tiamat, disfarçado de deus do Caos, nos propiciou para nos chatear aquando da nossa viagem a Bifrons, quando eu ainda era tenente e tu um oficial geómetra. (Belos momentos ali passámos, lembras-te meu colhudo, cala-te já!). Jamais te mostrarei, asseguro-te, a fealdade do mal, falam-me em que há por aqui uns cabelos negros um pouco encaracolados e é verdade, uns olhos assim deste tamanho, ai ai, dizendo com o espírito que encontramos nos melhores momentos, em resumo traduzo-te sem querer ter graça e é garantido: o Samael está a perder as penas da asa direita, mas adiante. Ia eu dizendo que as Obras do Tempo nos fizeram passar de um plano a outro, então eu fui ter com o comandante e resolvêmos que iria eu e vinte e seis outros, a princípio, apalpar o ambiente. Tudo gente de gabarito, estupenda tripulação, o Lucy à última da hora também se propôs ir connosco eu tinha entrado no vaivém e lá foi ele num ápice a buscar o escafandro e o capacete de esmeralda, afinal não iria fazer falta a aragem engole-se que é um regalo. Era já noite entrada quando aterrámos. Uma lua de intensos raios iluminava tudo. Ouviam-se risos para noroeste. Um som de flauta, um zumbido intraduzível que te posso apenas sugerir, falta-me jeito para profeta de certos mesteres triviais, mas crê que era tudo uma nova volúpia. No écran da esquerda nada se via. O da direita ficara iluminado a valer. Como sabes sempre enjoei um bocado a altas velocidades, mas o que se divisava era duma beleza inigualável: jornadas de trinta mil quilómetros, upa, sou capaz de me aguentar daqui até lá sem beber água, quando deixámos de pairar sobre as vagas as flores vieram todas, como doidas, pousar-nos nos cabelos e de repente achei-me sem ar, sem negrume, sem apetite, rodava como uma bola de vidro, entrava na velhice, coçava-me sem dar por isso e de repente tudo acabou. Tínhamos chegado.

Eram tendas, tendas e cabanas de tijolo. Perto, um ribeiro repleto de canaviais, salsa e hortelã, outras ervas banais e benignas, ovelhas e cabras, um ou outro cavalo, meia dúzia de burros. E seres a que depois chamámos homens.

De modo que cá estamos vai já para três semanas e, crê no que te digo, ainda nem sequer apresentei relatório. Como, bebo, até me parece que engordei um bocado. Das sete às nove leio sobre a teoria das coisas plásticas. Eles acreditam em feitiçarias, banham-se de manhã nas águas mais profundas, uma das morenas até me vai ensinar a pescar. Pelo meu lado, ensino-lhe a ciência dos cosméticos. É taful, mexe-se que é um regalo e gosta de me ouvir contar-lhe balelas. O pai é cameleiro e nunca viu mais mundo que o que termina no horizonte. O seu antepassado, um tal Enkidu, ensinou-lhe a fazer vinho e a tecer a lã, eu já lhe dei umas noções de ourivesaria e creio que dará um bom ferreiro. Vamos a ver.

O Beemoth vi-o ontem: ia de braço dado com uma garina esbelta mas de boa peida, olhos rinchões, tás a ver. Veremos o que isto dá. Logo comunico com o lar pelas ondas alfa, dá certo conforto ver o pontinho de luz lá no alto, mesmo sendo um sacripanta o comandante irá gostar disto aqui, insisti com ele para que descesse. Há por estes sítios gente com interesse, têm muitas virtualidades fora a inocência, não sei ainda se daqui a uma semana iremos passar para as terras do lado de lá do deserto.

Há bocado ofereceram-me um assado de pavão real. Acompanhei-o com um moscatel que não te digo nada. Sinto-me cheio de genica, o Iblis vai retransmitir isto em diferido.

Abraça-te sem sofrimento, mesmo levando em conta a ausência, o teu velho

Samyaza, o língua ágil “

 

FALA DO PASTOR NO DIA SEGUINTE

Eu estava   era de manhã   quase junto ao casebre   baixara-me

para desapertar a corda de esparto do pescoço da cabra

Não o vi chegar   mas ele viera a pé

O assobio delicado entredentes   quase um sopro

Retraído para que não me assustasse

 

Fiquei a olhá-lo   era grande a minha tristeza    no entanto

não sentia nem melancolia nem receio  Apenas soltei um suspiro uma espécie de riso

um pouco talvez de divertido pasmo

Ao longe o sol de Março   Ao longe o brilho de uma árvore

Piscou-me o olho  O seu rosto estava na meia sombra

A cabra quedara-se como estátua   agora roçava-se-lhe na perna

 

Segui-o  Ele entrara na casa

Os meus passos como se ressoassem em chão de tábua.

Pousou a mão sobre a mesa   um sobressalto de pó

erguera-se a um canto.

Não lhe olhei nem as mãos nem a testa requeimada

que um vinco de sangue sulcava

Sabes? perguntou com a voz enrouquecida

e todavia clara  Um certo ar de perplexidade

Alguma daquela gente não era de facto gente de bem

Enchi um copo com o vinho que me sobrara da véspera

Sabes? disse-me então   e limpava a boca com um dedo

Alguns deles não sabiam de facto o que diziam

Teriam sabido o que faziam?

Poderei doravante carregar este destino? pensei eu

E contudo a resposta já eu a conhecia.

 

E ali ficou sentado. As mãos abandonadas no regaço. E a amargura

entrou em mim.

 

Ao sair

olhei a cabrinha que se chegara trémula junto da porta

Olhei-a como se do seu pelo um clarão negro se soltasse

Olhei-a e senti o mundo parado para sempre.

 

E assim o vi eu depois que regressara de entre os mortos.

 

O QUE OS OLHOS NOS DÃO

Poucos dias depois

os afagos do vento eram pequenas pedras

salpicos,  sedimentos   ruídos no silêncio

na luz filtrada.

Então, avancei-lhe com o fumo

 

Os deuses todos à porfia

–  autocarros e placas como sinais funestos

emanações de vozes

murmúrios lancinantes:

a senhora do canto   um yogurt esmagado.

Então, avancei-lhe com o riso

 

O latim que se esquece e as contas por pagar,

mãos que batem, obscuras    pés carregados de sono

cabeleiras ligeiramente balançando

como obscenas frágeis aves mortas.

Então, avancei-lhe com  a chuva

 

Rostos sempre de lado, o barulho que faz

como que um circuito por onde o ar se escapa

para este mundo e o outro.

Então, avancei-lhe com  o grito

 

A tua forma agitada. A noite mais que esboçada.

A refeição igual à invisível fadiga

e o rumor que adormece estendido no escuro

Então, avancei-lhe com a lonjura

 

Mas dirijo-me ao doce contaminar da multidão

– tudo agora já livre e jamais consumado

Construída nudez. Submissa sonolência

como se nada os salvasse.

Então, avancei-lhe com o conforto

 

E com essa passagem que a eles vai direita

e se torna no seu impreciso país

E com a neblina

e o desconsolo

 

Porque  tudo se recolhe

e oculta   na sombra viva

Fecunda   solitária

 

e há muito tempo   fria.

 

PESSOA INÚMERO

                                       aos Irmãos de H.

O que me interessa em Pessoa (máscara)

seja ele Fernando, Alberto ou Álvaro

é o ar grego e geométrico da sua casa

– casa dos seus versos exteriores –

onde as plantas terrenas, totalmente terrenas

com que enfeitou os seus dias e noites

aguardam sonolentas no calor do dia

a música, as abelhas, a lenta putrefacção

da clara Natureza na noite nascente.

 

Parece que escrevia bem o inglês

(descobriram isso, embora não seja seguro

depois de falecer)

tão bem que os rostos de Tennyson,

Shelley, Whitmann, Shakespeare

e alguns outros indistinguíveis

vieram pousar sobre o seu rosto engelhado:

numa aldeia galesa os habitantes

julgam recordar-se dum fantasma de gabardina

que numa tarde foi segundo consta   avistado

por velhos, crianças e amáveis mulheres

andando entontecido pelas ruas sem destino

sombra aqui, sombra acolá

– o que era, aliás, apenas fingimento.

 

Por cá evidentemente sua-se de novo

o ranho, o esperma e o sangue dos poetas

(carrascão, ginjinha, uísque e soda?)

a sério e a brincar

o que dá jeito    expressão    serenidade.

Algures, num jardim real, o neófito agoniza

ombro com ombro, barba com barba

para que a chama da candeia luza ainda

numa rua onde nunca choverá

Algures, um laranjal incendeia-se de repente

e as aves partem em bando

mas já frias como dobrada à moda

de nenhures. Numa sala

um gato absorto olha o mostrador dum relógio

olha sem entender

e numa certa janela um lenço acena de vez

 

E a figura de arame de Pessoa (máscara)

dentro dum automóvel de brinquedo

na velha estrada de Sintra

que não existe, nunca existirá

– e por isso, ó minha alma, é bem real –

despenha-se explodindo no coração

 

do Mundo (ausente).

 

PRECE

O senhor Marcelo

o senhor Gonçalves

o senhor Ramiro

que dá passos que ressoam.

 

A senhora Adelaide

a menina Cecília

o gato do senhor Victor

um ronco muito ligeiro sobre o ar, sobre as flores.

 

A tinta no meu peito espalha-se no vosso rosto

canta como um galo saudado o intervalo

entre os meses, os grandes meses bravios

em que acordais de repente, surpresos como os arcanjos.

 

Senhor Marcelo, protegei-me

dai-me o fruto do vosso dia impoluto

Menina Cecília, por favor por favor

dizei-me que a imensa floresta me será sempre propícia.

 

As árvores, as grandes árvores solitárias

suspensas    como ruas que tremem quando amanhece

que tremem como vós, senhor Ramiro, velho compincha

quando ao pequeno almoço ergueis a vossa face lívida.

 

Meus amigos, meus amigos, pequenos animais nocturnos

frutos como eu indistintos minúsculos pedaços de acasos.

 

PARÁBOLA

O verde está ao norte na esplanada da manhã.

O azul por dentro da camisa do primeiro barítono.

O castanho debaixo duma carta dum primo distante.

O preto ficou parado: estendeu-se sob uma laranjeira.

O anil, por seu turno, nada fez.

O violeta censurou-lhe a preguiça e agora vão os dois de braço dado.

O cinzento mora no sovaco de um cardeal francês e ressona.

O amarelo foi devagarinho aninhar-se por detrás duma garrafa de conhaque.

Algumas outras cores dançam de roda. Duas delas cantam:” Naquele dia 

o meu amor nadou sete quilómetros/ ao longo dum rio caudaloso 

e os girassóis estremeceram/ cheínhos de saudade“.

Uma cor pequena e modesta subiu para cima duma cadeira

e pediu atenção. “Era uma vez“, disse com voz clara e sóbria

– e todas as cores, sonolentas, desataram a sorrir.

 

GENEALOGIA

Meu tetravô de Pontevedra  que agora sei que existiu

teria conhecido um dia os pinheirais de São Mamede?

Dessa terra de meigas trouxe decerto recordações

quando foi para Alburquerque para casar por amor

com uma Ana de Cáceres, como o Livro me diz

– o que os meus filhos me deram por lembrança da mãe

como presente de Natal – genealogias fecundas

do coração do tempo. Teria alguma vez andado por estas ruas

ou mesmo pelos meandros do Reguengo?

Ele, que era hortelão, como meus antepassados

mais antigos, que sonhos acalentou

pelos dias, pelas noites duma terra diferente?

 

Já nestas terras alentejanas, chamar-lhe-iam talvez

o espanhol, mas sem maldade, antes de lhe nascerem netos

como ele se calhar com sotaque galego

e memórias de lugares onde seus pais se criaram.

 

Meu tetravô   que buscava nos campos portugueses

– o amor da aventura, a procura do pão

ou apenas horizontes gratos ao seu coração

de rapaz novo e forte com sede de conhecer

outros rumos e gentes, desconhecidas raízes?

 

Bailaria nas festas? Olharia os caminhos

tão velhos e tão novos da planície e da serra?

Guardaria num baú utensílios da infância

que sempre nos acalentam, sempre nos enternecem?

 

Meu tetravô de Pontevedra, meu quintavô já velho

de anos depois lançados na lembrança dos meses

que jamais nos devolvem o passado que tivemos

agora vive em mim, agora sei que existiu

como depois dele houve os Gonçalves, os Garções

e muitos mais do futuro que depois de mim virão.

 

Meu sextavô espanhol, lá da terra das meigas

saúda-me decerto, saúda-me dos longes

com indistinta voz em surdina, galega

mesmo já do além   ou de dentro dum livro

 

– ao hortelão-poeta que agora aqui o lembra

que agora aqui o escreve

 

emocionadamente.

 

POEMAS SINFÓNICOS

      a Robert Schuman

     

 I andamento

Somos conduzidos às raízes dos sonhos, na direcção

do branco e cauterizante calor da visão.

Somos tão moldáveis pelas forças ocultas

quanto por seus próprios moldes ocultos.

É mais fácil bloquearmo-nos contra as aterradoras visões da realidade que permanecermos abertos e vulneráveis ao que elas nos confiam.

Vivemos num mundo fluido, maleável, que frequentemente escorrega por entre os nossos dedos.

Como a inconstância da pele sob a seda

do muro sob a cal

possuimos um cérebro alado

que voa ao sabor da ventania,

um penumbroso lugar transformado

numa grande tempestade solar.  A consciência é

cumprir a vontade de um desejo sempre reprimido, mas

o poeta bebe a liberdade por um cálice de vidro resplandecente.

Se nada é verdadeiro, tudo é permitido”. Assim pensam aqueles

que no dia-a-dia tentam fazer-nos morder o pó da terra para

nos comerem a carne e os ossos como vampiros de lenda.

Continuaremos, todavia, a olhar a noite estrelada como se o Norte

e o Sul fossem uma só coisa viva.

 

II andamento

Ahora es tarde

Ahora ya nada será como antes

Ahora te quiero

Ahora hablaré con el reloj de mi abuelo

Ahora hablaré con la máquina de coser de mi tia

En estos tiempos hay que estar muy seguro

Los objectos son como minutos fugaces.

 

Ahora

cuéntame el sueño que guardas en tu corazón

como la luz en el pecho de un muerto.

 

III andamento

Perco  em todos os dias   eléctricos  combóios  e

todos os dias a máquina de escrever me dita um poema

todos os dias largo o emprego e

o amor cresce-me  nas orelhas.   Mal te vejo, pois

o horizonte é imutável

e nas ruas desce de novo a sombra

Os crocodilos de todos os momentos

devoram-me  a vontade  e

todos os dias renasço.   Primaveras

apavoradas

O sol finge que brilha todos os dias e

as pernas soltam-se dia sim dia não

para correrem nos espaços abertos

entre o presente e o futuro.

 

Parece-te bem? Como se um barco te passasse

sob o nariz?

 

 IV andamento

Mejor así!

Vale.  Soy como un árbol

en el dia destrozado. Alguien

me contempla indeciso,  en blanco y negro

emocionado.

Rompe a llorar y le tiemblan

los brazos

Es que, quizás,  me falta gracia.

 

Perdoname. Lo siento.

 

Soy como um perro

en la imensidad de tus coloridos ojos.

 

PRIMEIRO POEMA DE SAMYAZA

Na parede já velha    leves riscos, duas

ou três manchas vagas, um vestígio

de memórias    de insectos    de retratos.

 

Um pretexto, afinal, para que vivam

recordações saídas de outros mundos

como a vontade súbita de erguer

a mão que nos fascina, uma palavra

desprendida, temível, solitária.

 

Como um olhar seguindo

o nível do horizonte, quando à tarde

os pássaros se despedem para sempre.

 

Qualquer coisa esquecida

plena de movimento ou de amargura.

 

Como o fogo ou a água

num poema de outrora

alheio    ou por escrever

 

Nos outros reinos ausentes

num pensamento vago

 

ou num papel perdido.

 

COMO EM FOLHA ESTRANGEIRA

       “A liberdade umas vezes é azul outras amarela, às vezes visível
         e outras invisível” Georges Schehadé

Senhora vossa excelência  madame chegue aqui ao pé de mim

quando tu me olhas o meu ouvido que há tantos anos esqueci

o meu ouvido esquerdo se assim o digo o do meio aquele mesmo do fundo

o que amei mais do que posso pensar o tal que me fazia tanta falta

ou é dos meus olhos já agora o outro do outro lado

aquele meio assombrado um lábio ou talvez o nariz

uma espécie de abalo de terra um braço um dedo mindinho mais que não fôsse

a estranha combinação entre um ponto cardeal e uma frase assombrada.

Então como é que vai ser?

 

Mas como dizia madame minha senhora sua relambona de firmes convicções

Quero eu dizer há por perto uma estrela um caco de barro um encantamento

Pois não será assim ó tu a quem julguei como Job na primeira aparição

Senhora aqui entre nós por entre os ramos sentem-se figuras um pouco sumidas

E o teu contentamento o teu digamos medo admiração digamos mesmo surpresa

Calada senhora caladinha é que tu devias estar

E mesmo que fôsse frente ao mar   e então e isso que é que tinha

As coisas negras madame não se acoitam em folhas em trejeitos em limites menores

Já devias sabê-lo desde que Hefestos passou para o lado onde tudo se reconvertia.

 

Fatalmente senhora isto teria de acabar mal bem mal

Como  madame  você talvez saiba os destinos ora fecham ora acabam

Ora abrem e se suspendem no ar como uma lamentação intempestiva

E eles sabem compreendem concebem mesmo disfarçadamente

Que um pedaço de carne um bocado de sangue um rasgo de veias vibrantes

Ouvem-se ao crepúsculo. Como se ouvem, essas palpitações!

Um impulso vem de cima, dizem-me algures

Outro impulso vem de baixo, se é que não se enganaram

Segue-se o norte

E depois o sudoeste e provavelmente o ainda mais ao lado

E – quereis acreditar – a solução é fingir que se não vê

Que nem há estrela, nem nada que se pareça com madeira,  nem sequer

Palavras que um qualquer esqueceu e que procura esconder atrás das costas.

 

Madame   senhora   ó linda virgem das vestes arrepanhadas

O melhor é esquecermos tudo e passarmos brandamente para o lugar vazio

O melhor é verdadeiramente colocar a mão sobre as palavras amadas

Palavras isso sim postas num papel, espalhando-se sobre a nossa língua

A língua das palavras   dos gritos  a língua língua dos mitos e dos medos

Pois   e agora como é que eu o vou encontrar?

 

Disso não há em parte alguma

Disso não se conhece senão a silhueta

Disso não há nem menção nem perfil

E muito menos um gesto  a esperança  um arrepio.

Senhora querida madame ó vulto que desenho em mim em ti com emoção com fúria

Com pequenos amuos  com prováveis excelentes intenções

 

Veias minhas  traços meus de sangue sem que o soubesse   mais estranhos que o sol.

 

SEIS FOTOGRAFIAS DE PABLO NERUDA

Primeira foto: Neruda com o pai, aos três anos. A mãe tinha ido a Cochabamba comprar figos. No rosto da criança lê-se uma expressão ansiosa. Nessa manhã o seu primo Felipe, dois anos mais velho, oferecera-lhe um gaio. A mão do pequeno Ricardo (chamava-se então apenas Ricardo Reys Basualto) parece um pouco enclavinhada na fímbria do casaco do seu progenitor.

Segunda foto: Neruda no terreiro junto da casa familiar. Os olhos assustados. Vira nessa manhã uma cobra junto a um muro. Podemos imaginar como à criança de seis anos essa visão inusitada perturbara. Traz uma camisita branca de folhos. O cabelo é um pouco revolto, como se lhe tivesse dado uma brisa indiscreta e prazenteira.

Terceira foto: Neruda na sala de aulas. Percebe-se que olha com alguma inquietação o professor, como se este lhe tivesse comunicado coisas inomináveis. Na carteira em frente da sua, uma mocita sensivelmente da sua idade deixa ver meio-perfil. A sua expressão é de clara expectativa.

Quarta-foto: Neruda numa praça de Santiago. Tem um pouco mais de vinte e três anos.

Um ar de intensa concentração. Olha a direito, com seriedade e decisão. Os passantes nota-se que reparam atentamente neste jovem a quem as musas decerto têm sorrido. Entende-se que o autor de “Residência na Terra” possui mil razões para permanecer tanto no mar como na terra dos silêncios e das buscas.

Quinta foto: Neruda junto de César Vallejo. Um ricto intraduzível paira-lhe no rosto. Vallejo, que mais tarde iria morrer de uma doença desconhecida, com os ombros erguidos mostra ao amigo a força de quem tem por si o génio e a esperança. É sabido quanto Neruda o admirava, ainda que não o soubesse ou pudesse demonstrá-lo.

Sexta foto: Neruda numa sala, intensamente concentrado, ouvindo a telefonia. Transmitem o relatório Kruscheff, cujas revelações iriam espantar intelectuais em todo o mundo. A expressão do poeta de “Canto geral” é de claro sofrimento. Um dia mais tarde, na Isla Negra, Pablo Neruda irá relembrar as conversas com Vallejo e uma dor muito funda atravessar-lhe-á o coração. As recordações da guerra de Espanha afinal permaneceram na sua memória até ao momento devastador da morte.

 

POEMA

Uma coisa pequena

quase inútil, afeiçoada no dia

tão vaga na noite

afastada nas horas do mundo

calada      porque não mais

que objecto achado algures.

 

Além do elemento vegetal

para todos os anos

como diminuto utensílio

só para ser olhado

nem sequer pensado

De só ser visto

 

pelos olhos amados.

 

UM NATAL ÁS CORES

Em geral estava frio. Um frio límpido e seco

com um tom de cobalto muito escuro no horizonte, quando

surgiam no céu os primeiros luzeiros de Orion ou da

Ursa Maior. Para os lados de Ocidente, a seguir à noitinha, um clarão

débil propagava-se sobre o bosque de castanheiros: e eram as luzes

da cidade acocorada no princípio da aba da Serra, estendida

no pequeno vale para lá das colinas e dos pinhais.

 

Às vezes

chegava alguém até ao muro da azinhaga – primeiro sinal

de casas e de gente: e eram vizinhos das quintas em volta, alguns bufarinheiros

com a sua mala de corre-mundos, um que outro mendigo mais afeito

aos campos e à sua generosidade em que as Estações

se sucediam com figos, castanhas, laranjas ardentes de sumo e de cor, o bom pão dormido e coberto de toucinho rechinante ou rescendente de frescura

com o queijo duro e a manteiga entre duas capas de presunto. Porque à gente

de boa paz nunca se negava, por vontade do Pai e da Mãe,

o aconchego do estômago e uma que outra placa desviada ao serviço

de domésticas, económicas utilizações. E havia o tio Noitinhas

que, contava-se, fora rico e decaíra; o tio Chico do Mel (esse levava sempre, porque tinha o meu nome, um pedaço de chouriço ou de paio, de reforço);

a ti’ Ana Grila, que corria Ceca e Meca desbastando por dentro

a saudade de um filho e de um marido que lhe haviam morrido de desastre

lá para as lisboas da construção civil; e o tio Martinho,

sempre com um canito à ilharga: figura e retrato escarrapachado

do homem-do-saco que tantas vezes me faria

comer o prato sem tardança, ele que era manso e sereno

como um irmão de Heliópolis e cuja voz,

tirante as barbaças de monge, era suave posto que rouca e mais afeita

a dialogar com o rafeiro que a assustar fosse quem fosse.

Mas as crianças, já se sabe, vêem o tempo

com olhos maravilhados e sobre a sua imaginação corre uma brisa

deslumbrante e divina que lhes permite ver um emissário de mistérios e segredos

num pobre pedinte alentejano.

 

E depois, quase de repente, era Natal. Com todas as suas

maravilhas incógnitas: o grão cozido e pisado para o recheio

das azevias largas como uma palma de mão

ou diminutas

como um ninho de andorinha-do-mar; o bacalhau que o Pai trouxera

da cidade de juntura com misteriosos embrulhos

encaminhados à socapa para as secretas geografias das gavetas

da cómoda grande; a Tia cortando o pão

para a sopa de cação apaladado de alho

e demais ervas próprias, a Mãe estendendo o manto

das filhós depois fritas com cuidados e saberes de alquimista, a Mana

que ajudava neste e naquele trabalho para depois saber

quando crescesse com filhos e responsabilidades por dentro

e nas mãos operosas. E, pela noite,

vinham então a vizinha Mari’José, o vizinho Manuel Planeta, as filhas

Jacinta e Júlia e, às vezes, a minha Avó das histórias

com seu saquinho de malhas, lá de longe das Arronches,

e no meio duma conversa, dum riso, duma garfada, dling dlong

e era já meia-noite? Já, a missa do galo sentida por cima dos pinheiros, chegada

da capela de S. Cristóvão ainda não havido o Atalaião?

Sinal de fraternidade na noite subitamente silenciosa.

 

Um Natal às cores. Com as cores do passado. Fotografado

pela memória da infância e da recordação agradecida.

 

CANTOS DO DESERTO

1 Coisas, coisas e labirintos, pedras entre

pedras – que o sol aqui se põe muito mais tarde

A sonolência da erva    Fórmulas mortas

que a memória nos dá. Tudo o que de longe pela noite

se vê   Animais parados como desejos   Como

desconhecidas raizes   Figuras que de repente

erguemos por dentro (a casa nova e sem ninguém, a

oliveira cortada, a mágoa de saber que flores e frutos

são já de uma outra vida, pois que os meses

inconclusos se afastam).  Bosques que num repente

devagar   se consomem   Destroços na lembrança

nos olhos  ou nas chagas

Diferentes coisas sobre   os espaços da manhã.

 

2 Vestígios de as águas   Troncos mortos   sílica

nas páginas impressas.  O rosto   um rosto

que se sabe perdido   As leis do mundo

serenamente postas na paisagem. O negrume da noite

e um quadrado de açúcar no interior do tempo

Na chávena de chá

oferecida    bebida  no sopé da montanha.

À nossa frente, a casa

e uma figueira morta. Olhos semicerrados

pela  ardência do ar – um corpo que submete

passos   paragens   sedes.  Que em tudo se define

nossa pura vontade      Não de

apenas zonas    rochedos  ou areias    As aves

que nunca iremos ver.

 

3 Por uma palavra se

              começa, por uma lembrança se inicia

a trajectória  o poema   a travessia    o primeiro

rumo vicinal: a voz de um Senhor

Alarcón, vereador da Cultura – segundo o disse,   parente

do Pedro António. Conversa de três bicos, conversa

de quem não tem do deserto senão mapa de poiso

 

eventual de cabras   se as houvesse.  Não poder informar   não

alcançar, não ver

silhueta de acanto ou pintarroxo, não poder ter

nem papéis nem folhas de oliveira   na cabeça

como o chapéu      do conto

dos montes escalavrados   Não ter viagem bendita para dar

a visitantes além do seu pequeno

rosto de   um vaqueiro de pechisbeque.   Assim

foi meu encontro primeiro com essas rochas de   ao longe

ao perto  ao raiar dos caminhos :  o Alarcón

sem telefone para as dunas primitivas   para os

movimentos da alma:  a secura o calor que em estradas

de outra Europa pensei, vi  e multipliquei

para meses distantes num depois   no caminho digamos  entre

Assumar e Arronches,  no pino desse Verão

recordado: o combóio para Sul   que os dias grandes nos davam

– seu verdadeiro coração dos espartais, do braço que embala (cinge) –

e era

um olhar nostálgico bem junto de Piedras Negras, a redondez

acústica    o diagrama público lembrado   a força

de um deltóide sustentando a mochila    ou então

a rotação da luz      a aridez sonora

da singeleza.

 

4 Não se entra no mundo

por desejo claro.  Nem por

amor sequer. Não é figura erguida

ou rente ao chão   nem

rocha na paisagem   por tristeza

pensada e logo

escrita: seu sol, seu mar, seu

multiplicado silencio

de alegria. Não há vozes nem

figuras descobertas, desaparecendo no lugar

da pedra e terra sentidas. Por feliz

minuto, sua brusca

inclinação de serras prolongando-se

por entre a sombra  do obscuro pensamento

do que se teve e se esqueceu. Coisas que se palpam, se sustentam

na mão mais do que em olhos

idos para sempre. Aqui a geografia  vista como se mais

ou menos fôsse areia ou xisto ou fibrosa

matéria vegetal, ou algo de que

muito tempo depois se fizesse

utensílio propício a trabalhos

perenes, como algo bem preciso para os minutos

fugazes da existência: mesa limpa

chão lavado e o demais

que nas casas existe, a roupa e o

recheio de vidas dispersas pelos dias: um adeus entre

 

caminhos que se perpetuam –  o penedo tocado, as plantas

vivazes e a água que se pensou

não existir senão em longínquas

 

paragens desconhecidas. Não existir

senão na vontade ou em

extremas solidões.

 

Não na palavra, não em coisas sobre a silhueta que nos rodeou

(esse tempo   não o que nosso foi ou que nem

sequer nunca tivémos  mas aquele

que era apenas imagem ou música difusa) e eis

a prolongada imensidão, o perfil duma memória, o gesto

de cabeça rodando, de rosto ferido  um passo e outro passo

entre montanhas ao alvorecer.

 

Ou a sua lembrança

em momentos de amargura e enquanto a terra

espera o seu fulgor de eras distantes

de rumores de vozes

de um som de porta batendo

fechando ou erguendo   o dia

 

Na mão que se suspende

e desenha depois   o princípio

e o fim  esperado

de todos os séculos   das noites

 

da derradeira manhã.

 

5 Campos ardidos, campos onde não há casas nem uma parede mesmo derruída, lugares de alegria sob as manchas de sol ao longe nos montes subitamente brancos, restos de coisas feridas em terra ou no ar que se dissipa perturbando-nos, percorrendo-nos na manhã e na lembrança das horas nocturnas.

Ardidos mas não de lume, uma fronteira que passa ao norte do mar, um grito que nos sacode o coração e é um pássaro que no cimo do morro escalavrado aguarda como que a lua que não chegará envolta em halos difusos de cor sumida, como uma penumbra na montanha que espera outra sombra no desfiladeiro apenas entrevisto.

As moitas raquíticas nas cumeadas, por vezes brilhando como pequenas chamas negras sem cheiro de Primavera, sem odor de Verão, sem ressumar de Inverno. Outono de marcas meio destruídas num solo que é como palavras soltas no nosso pensamento, na nossa sabedoria esquecida e de que conhecemos todos os sulcos, todos os vestígios, universo perpetuamente dependendo dum destino feito para maiores silêncios, alegrias e desesperos, a lei das suas vidas de força desflorada, de mistério despojado como um coração em todos os abandonados bosques da terra.

 

NÃO VOU PARA PASÁRGADA

                                                         (ao Ricarte-Dácio)

 Eu não quero ir p’ra Pasárgada.

Lá, estão os esbirros do Rei:

eles conhecem-me e sabem

tudo o que sei e não sei.

 

E o que sei eu? Sei amar

o que o ódio tem de mais fundo

sei que palácios olhar

na louca elipse do mundo

 

Sei o que chega e não chega

em bondade e maldição

e que, não chegando, entrega

o estranho, o raro, a traição

 

Conheço tudo o que navega

– antes assim do que assado –

como barca demente e cega

dela só tendo o mau-olhado

 

Mas não irei p’ra Pasárgada!

Mesmo co’a filha do Rei

nos meus braços, doce e amarga

para o que sei ou não sei…

 

Estarei contra o que leva

à vingança de esperar

o brilho sombrio da treva

de pança cheia, a arrotar

 

como os esbirros do Rei

dos que em Pasárgada estão

– e a quem somente darei

o raro, o estranho, a traição.

 

TEXTOS MAQUINAIS

1 – Ossos, pele, vento e sangue em torno dos anos que passaram. A vida. E também os produtos da Terra que existem na nossa memória: o perfil de hortas e pomares com as figuras de que guardamos um sentido de alegria e remorso, a doçura dum fruto imaginado.

2 – Põe a mão sobre a página de um livro e como se nada te oprimisse deixa-a repousar enquanto lá fora ressoam vozes desconhecidas. Talvez seja também assim que se acariciam as palavras. Palavras como coisas vulgares e repletas de amargura, serenidade, um som de sino dentro do livro.

3 – Estás absolutamente só e é noite. Bebes um copo de água e sentes o vidro de encontro à palma da mão. A mesma com que tocaste a página do livro. A mesma que te serviu para tanta coisa bela e inominável. Se agora o copo se despenhasse e partisse seria apenas um ruído sem relevo na vasta casa sem ninguém, mas contudo fervilhando de presenças que jamais poderás abandonar.

4 – Não te levantes. Não te sentes. Não comas, não espirres, não fales. O príncipe da ilha vê-se naquele quadro onde as estrelas são pedaços de metal simulado e não rodeiam nada que não seja apenas um eco. Do que disseste e não chegaste a dizer. Mas tu falas, espirras, sentas-te e comes, levantas-te e contigo se levanta o mundo e a sua circunstância.

5 – O equilíbrio entre um mas, um que, um de ou qualquer outra palavra é uma verdade que nunca pudeste entender, que nunca quiseste pronunciar. Por isso este escuro e este calor não são mais que elementos de um discurso destruído.

6 – Um universo de simulacros. Um momento de pequenos gestos onde não se conta, mesmo que penses o contrário, o brilho de um espelho que não é mais que uma coisa, apenas uma coisa insignificante. Sombria como tudo o que já nada nos diz.

7 – Alguém conta: quando vinha de volta enganei-me na estrada. Fui dar a um sítio onde havia apenas lixo de objectos inutilizados e quase podres.

E sem que se perceba porquê, uma sensação de medo apodera-se dos convivas.

8 – Escrevo. Depois apago. Era demasiado evidente. O som de uma máquina que num edifício ronrona, geme, perfura a manhã. Evocava uma rua sem ninguém, o rosto de um garoto andando devagar e olhando as portas…E de repente compreendo que tudo tinha um significado diferente, que tudo existe no todo, como algures a morte e a permanência.

9 – Um ferro de engomar junto ao caixote de tábua meio partido. Um cesto de plástico e outro de verga. E isto pode ser a revelação de um mundo que nos responde a cada momento se o soubermos interrogar entre quimeras e violências.

10 – O mar. A água do mar. Espessa como o óleo dum carburador, mas com uma estrutura de areia ou de vinho forte. A água que corrói, que lava e que serve para brincar, para olhar com alegria ou soturnamente nas praias das terras desertas. Nem sangue nem magma, apenas algo que é bom sentir que existe por fora, sob a lua e o sol.

11 – A terra. A terra que pisas e que vês: a terra castanha das hortas, a terra clara dos caminhos vicinais, a terra que é o contrário do metal com que se fazem as máquinas que andam sobre a terra e que vogam no espaço. Metal que dela veio e a ela voltará, como a carne dos homens e as sombras dos seus pensamentos.

12 – Uma série de palavras vulgares, bem como os olhares fortuitos e de relance sobre as coisas do dia (casas e automóveis, um rosto qualquer) e da noite (o negrume, a luz de uma cidade ao longe, os astros nocturnos) podem comunicar-nos a maravilha e a estranheza dum momento – tal como se fosse a súbita aparição dum mecanismo desconhecido.

13 – É a meia tarde. Nem um ruído se ouve deste lado da quinta. Sob as figueiras antigas, muito copadas, quase rentes ao chão, o acaso e o tempo e o desmazelo dos homens deixaram ficar pedaços de máquinas e utensílios velhos, desconjuntados, como se fossem esqueletos num campo crestado pelo sol de Junho.

14 – “- Se fosses uma máquina, qual gostarias de ser?”. O outro ficou interdito, depois um pequeno sorriso surgiu como uma porta que se entreabre: “Gostaria de ser uma debulhadora, uma dessas que quando eu era miúdo passavam perto da minha casa ao crepúsculo. Estrondeavam e eu vinha a correr, um pouco amedrontado mas fascinado e só voltava a entrar quando se perdiam na curva do caminho. Como um bando de feras ou uma nave que passa no firmamento”.

 

RETRATO

Foi no Verão e foi no Inverno

e se umas vezes era de tarde, noutras

vezes era de manhã. E era dia e era noite

quando isto foi. E foi imagem desenhada

e foi lugar e utensílios

noema e recordação e foi

porta e parede

o odor das sopas e dos assados, o odor

das outras partes da casa e do

exterior que entrava pela sacada em frente

da entrada

do poema.

 

Isto era

isto foi

isto é

ou seja

 

isto é, na verdade

que é como quem diz

isto não passa de retrato ausente e muito aqui

e muito acolá

mas é mais e por vezes menos, mas

em todo o caso é, é claro(escuro)

uma fotografia, leia-se

– um lado de fora das coisas

um lado de dentro das coisas

em resumo e concerteza

 

um fora que está por dentro dos seres e do mundo.

 

MOMENTO 1
(Serra de São Mamede)

Na região que habito, algures entre a África e a América, num lugar de montanhas e de florestas com pequenos cursos de água e casas entre as árvores, os entardeceres são quase iguais aos de qualquer parte não fôra o aparecimento repentino de figuras que não sei nomear.

Às vezes soam pelas quebradas trilos de flautas e solos de saxofone vindos como que do interior da terra. Ou será do ar que gira como se estivesse em sobressalto? Não é certamente das habitações, plasmadas num estranho sossego.

Em certos dias o horizonte perde-se na bruma. Então as figuras agitam-se, ganham tons mutáveis e luminosos e os que ali residem sentem uma brusca exaltação. As mulheres erguem os braços e rodopiam, observadas pelos homens que não ousam proferir palavra.

Já houve quem visse alguns com o pranto a escorrer pelas faces.

 

MOMENTO 2
(Niagara Falls)

Quando se chega da estrada que atravessou a pradaria e os bosques, é o espanto: como é que aquilo é possível? A seguir vem o encantamento: o rio coberto, na parte de cima, de ilhotas verdejantes e, na parte de baixo, de uma nuvem de fumo de água de vento e de remoínhos devido à força da “senhora do nevoeiro” (lady in the mist).

A força? A graça, para melhor dizer, porque aquela imensa e poderosa massa-de-água possui uma elegancia, uma beleza a que chamaria ática. Escorreita como uma escultura criada por um deus artista e benfazejo.

Ficam-se cinco, depois dez minutos, depois um quarto de hora. Depois meia hora e a seguir vai-se até à loja de recordações e merca-se o que o bolso nos pode dar.

Depois volta-se – para mais uma vez se lavarem os olhos naquela maravilha que também surpreendeu Chateaubriand.

Porque ela é a melhor recordação. Que nos acompanhará, interiormente, pelo resto do nosso tempo.

 

MOMENTO 3 
(Georgian Bay)

Um perfume de paz. Árvores e mais árvores e um esquilo cinzento que, de súbito, salta quase junto aos nossos pés.

Num segundo, percebe-se que a felicidade é possível – por um momento que nos parece incorruptível.

Ao longe, o grito de uma ave de que nunca saberemos o nome. O castanho dourado da ramaria e, por sobre a colina, ao fundo, o sol sobre a praia do Lago Huron. Quase como se fosse em Carcavelos, não estivéssemos no antigo território dos corajosos guerreiros dos Grandes Lagos.

Em Sainte-Marie-des-Hurons subi a um pequeno forte para turista ver, enquanto os meus companheiros desciam ao restaurante servido por empregados índios.

Absolutamente só, olhando o rio e as florestas naquele fim de tarde, senti chegarem até mim as memórias adolescentes das histórias lidas no “Cavaleiro Andante”.

Depois, com a nostalgia a coalhar-se-me na garganta e nos olhos, fui para o restaurante acompanhá-los num retemperador “indian steak on the plate”…

 

MOMENTO 4
( Serra de Portalegre)

Ir à serra entre Porto da Espada, S. Julião e a Teixinha, em certos dias acalma-me e ilumina-me: é um dos locais mais isolados do Alentejo, um verdadeiro mundo à parte. Nessas alturas é-se imperiosamente suscitado a contemplar a urze do monte. E algumas paredes derruídas que, saiba-se lá porquê, ali existem. Seja-se Sagitário, Peixes, Virgem ou Leão, quem pode escapar à sua beleza, à sua serenidade na tarde cheia de sol ou sob as estrelas nascentes?

Tive de a fotografar. Mas depois as fotos agiram sobre mim num poderoso impulso e resolvi de chofre acrescentar-lhes elementos desenhados que as transformaram noutra estrutura. Ficaram de maneira peculiar (entre o mineral e o imaginado, o existente e o rigorosamente inconcebível) e parece-me que se uniram nelas o concreto da natureza e o abstracto da desconstrução.

 

VIAGEM

Naquele ano, na sala de entrada

do Museu do Homem (Otawa), em certos dias da semana

e durante alguns minutos os visitantes

mais observadores repararam numa aparição

que se materializava perto das esculturas

feitas de pedra macia pelos habitantes dos bosques

da província do Ontário. Um ou outro supuseram

que se tratava da figura de um homem-medicina

que buscava a sua antiga morada. Outros,

no entanto, disseram que não era mais

que um ectoplasma pertencente

 

a um cidadão da longínqua Europa.

 

ÁFRICA

1 Não, ela não fica ali à esquina. Ou talvez fique. Em todo o caso, poderemos dizer: os altiplanos de Kundelunga. Ou: os primeiros passos no deserto de Niyery, perto de Namanga e dos grandes planaltos como enclaves de plantas perpétuas que, tirada uma linha recta para a direita, léguas e léguas andadas, nos consente que encontremos à beira do mar a cidade de Kapini, nesse Índico onde outros nomes míticos ressoam: Mombaça, Dar-es-Salam, a ilha totalmente feita de dunas da Grande Baía mais a sul.

Os animais e seus silêncios, a grande solidão que os faz deter seja no Okavango seja na serra de Chela ou na fronteiras do rio perto de Bongassou.

E os homens e o seu rosto corroído pelo tempo. Como uma welswitchya mirabilis nos plainos requeimados, inabordáveis, de Moçâmedes.

 

2 “Here is a typical village”, referiu o guia olhando os outros dois viandantes.

Sobriamente, nenhum deles proferiu palavra. Entraram na primeira casa, espaçosa, com persianas de bambu e olharam em volta.

Sobre as mesas, cobertas de pó, copos de pé alto guardavam um líquido ambarino que luzia estranhamente. No chão, desirmanadas e dispersas, pequenas figuras talhadas em marfim repousavam ao calor . Sobre um sofá de couro de alto preço via-se um exemplar do “Público” e outro do “Saturday Evening Post” com o discurso de Henry Stanley dirigindo-se aos kukuyos aquando do primeiro combate.

Henry Stanley, I presume“, disse o juíz entrando com a mão estendida. E nessa mão brilhava, como se estivesse enfeitiçada, uma factura do super-mercado onde o Dr. Levingstone usava ir abastecer-se.

Ao longe, por sobre as cubatas, o sol declinava. E foi então que o segundo viandante puxou da automática de nove tiros.

 

SETE QUADROS

Como o sete que vai do norte ao sul. Como os mares, as luas e as florestas. Como os ventos que se acrescentam nas moradias e nos lugares. Como o de dentro e o de fora das recordações, o antes do oito e o depois do seis: as três partes de baixo e as três de cima pelas quais o Homem se completa.

O que sai do oriente e se encontra no ocidente, as ruas e o interior daquilo que se construiu e que é vidro e cinza, firmamento e areia, pedra sobre as lembranças e sinal de escrita, de matéria ausente. A frescura do orvalho e o pólen ao redor de flores cuja imagem se multiplica perto da sombra numa parede. O sete da mágoa e do contentamento, das figuras que se reconhecem num relance em praças intermináveis. Sete espigas, sete peixes, sete animais desconhecidos. Sete frutos repousando sobre uma toalha de linho. Sete segredos entre o riso e a dor. Sete sinais ao longo duma viagem entre a noite e o dia.

Sete contemplações, sete olhares, sete palavras e, de repente, algo que ficou sendo apenas o um – o um que nos envolveu sem que o esperássemos e uma luz se quedasse sobre um caminho onde a penumbra havia pousado levemente o seu inconcreto horizonte.

 

ARS MAGNA

A arte

contemporânea – ou seja, a que com independência

de espírito se estabelece como tal – tem

o selo de quem ama de facto os traços, as cores e as

inflexões matéricas que nela se contêm

e, por isso, os cria fogosa ou serenamente.

 

(Aqui um esboço

de Beckman ou

de Lyle Carbajal ou mesmo

uma aguarela incompleta de Cézanne

ou até uma folha semi-queimada

semi-rasgada de Wolfli, o que no seu

quarto do manicómio onde residiu uma vintena

de anos, acendia velas de estearina a Santa Realidade

que para ele

era a enfermeira que o amparava no seu desgosto).

Esses que a fazem

por um imperativo da força que lhes sai do corpo

e da sua organização em ossos e pele,

músculos, cartilagens e sentimentos – e que depois

cristaliza em quadros, peças escultóricas

e elementos mistos –  sabem que isso em seguida

se repercute em nós e faz nascer

outras cores e traços e substâncias

vitais rodeados de  palavras e de realidades

por vezes raras e acrescentadas. Coisas

 

que umas vezes em cima outra vezes em baixo

do mundo que as fundamenta

são como um rosto convulso

ou inteiramente apaziguado

 

entre as mãos de quem rememora

o tempo vivo e desfeito.

 

PÁSCOA

1.Vem dos tempos antigos a voz desse tempo – antigos para mim, do meu tempo e não da História: era eu que levava ao forno da padaria do sr. Júlio que fumava de boquilha e tinha um dente de ouro (padeiro fino, não sei se me entendem) as latas com os bolos-fintos e as “enxovalhadas” ou boleimas que a Mãe e a Mana artilhavam com saberes de magas.

Eu não sabia que era feliz. Só sabia que naqueles dias, naquele tempo de férias da escola, me davam amêndoas, me davam bolinhos doces, me davam alegrias, e o Pai até umas suaves moedinhas…

Eu não sabia que era feliz – e na sexta-feira às 3 da tarde soava o apito da fábrica e isso assinalava que alguém, há muito tempo, morrera de morte triste numa terra do Oriente. E sentia-se um estranho silêncio enquanto o apito soava. E eu sentia um frémito porque eu gostava desse alguém que há muito tempo morrera – sem me preocupar se ele era isto ou aquilo.

Era um estremecimento, digamos um abraço solidário que ia de mim para ele, porque eu era criança. Ou seja: tinha tantos séculos!

E não sabia, nessa altura, muitas coisas – só um poucochinho, um poucochinho mais do que sei hoje.

 

2 Ao longe a serra, ao longe como os tempos que passaram. Tempos de páscoa, serras de páscoa, recordações de momentos que depois preencheriam dias e lembranças.

Amêndoas, bolos desta terra e daquela, festarolas tradicionais? Sim, isso tudo. E o mais que a emoção dá, que é ir-se vivendo com um resto de inocência e de fraternidade vital. Dentro de nós, fora de nós: para nós e para os outros – que também tiveram/terão o seu tempo de maravilhamento e nostalgia.

 

UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE

É de tarde e você comeu frugalmente. Sardinhas assadas

Do dia anterior. Para escorregar melhor, uma caneca

De “Castillo de Salobreña”, sem álcool, “base de mosto de uvas

De vino y manzana”. Lavou as mãos? Não lavou. Não tem

Problema – a higiene é como as manhãs de Junho (fica bem quando

Está e bem quando não

Está – uma frase

Que não é nem carne nem peixe). Mas dizia

Eu que é preciso juntar, pois é disso

Que se trata: um salmão fresquíssimo, dois

Ovos de avestruz, um cheirinho de louro e outro

De aguardente, um molho de hortelã e duas

Codornizes. Abra o peixe, frite a carne, urine

Entrementes um pouco de lado se acaso pensar

No tal poeta que também é médico: aproveite para

Se vingar dando um ou outro

Violentíssimo traque como vírgulas, no interior da panela

Da escrita. Considere, sorrindo, que a alimentação

Tende para o sujo, para o torpe, para o inefável

Se a sua voz é cheia como o Verão

Que findou há doze anos: esse verão de 94

Que nunca lhe sairá da memória.

Coza a carne, corte o peixe, polvilhe com pimenta

Deixe alourar tudo misturado. Grite. Grite mais. Ria desabaladamente.

Cague nas suas desilusões. Jure que vai desmaiar. Faça de conta que vê um rio

Que viu um rio

Que esteve em cidades quotidianas mas que o assustaram mortalmente.

 

Assim eu cozinhava. Assim eu vi –

Mas vi mesmo, vi convictamente

Papoilas na noitinha nascente ao pé de um muro derrubado –

E assim eu comia, tal como dobava linho

Aquela mulher velha da fotografia

Ou o outro entre móveis simples de pinho

Ou de castanho

Olhados, perdidos, olhados.

 

Hoje devoro torradas

Não muito a fundo. Debicando um pouco

Pois tremem as chamas das velas e quando se adormece

 

Respira-se como se não mais houvesse presságios nem minutos.

 

FORMULÁRIO

                                                                                                            a C.Ronald 

Amigo

Os livros chegaram mesmo agora.

O carteiro das encomendas entregou-me o pacote

não há cinco minutos. Passou-me para as mãos

a Caixa Tipo 2 (amarela e azul) e disse ao pedir-me

que assinasse o formulário acusando

recepção: “É do Brasil…”. Assinei e saudei. Fechei a porta.

 

Na cozinha, com a velha tesoura que já fôra

das costuras da Mãe, dos bordados da Flora

eu abri com cuidado, para não danificar

o meu nome e endereço, em letra

muito bem desenhada – um cursivo

de excelente recorte. “Para si. Para já. EMS Correio Urgente”,

assim se lia oficialmente

na caixa. Que agitei, para também

sentir primeiro o som dos livros, para também

fruí-los pelo som: o som primeiro

de chegada a uma terra longínqua.

 

E cheirei-os, tão-logo

os tirei. Porque os livros

com seu cheiro de passado

de presente e futuro

possuem o odor

que lhes é próprio – em seu corpo

mortal aí reside

o cheiro do mundo, o cheiro do tempo

com seus horizontes

das diversas estações: ora de inverno

ou de outono

ora de dia claro

ora de noite e madrugada

de tardes que a primavera entrega

ao verão nascente. Sete livros.

Sete livros: capa, figuras, títulos ilustrando

as palavras de dentro, mas também

seus secretos nomes de naturezas

vivas.

Sete livros: número de tradicional

recorte natural

por sua magia

quotidiana, recreando

o íntimo júbilo.

 

E depois será lê-los. E por isso

agora calo minha fala. Pois que um’outra

se irá depois erguer

– e pelas letras agora de meu tempo

e palavras escritas num tempo alheio

saberei então outros descobertos

buscados, encontrados

 

partilhados mistérios.

 

MENSAGEM

Ao domingo chega mais tarde o sol do dia

À segunda a noite fica dentro do quarto

À terça os pombos comem connosco à mesa

À quarta não é assado mas peixe frito

 

À quinta entre o pijama e a camisola

À sexta sente-se o gosto de tempos idos

Ao sábado o sabonete faz mais espuma

Ao domingo entre o cabelo e a paz dos tempos

 

À segunda lembra-se a neta e a ida à escola

À terça que já não há como o que havia

À quarta sabe-se que ontem não era sábado

À quinta nos outros dias que eram depois

 

À sexta escreve-se ao outro do outro lado

Ao sábado tem-se na mão um “como está?”

Ao domingo vai-se ao mercado sem se lá ir

À segunda sabe-se bem o que não há

 

À terça fica-se erguido como sentado

À quarta tem-se no olho um arabesco

À quinta as florestas nem dão por que ontem

À sexta era mais vento nos outros dias

 

Ao sábado fica-se pronto para pensar

Ao domingo cala-se a tarde se inda é manhã

À segunda tudo se espera se se esqueceu

À terça quando se abriam os sons da noite

 

À sexta há um retrato que se procura

À quarta não se tem medo do canto escuro

À segunda come-se o fruto bebe-se o vinho

Ao sábado um livro entrega o seu segredo

 

À quinta já se tem anos para o que foi

À terça a voz antiga que nos chamava

À quarta come-se o pão olha-se o campo

Ao domingo vamos embora que já chegámos.

 

GUINÉ, FEVEREIRO DE 70

Entre mim e as janelas há o rio e as árvores

e milhões de anos feitos para a gazela e a marabunta.

 

Dionísio teria percorrido a savana e a montanha

quando ainda não havia rastos de camião

nem o mar sepultava pensamentos e memórias

entre um olhar e um silencio.

Serena era a madrugada, subitamente despertando

um vôo de coruja sobre os ombros de quem velava

– pastor e aguadeiro –

homem que na terra colocava a semente do tempo

ou do milho fremente para os sonhos e os minutos.

 

Algures, junto a uma parede devastada

onde a cal cristalizara a inocência e a perfídia

as abelhas eram a equivalência perfeita

do universo gerando a carne negra e branca

que dos livros guardara a misericórdia e o temor

de anos e anos a vir.

 

Há um grande e perpétuo rumor que faz pensar

em Orion e no Cruzeiro do Sul

mesmo quando o sol ainda risca a figura

incontusa dos sete pontos cardeais.

 

Qual o fulgor

que viaja entre oriente e ocidente

– os campos do mamute e da zebra primaveril –

mesmo quando a época das gramíneas refloresce

entre lua e penumbra?

 

Na terra

marco os dedos e os vestígios

de avós e bisavós

mas o contorno das palavras que escrevo e que despertam

as sombras do passado e do futuro

hei-de lembrá-las sempre

impolutas sobre o rio, sobre as casas, sobre os homens

 

que vi    e que inventei.

 

PALAVRAS

Há palavras que nunca ninguém pronunciará.

Palavras de esquecimento, emocionadas palavras.

Palavras de mistério, apenas entrevistas

pairando entre a figueira e o computador

Palavras assombradas, iluminadas, nocturnas

palavras incontusas, breves, imarcescíveis.

Palavras encontradas num súbito comboio

palavras navegando no coração da chuva.

A palavra memória   para a infância das estrelas.

A palavra  planície, a palavra  mamute.

Uma chaminé-palavra no alfabeto oculto

para a morte saudosa de todas as designações.

E também as palavras de todos os hemisférios afundados.

A palavra   solstício  e a palavra   suicídio

e todas as palavras em que a sombra encontrou

o inquieto horizonte de uma ânfora de oiro.

A palavra das cidades vazias, dos espigões erguidos

pelos olhos do medo

as palavras de todos e as palavras sem ninguém.

O abeto-palavra, gelado e milimétrico

invadindo os espelhos nos mais escondidos quartos.

O salto, o golpe   a palavra absoluta.

Uma palavra simples como uma boina basca

subtil como um navio, límpida como um rato

uma palavra desvendada e solene como um leito.

O natural do escuro, palavra negra e sangrenta.

A palavra completa

dos muros transfigurados

ou da casa doente abandonada aos chacais.

A palavra do peixe

do animal

do homem

 

a palavra habitante de todos os séculos martirizados.

 

MALA-POSTA

Como o olho da Terra   bem longe   entre lembranças

entre os séculos que as manhãs acalentam

podemos ter:

 

uns óculos ao pé dum pano escuro, enquanto

lá fora chove

alguém que pergunta pela sua cidade natal

e já nada vê nem ouve

a inútil viagem que tantos anos sonhámos

o gato   o cão   o pêndulo e a ponte

círculos na areia   vulcões rios e desertos.

 

Lembra-te: o que procuras já foi   algum dia

e é simples e pleno como um artesão trabalhando

no vão duma escada

meros fantasmas que passam despercebidos aos transeuntes

em finais do quarto século.

 

Olha para este retrato: uma árvore

descarnada, um pedaço de casa, o esplendor defunto

do ar que vibra.

 

É deste antigo reino que te falo

– e a melancólica ave nocturna

vem até ao meu rosto, despelado como uma pedra viva.

 

AS ESTAÇÕES DA VINHA

Os vinhedos de Estremoz como os vinhedos do Reguengo. Como os de Asnières ou de Peso da Régua. Como os de Tavira e de Pinhel, de Modena e de Kerion. No Alentejo ou na Argentina, na província de Mendoza antes de se entrar nas pampas desérticas.

No Oregon e no Idaho, em La Rioja, no Lidl e na Praça Nova, no mercadinho do Corte Inglês e na mercearia fina ao canto da rua de Jacobo Rodriguez quando se entra na Plaza de Cristóbal Colón em Badajoz: vinhos que da uva saís, que dos vinhedos brotais – e esta palavra vinhedo que se rola na boca como um néctar numa prova real – vinhas sob o sol ou debaixo da chuva que sacode as parras, com gente e sem ninguém, brancas e azuis da neve numa tarde de Janeiro.

E as latadas. Em frente da casa antiga do lado sul da ermida de S.Cristóvão, agora exactamente como há cinquenta anos.

Nos olhos e na memória do mais discreto evocador como nos minutos simples de prazer dum modesto beberrão solitário.

 

***

 

Fotos são sinais. Tal como as vinhas. Sinais de qualquer coisa que se prolonga num tempo abstracto e no concreto tecnológico de diferentes disciplinas. Semelhante ao olhar mecanicista de Rebeca Horn num crepúsculo rosado, “veins of light inside, like branches” ou o rigor objectivo e o conceito antrópico de Jannis Kounellis.

Como se fôssem poemas. Ou antes: como se tivessem sido sempre poemas. O pio do pássaro, a gaiola suspensa dum prego habilmente inclinado para lhe d ar firmeza. E as mulheres que passavam para a monda lá mais para diante, para os socalcos em ferradura das Covas de Belém, lugar de nascimentos de ancestros e de gente futura, mas de outra trajectória familiar.

De outros destinos, sinas diversas como raízes de plantas diferentes, de cepas desconhecidas.

E o campanário, no meio das vinhas se olhado do pinheiral antes da estrada, para além de outros campos dos lados de Marvão e dos contrafortes primevos da serra de São Mamede.

 

***

 

O copo meio cheio ou meio vazio de Franz Hals. Os borrachões de Goya. Os hussardos bons pichéis de Jean Giono e os salteadores que se acalentavam com um belo copázio de tinto quente com açúcar nas estalagens das terras de Pourrières. A ida ao campo de ténis do Salão Frio pela vereda que atravessava as vinhas e sob as figueiras ao pé da nora. Robert Desnos no campo de concentração de Terezin, delirante e pouco antes de morrer, sonhando que passeava com Tzara entre os cachos de moscatel das terras da sua infância. Os provérbios e as sentenças da sabedoria popular com um travo de séculos (“Muita parra, pouca uva”; “Ano de nevão, ano de vinho e pão”; “Passar por lá como cão por vinha vindimada”).

Os domingos sem regresso, quando o pai levava o garoto pela mão e entravam numa taberninha anexa a uma adega para provar o vinho novo e lhe disse que era dos cachos iguais aos da velha quinta que se fazia aquele líquido de cheiro pungente e fresco na penumbra da loja de alguns convivas.

 

***

 

Avançavam cautelosamente à roda da vinha. Por precaução retirou e depois voltou a meter o carregador da automática. O tremor passara-lhe. Lembrou-se de quando brincava aos índios e cóbois na courela da Quinta Ferreira, antes do bosquezinho de castanheiros e um pouco para além da eira e da saibreira como um deserto em miniatura.

A rajada apanhou o companheiro da frente à altura dos rins e fê-lo rodopiar. Ao estender-se no chão, estranhamente calmo e fazendo pontaria como se estivesse na carreira de tiro, viu os olhos do outro muito abertos e fixos na cara suada.

Olhos esverdeados como uvas ainda não plenamente amadurecidas.

 

***

 

“A vindima é a apanha dos cachos. Deve ter lugar na altura em que a uva atingiu a maturação completa. Este momento pode ser determinado com rigor, desde que se recorra ao gleucómetro de Guyot – tipo de areómetro de volume variável e peso constante, munido de três escalas…” – assim se lia na página 245 do livro “Mercadorias” (4ª edição da Livraria Didáctica) de Leopoldino de Almeida e Jorge Ferreira Matias para os alunos do Curso Comercial.

Na primeira página das folhas de guarda, escrita a tinta de caneta permanente, uma citação do “Drona Parvah” (descoberta onde?): “Não haverá sol, nem chuva, nem pássaros no céu. Não haverá paz, nem calor, nem amizade. Somente se ouvirão os lamentos surdos e os gemidos roucos dos que morrem. Tereis morte, loucura e peste. E tereis desespero e fome. E tudo que havereis de ter será pouco. E tudo será demasiado. Porque vós não sabeis quem sois, nem os vossos princípios conheceis.”.

 

***

 

Entrara em Espanha por Vilar Formoso. Passara a seguir os vinhedos de Ciudad Rodrigo e as estepes e morros frementes de sol antes de Salamanca, até Medina del Campo e os Montes Ibéricos. Os Pirinéus na noite crescente, os lumes que eram vilas e cidades e aldeias ao longe na largura de lugares que nunca vira. E, depois dum semi-sono, as luzes junto da água, um caminho de luz e sombra e reflexos e era Bordéus e eram os armazéns para os cascos enormes para todos os lugares da Terra, para muitos sítios que jamais verá a não ser em mapas amorosamente guardados na estante grande.

Algumas ruas da cidade sob a Lua de Junho com o seu traçado antigo como nos filmes de d’Artagnan. E um café ao pé da paragem aonde a camioneta se deteve por breves instantes e dois clientes apenas na esplanada minúscula que bebiam talvez Fanta ou limonada, ou Ice Tea como numa tasca fina de Borba, mas não, concerteza não – assim lho dizia o relancear de retrato que lhes deitou – um qualquer bálsamo dos corriqueiros ou especiais, habituais dali enquanto a camioneta ia abalando até que apanhasse o dia, correndo já para os ares abertos na manhã da Grand Prairie.

 

O MARINHEIRO E O CÃO

                       “Ainda não escrevi o teu poema/ aprendiz de poeta e carpinteiro”
B. da Fonseca.  

 Nem eu tampouco, e talvez jamais escreva

o resto do poema em nós esperado

outros são hoje os duros logaritmos

a herança entrevista, o falso alarme

 

Não há hora p’ra rir, a coisa é esta

é estar de ponta, em pelo e solidão

espreitar de repente pela fresta

ser mais veloz depois que um foguetão.

 

Mais que não fosse, ser o tique e o taque

abalar para algures, limpar o prato

moldar no anelar um triplo baque

ser Caldeu no boné e no sapato

 

Em vez da obra, a obra duma vez:

trava-se a mão, esconde-se o cigarro

estripa-se o manequim, estende-se o escarro

desfolhando um casaco em malvadez

 

A seguir ser ausente, cego e mudo

usar o espanto limpo de desertos

as colunas e os chifres sempre abertos

 

definitivamente cerrar tudo.

 

NOVE POEMAS PARA NOVE IMAGENS

1.

De coisas

feitas

com seu nome

dado

– torre, janela

e flores dispostas

sobre seu lugar

de tempestade

de manhã ausente

de alegria

e lume.

 

Súbita luz

e pedra

e pão e acalento

de anos já perdidos

e sem memória.

 

2.

A Terra: laranjas e legumes, risos e

melodias, o medo e a sombra. Com tuas

mãos tocarás a maravilha lenta da cal e

do cimento sobre coisas desfeitas. O sol

e o vinho a teus pés: toda a riqueza

adivinhada de mansões de gente já

desaparecida. E a noite a chegar   e uma

nódoa de sangue nos olhos.

Olha pois à tua volta. Verás a silhueta

esmaecida de uma pátria inconcreta.

 

3.

Apenas

serenidade entre

muros e ruas

longínquas

próximas de nosso

escolhido dia.

Porta, simulação

que de si mesmo

guarda

gestos alheios:

 

uma árvore

um espelho

um lenço

 

Tudo impoluto

– e um grito sobre

as casas.

 

4.

A coisa poderia definir-se

assim: dum lado objectos

habituais – copos, talheres,

duas lâmpadas eléctricas,

uma almofada suja. Do

outro, dispostos em pilha,

livros antigos e vasos de

plantas verdes, alguns

frutos e embrulhos

fechados. O que mais

perdura é o sinal da

estrutura óssea, os

vestígios de carne seca,

desfibrada e solitária.

Apitos, correrias, vozes ao

longe e, afinal, o ardente

ruído de um terrível

remorso.

 

5.

Esse fumo:

– de lenha

de tabaco

de papel

de pano.

 

Esse fogo

– de árvore queimada

de terra ferida

de carne cortada

ou esmagada

 

ao longe

ao perto

dentro do dia

fora da noite.

 

Som

de voz de mulher

de animal

de mosca

de uva

de guizo

sobre os seios

entre os dentes.

 

Soluços

enleios, terrores

asa posta

na cabeça

na palha

na abertura

do mundo

na alegria

no beijo

saudoso e

trémulo.

 

6.

Faz sair do seu

reduto

a melancolia e vê

que na parede

um sinal negro é a

sombra das mãos

entre

tecidos

amarfanhados. A

espera

angustiada a

natural

inclinação de um

ombro

a seminal

fotografia

única para saber

de todos

a veloz asa oculta

sobre os tempos.

 

7.

A voz

o escuro da

manhã/  a luz da voz

no escuro da luz

como/ a voz na noite

entre/ a manhã e o

calor do pequeno/ dia

futuro

a tarde e o grito

e a recordação/ de luzes desaparecidas.

 

Escuro

para vozes passadas/ o tempo

recordado

o futuro como/ uma voz escura

o nome sobre o dia/ a luz

 

no calor do grito.

 

8.

De muita gente

o nome

o talhe

a viagem

na noite

 

Um som de ferro

contra ferro

um assobio

de máquinas distantes.

A severa geografia

da terra desconhecida

os pensamentos de outros

– fomes e ausências.

A amargura, o sono e

um olhar sobre os

corpos perdidos

ao longe. Um céu

um sopro de vento

entre terras e

pacientes lugares sem nada.

 

9.

Na república dos artistas terá de

haver mapas. Mas

não só. Haverá também

cadeirões, candelabros, centenas de

mesas repletas de jarrões

com limonada e

à noite, uma janela dando para

um parque misterioso. Os cozinheiros

terão nomes de rios: Zambeze

 

Sena, Amazonas e mesmo

o soberbo Orenoco – ou então

de plantas como fotografias

 

ou ainda muitas imagens

de ruas familiares ou de

 

parentes desaparecidos.

 

 

RUÍNAS

ao Margarido Neves, in memoriam 

Vinte e quatro ruínas. Uma ruína para cada hora do dia e da noite.

Ruínas que do tempo vieram, que de tempo se fizeram. Coisas, lembranças, lugares e pessoas que o tempo desfez. E que agora se reerguem por um momento na memória de quem as viveu. Nos olhos de quem as pode viver ou contemplar ainda que exista a vida breve, tempus fugit, que afinal dura os minutos de um dia, de um mês, de um ano. De muitos anos. Também das existências que se não tiveram, pois que viver é escolher um caminho entre vários caminhos, apenas aflorados, apenas pressentidos como um eco longínquo. Como num sonho encenado, possível mas ao qual não se deu figura.

A vida ardente está aí. Entontecedora, repleta de sonhos e quimeras, de pequenas luzes interiores como o súbito brilho do sol nas folhas de uma árvore desaparecida.

Ruínas nos sítios habitados “onde tudo canta gravado pelos séculos”. Ruínas que “multiplicam os seus fulgores conforme as horas”. Recordações entre os muros e entre os mundos de baixo e de cima, como na infinita sabedoria e na infinita humildade dos que não viveram em vão. Ruínas que não são de cidades perdidas, de impérios destroçados, de cadáveres desmembrados e de rostos convulsos, mas de pequenos detalhes que a nostalgia e o encantamento dos momentos idos possibilitou existir num continente improvável.

Aquelas matérias que ascendem na vida natural de quem sabe ou de quem pode rememorar, metáforas e imagens de quartos e de escadarias, de ruas que jamais regressarão e contudo são as mesmas, de ideias esquecidas entre o pequeno mundo do que se pensa num relance e se vai para sempre, sem remorso nem contentamento, mas marcadas e coloridas pelo horizonte de muito do que se foi vendo existir.

 

PARQUE

São apenas três manchas brancas sobre as plantas do jardim

e outra azul mais pequena mesmo posta ao lado dum banco de tábua

 

E nós pensamos: uma para as saudades, a segunda para os remorsos

a terceira para os que tentam reter a tosse que os sufoca.

Mas a quinta mancha é cinzenta. E apesar de fria como um sobressalto

pesa-nos no peito, pesa-nos na memória e revolve-se

no ventre enquanto tentamos reflectir angustiados.

 

Uma lua e um sol estão sobre a silhueta de um animal morto

hirto, com estranhos círculos no lombo, os olhos cintilando

como alguém escondido numa viela cheia de lixo.

 

A vossa vigília durará até que os ramos se afastem

que o transeunte de acaso de repente caia de joelhos

ante a noite que chega, guardando um grito na garganta

 

e fale mansamente   olhando as árvores que desaparecem na luz.

 

FASHION

Em todo o tempo as há, mas no Verão nota-se mais.

Lá vão elas andando desfilando como estátuas hieráticas com tudo, contudo, no lugar.

E são brancas e pretas, ruivas e morenas e louras e de cabelinho rapado para ficarem exóticas, ex-ópticas aos nossos olhos em bico em bugalho em riste como binóculos de apreciadores de corridas de cavalos ou de paisagens longínquas.

A umas os seus construtores/construtoras querem que apreciemos as partes de cima, outros/outras as partes de baixo – e nós, que sabemos apreciar ver coruscar como faróis na noite olhamos principalmente o que as suas construtoras construtores não lhes fizeram/costuraram mas lhes foi dado pela natureza o acaso a simples e boa elegância que ou se tem ou se não tem, raios.

Elas lá vão deslizando como borboletas numa serena manhã de verão ou ao entrar da noitinha. Meninas, lindas meninas, qual de vós o vosso ideal e os/as que as miram escrutinam remiram sentem por vezes um frémito um arrepiozinho que acrescenta um tremeluzir na passerelle. Como se fosse o ring em que se batem contra a fealdade do tempo e a beleza da idade.

Como se não fossem apenas estátuas hieráticas mas pessoas andando desfilando no quotidiano dum mundo reconfigurado e liberto.

 

TRANSFIGURAÇÃO

Estás mais longe que o mundo   e é já inverno.

 

Dessa terra de sombras nada assoma

nem silêncio vencido em gelo e em chama

nem marulhar de gesto, ou feroz ou terno.

 

Para mim a loucura e para ti a vida

mesmo no esquecimento da ausente mão.

Importa é possuir uma, ainda que perdida

ou imóvel como um ogre na escuridão.

 

A estrada é a que vês. E em tudo traça

o caminho de sangue anunciado

o medo erguendo ao alto o que não passa.

 

Velha é a torre riscando o horizonte

velho o mistério da hora designada.

Em redor voa o Tempo, ao céu defronte

mas parado, sem voz, sem luz, sem nada.

 

O Depois não é sonho nem lamento

nem murmúrio de sol, nem choro de vento

nem rebentar de oceano em agonia

 

É perfume polar de oiro detestado

é mansarda e castelo, é noite e dia

levando ao planisfério divisado

a ternura da raiva e da maresia

 

em todo o amor maldito   e encontrado.

 

LEVANTAMENTO DE RANCHO

O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos

Nem sequer daquele arroz que a prima Maria fazia

Doce como os sonhos o meu sargento desculpe

Mas é tão estúpido tão escalabitano tão

A norte de Bafatá ou mesmo

Castelo Branco o meu sargento é um nabo

Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha

O meu coronel desculpe mas tive de o abater

O gajo não entendia que os sonhos eram os outros

Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias

E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores

Há um ar em silencio extremamente melancólico

O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura

De quando conheci a Domingas uma vez encontrei-a

Já havia muitos meses que me lavava a roupa

Junto ao mercado do Pixiguiti   chorava

Era sofrida como uma mulher

Doce e tão calada como um objecto partido

O meu capitão desculpe mas tive que o abater

É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos

O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão

De serviço   o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras

O meu major desculpe mas era chegada a hora

Tantos anos depois ficaram todos em fila

A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado

Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda

De modo que foi assim   fiz levantamento de memórias

E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar

Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão

Ficaram todos em fila pois então

Mesmo que em sonhos   e agora estes não são

De ovos e farinha como almejava nesse tempo

Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar

Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba

E já agora que estamos com a mão na outra massa

Que é como quem diz com a pata na G3

O meu general vá à fava   palavra de civil tão sem galões

O meu general é um nabo como na caserna se dizia.

 

CALABAZAS

a Mayte Bayon

Eu sou o que sou

vegetal e mineral, fruto e animal

no inverno no verão

em cima da cama e numa cozinha

sobre a mesa com copos e garrafas

Sou pintada sou disposta em arco-íris

como alguém que ri e alguém que chora

como uma artista submergida

como um retrato emergente

ando de roda

rastejo

voo sobre os rios e os ventos

os montes e as chamas nas lareiras

sinto a terra nas mãos

balbucio a dormir

assusto-me fico presa

a um objecto tão belo como a escuridão

antes da manhã

depois de anoitecer

 

Tenho muitos nomes

que de repente desaparecem

cabacinha pintada de azul amarelo

cabacinha pintada de preto vermelho

e sou outra vez eu

e faço o pino danço adormeço

e os sonhos saem pela cabeça

e ficam a pairar perto das paredes.

 

Sou cabaça

sou pessoa

sou madeira e pedra

e lume e ardósia e papel

ramagens ensolaradas

casas que se abrem e fecham

no dia inteiro

e na tarde

de todos os silêncios e ruídos ao longe.

 

A INFANCIA E O SILÊNCIO

1.

Os anos em que eu olhava

o segmento negro do horizonte

como se para além das suas árvores

uma ave branca,   estranha e pura

silenciosamente me esperasse

para se transformar num animal

vermelho

correndo à desfilada

 

2.

Ondas de sangue adormecem

solitárias, nocturnas, imprecisas

 

As tuas mãos sopram o tempo

e desvendam-nos a morte e o teu rosto

 

Ah a cor dos olhos ardendo

na sombra oculta do dia

 

VISLUMBRE

No bote, os polícias jazem amorosos

no virar da semana

com as suas adoradas em passeio

naquele jardim com o lago meio adormecido

em que depois de remarem, como os cisnes do parque

como a lua se tivesse caído na água

ficam no vazio, olhando os bancos e a relva

dessas horas em que as ramagens cobrem

os corpos de quem descansa e os ausentes

comem sua merenda debaixo de outras folhas

em diferentes lugares.

 

No barco ou ao balcão do quiosque eles sustêm

na sua mão a mão de alguém que os prolonga.

 

Onde estão as crianças e a música? Quando não é manhã

os barcos vogam

em busca de um horizonte em que haja noite

dentro mesmo dos corpos, até do peito fendido

em que eu contemplo as silhuetas seculares

quase no fim dos bosques onde depois se amam

e se interrogam por um nada

bocejando aqui e além.

 

Tocas com essa mão a primeira palavra. E notas

no céu negro figuras como havia

na tua adolescência sussurrante. Agora

olhas ao pé do castelo um pequenino embrulho

e foi há muito tempo que o sentiste

uma e outra hora e ainda uma outra hora, essas

que de repente param e tu sorris

na evidencia que te chama. E dizes, como se nada fosse

– Ouve, jovem polícia, o teu barco quedou-se ali

e por entre as pálpebras semicerradas

o teu amor esvoaça. Oito nove de noventa e seis

repara bem

o taumaturgo testa a tua sede. O teu raro momento

tão plácido e completo como um hall sem ninguém.

 

Vamos embora, meu Senhor.

Seco e magro como um vislumbre

que estimula os quartos ao derredor

andas de continente em continente

e os risos aumentam e aumenta

o choro ao canto do jardim ensolarado.

Uma palavra em calão e uma reza, uma reza

 

saindo sem que o soubessem alegremente das trevas.

 

NUVENS

Naquele ano  fui para o sul de França.  Durante vários

meses, antes de abalar, pensara sem cessar

na velha cozinha da infância   e com esses pensamentos

vinha muita coisa sufocada – a ideia de que as manhãs

eram como um relato vago visto na televisão e que nada

nos pertencia a não ser a recordação de quando

pensava em ser aviador nos anos distantes de oitenta.

A menina

 

entrou na escola numa segunda-feira ou seria

terça feira? Era num livro de contos que isso

era dito e o telefone tocava intermitentemente e então

resolvi partir. Lá fora os pássaros estavam parados

como se posassem numa fotografia desfocada   e eu

pensava: esta parede ficará sempre

sob o tempo

noutro espaço

noutro pensamento.

 

E passou

o dia inteiro

e as pessoas diziam: ontem, meu amigo, onde deixaste

a tua imagem   além ou noutro

tempo qualquer, apenas para que soubéssemos

ser fiéis ao que foi

 

o reverso?

 

LE BLEU

Poemas sobre o azul? Sim, é possível fazê-los. Não, por vezes

é impossível fazê-los, vai sempre dar-se a outra coisa

a outra cor. A ruas que nunca mais se verão, numa cidade

equatorial onde, do lado direito, o lado oposto à catedral, havia casas

pintadas de vermelho ardido, de ocre vibrante, de amarelo irisado, casas

com portas de madeira preta.

 

Passe um pouco de lado, por favor. Apanhe

aí um chapéu-de-chuva. O azul

 

é para outras estações: talvez Casabranca, talvez Mogadouro, talvez

Chança ou Alcáçovas, onde as flores do pequeno jardim perto do armazém

eram flores de uma outra primavera

meio espanhola ou mesmo

meio grega. O azul dessas praias nunca divisadas. O verde

de um rosto   de um cadáver insepulto. Um azul de anil, aquele

por sobre o bosque de pinheiros da primeira ruína

do convento no meio da Serra. O azul convencional das torneiras que

quer dizer água fria. O das pedras de cobre da antiga

drogaria na cidade velha. Um olho azul, mas por fora, azul de violento

murro certeiro. Passe

por aqui, por obséquio (dizia o empregado de mesa de calças azuis um pouco

sebentas, um pouco

enrugadas de quem não vive

entre estátuas jacentes), alguém

de casaco branco como um cirurgião. Na pedra

 

um cor de rosa. No chão um castanho sujo. Na parede um risco

azulado, difuso  letras já

semi-desfeitas. Um azul

seco, um tom pintado que se almeja, que se sonhou algures, um

azul que não se encontra nunca, que ao longe se some

 

no nevoeiro que sem piedade aumenta.

 

NATAL ZERO OITO

Quem fala de Natal perde palavras

à entrada do Inverno, na secura dos dias

no vasto frio das noites, tão lúcidas e antigas

tão de infância e de Agosto. O fogo

misturado: árvores, luzes, fantasmas

e as doces mãos das Avós. E ainda

um postal velho velho cheio de vento e de memórias.

 

Quem fala de Natal perde palavras, ganha

e perde as demais coisas que as palavras edificam.

 

“Quem grita no Natal? E Deus

não os fulmina? “. Quem mergulha os seus pulsos

na fria água do rio?  Com seus chapéus à banda

em barcos engalanados

os anjos vão passando, dizendo amores esquecidos

dizendo estranhas frases, assombrando as moradas

onde afinal não nasce o tal de Nazareh. O sal e o

pão terrenal dos que ainda não foram

pelo ar, pela vida, pelos túmulos vazios.

 

Sim, pelo Natal as pobres casas em ruínas.

 

Para ser do Natal é preciso possuir

uma lembrança ardente, um brinquedo estripado

e muita tristeza feita nos anos em leilão

dos retratos tombando com um nó na garganta.

Para ser do Natal é preciso morrer

e viver de seguida com o sangue nos braços

esperando a estrela fixa do brusco espanto nocturno

junto à porta perdida dum milagre adiado.

 

Ah falar de Natal! Quem o consente?

 

O pão e o sal

talvez

de toda a gente. E um olho de animal

pairando no poente. Decisivo, visceral. E Deus, pobre dele

abrindo a água lustral (no bem, no mal)

frente ao horror da morte

terrena e inocente.

 

Por isso, no Natal

os segredos demoram

e tudo muda e tudo se envolve num pano branco barato

para que ninguém esqueça um corpo ferido que por debaixo jaz

uma nova e desconhecida espécie de cadáver achado na ilha

dos animais inominados

e outras diversas coisas que por desespero se não apontam.

 

No Natal treme a casa, a casa

sempre caiada, como um sepulcro sem número e sem nome.

 

E o inventário dá, se estiver certo:

um coração ardido todo azul

uma recordação minúscula que se guardou num bolso

um riso salutar ensanguentado

uma pequena ironia desenhada a tinta de colegial

uma apenas esboçada mão posta sobre um antebraço

o lenço de cabeça duma tia que desapareceu na manhã

um gato tranquilamente dormindo ao cimo das escadas

uma rosa e uma palavra que a si mesmas se julgaram

duas mãos de pedra tremendo atravessadas por uma ferida

numa cruz de polo a polo

um hálito que soprado no peito nos enlouquece

um arrepio, uma agonia

uma tarde a fechar-se repleta de amargura e de alegria.

 

Talvez o Natal seja um rosto

ou uma madrugada de outono

ou um avião nocturno

ou um verão por detrás das coisas aparentes

ou um combatente jazendo de borco numa pia baptismal

ou os bramidos de dois seres abandonados encarando-se de súbito

numa rua da cidade

no escuro muito escuro de uma cidade do universo

quer dizer – luminosa e aterrada. E talvez

 

que tudo afinal esteja a mais, que tudo afinal

se resuma a filhós e azevias de um outrora

a canecas de café familiar

algures num horizonte, numa idade, num momento

no imenso murmúrio de uma voz sulcando o tempo.

 

E a chuva   que diabo   irá cobrindo tudo

no infinito Natal dos mundos desaparecidos.

 

CAIXA

A flor da murta, a flor do cravo, a flor das páginas

impressas. Entre o amarelo do sangue o azul das palmas das mãos

o vermelho vivo dos olhos mortos. O sereno preto-cinzento dos amores

perfeitos.

 

Como um parque vazio no silencio de Outubro.

Como a lua colorida em Dezembro ou Maio.

Como o interior pulsante de uma anémona ou um miosótis.

Como os pulmões rasgados por um tiro num peito

de animal ou de criança ou de mulher

que outrora amou e sofreu.

 

O amor entre parêntesis, a voz do mundo e a letra

do mundo para além dum horizonte que se traçou.

 

A NOITE DO POETA EM CRIANÇA

Quando eu for um homem serei marinheiro.

Ou pastor, para conhecer o sono dos mundos.

E usarei uma roupa azul e violeta

se sair padeiro

porque em todos os pássaros descobrirei a verdade.

 

No Inverno os insectos sentem-se mais sozinhos.

Serei seu irmão. As cidades sonham mistérios sombrios.

Com o meu canivete retalharei o sol

que viverá para sempre na geometria das crianças.

 

Ai como eu amo a candeia que o avô

ontem acendeu para iluminar a Terra!

O lugar dos sepulcros não me amedrontará.

Com outros cuidarei das sementeiras novas.

 

E tudo será simples como esta minha mão verde

ou como essa janela voando sobre a cidade.

Quem vela, a esta hora, a esta hora serena

será, como eu o sou, um dos milénios futuros?

 

PLANISFÉRIO

Gira o tempo, gira o mundo, gira o olhar na direcção do sol e o que gira é a nossa estrela polar, o nosso horizonte transtornado apanhado pelo negrume azulado da lua, o firmamento de tudo sobre a nossa casa, o nosso corpo e a visão da matéria planisférica, violeta na manhã, branca na tarde, multicolor no dia que corre transborda se petrifica nas palavras nas cores e visões nos desenhos do interior do corpo, da criação do mundo e do mar que rodeia os continentes imaginados que somos que fômos que seremos quando o espírito a glória do senhor das formas for simplesmente um universo terreno e com tudo na sua existência fluvial e matérica de atlas imenso nos traços da nossa fotografia completa.

 

OS CAFÉS

“Um Café é o lugar onde podemos arruinar-nos, enlouquecer ou cometer um crime”
Vincent van Gogh

“Um Café tanto é um continente perdido como um lar encontrado”
Lord Alfred Jelly

 

Eles são territórios de solene aventura

com seus nomes diversos e pacatos

com seus nomes soberanos de antiga submissão:

Cafés do nosso mundo interior e exterior

a lembrar-nos o tempo, a liminar memória

tão conhecida e próxima, nocturna e singular.

 

– o Café onde um dia contemplámos o cerne

de que nos construimos: os Cafés da cidade

toada familiar

a que não se resiste

e por vezes nos muda a rima cá por dentro

setentrional como um cântico sob o luar de Fevereiro

seja só para a bica ou para maiores rumos

da primordial viagem:

o Facha e o Central, peculiares estações

onde li quer as opacas ordenações perfeitas

de Maurice Scève, Bulgakov, Antonin Artaud

quer a fulgurante linha de terra criada

por René Char e Nerval

– ainda não existia nessa altura a incisão deste silêncio –

pelas tardes de Verão, com amigos à mesa

 

(o Donato Faria, acompanhado

pelo Par Lagerkvist por dentro da cabeça

ou o Drago longilíneo que depois deu em romancista

ou ainda o Arnaldo, que tinha um pai polícia

o que é sempre matéria para odes

próprias ou alheias)

prolongados em conversas donde surgiam segredos

anos e anos depois

inteiramente sentidos.  Cafés

como o Alentejano, substância de possibilidades metamórficas

e por isso tendo a ver com os proverbiais sete pontos

de orientação europeia

ou o Tarro das elegâncias funéreas

de magistrados, professores, lojistas finos

ou ainda o Luso, onde se viam geralmente o pernalta

e o seu irmão contabilista

o rico ou o obliquamente pobretana, o estudante e o doutor

e outros

negociantes dos arredores da existência e demais vilas.

 

Quantas vezes

na orla insubmissa das noites comigo mesmo

foi neles que senti, olhando os rostos em torno

o faiscar repentino das descobertas diárias

que a seguir se dispersam e vão por todo o lado

como redondas andanças dum sentir universal

e portanto bem nosso.  As manhãs

 

repousadas, um contínuo pulsar

de entradas e saídas

porque sempre a tal nos ligam alegrias e tristezas

se adolescentes somos ou já adultos olhamos

os retratos do passado e o barulho do futuro.

 

Os meus Cafés existem muito para além de mim

nesta terra, naquela e naqueloutra ainda

– Cafés de Portalegre, um Café de Madrid

onde li as palavras que Bergamín escreveu

a traços largos numa parede, entre desenhos

de companheiros já idos ou simplesmente fuzilados,

o Café de Leiria (como se chamava a menina dos petiscos…?)

que tantas vezes acolheu com bondade comercial

a minha estranheza de militar por acaso

lá na mesa do fundo, com muitos anos a vir

e a abalarem p’ra diferentes latitudes

ao recordar com afecto as refeições a crédito

do fraternal patrão e as viagens p’ra casa.

Um Café de madrugada, sito em Ciudad Real

onde fômos comer churros, acompanhados

por canecões de chocolate a escaldar, mas mais propício

que um discurso de alcalde ou señoria. Um Café

rumorejante de Paris

onde tentei encontrar resíduos de poetas báquicos e resistentes

e em troca – we never know – quase fui engatado por uma londrina

que certamente nunca estivera na Rua da Junqueira

onde habita a última imagem de Café que frequentei

antes de passar à peluda.

 

Cafés, entidades secretas de tessitura incessante

em vós se pode

sentir o amor passar numa figura desfocada

entre outras coisas que passam, cintilam e logo após

se dissolvem entre ruas calcorreadas e planetas

ano atrás de ano divisados

– um de cada lado da mesa, construindo

o imenso mistério que em nós pode habitar

e trocamos como um eco enquanto mastigamos

às vezes com manteiga, às vezes com mostarda

 

as lembranças da vida e as sandes de fiambre.

 

DAGUERREOTIPO

                                     (Sobre uma escultura de Jacob Epstein)

Na sala ligeiramente silenciosa

frente a mim e a oeste de toda a luz solar

há dois homens sentados. Um deles é barbudo

e ambos são infelizes

estúpidos e feios

mas duma infelicidade e duma feiura de homens

que são barbudos feios sob tudo o que a manhã pede

de húmido e habitual, histórico e quotidiano.

São infelizes e vão durar muitos anos

pois ambos se agarraram desesperadamente à vida

como se a vida – sem símbolos – fosse

em tamanho superior ao volume normal.

 

São homens que bebem comem e acham certo

que dormem e acham perfeitamente certo

que defecam caminham sorriem bocejam e acham

mais do que certo

que não concebem nada de equivalente ao voo sinistro

de borboletas verdes sobre o mar

ou duma faca cravada no pescoço queimado

dum aborígene, dum alfaiate qualquer ou dum

habitante desconhecido duma cidade inominada

Que num domingo sem maldade colocam entre parêntesis

algum espanto petrificado em horas, em minutos

até chegar o crepúsculo com o seu barulho encantador

com os seus pobres rostos vidrados de dois mil anos de civilização

principalmente nas infrenes segundas-feiras

e vão olhando um pouco atónitos o existir nuclear das cerejeiras

das flores sublunares

que é o que lhes resta fazer,  especialmente neste poema.

 

Coitados, não estiveram em Hiroxima

em Belsen, em Lisboa

– até isso lhes foi negado –

são, por estranho que pareça

habitantes do sétimo círculo paralelo à Ursa Maior

homens enfim do tempo do pepsodent e das canções ligeiras

das herdades antigas de súbito reconfiguradas

e da saudade, da mansa e dolorosa agonia dos pintores de Altamira

em postais pro bono

hoje viajantes perplexos junto ao túmulo de alumínio dos seus descendentes

enquanto lá fora os cães citadinos ladram debaixo da brisa que a tarde dá

e angustiadamente rolam pela relva, eles lá sabem

com os olhos postos num esquisito embrulho que ali ficou por esquecimento

– os seus olhos pacíficos onde parecem esvoaçar fantasmas.

 

Rockdrill  Rockdrill existe

digamos mesmo em coro    e paz aos homens de boa vontade.

 

Minha pequena Antígona, tu que com esse nome te autoliquidaste

e hoje mais não fazes que buscar sem repouso a caixa azul

levemente amachucada pelo tombar das vigas

tens, pois quem dúvida, um gafanhoto no teu sapato amarelo

douradamente grego ou mesmo Dior 37

prático, funcional mas elegante

como um bem esgalhado revólver de um designer de fama

apenas para assustar quem nos aborde na rua

com o pretexto de nos mostrar uma escultura moderna

um relógio de marca muitíssimo barato

um in-fólio iluminado por pontas-secas de Durer

e certamente uma ilusão abandonada

toda feita de palavras supostamente simples

nessas localidades inquietantes a que a tradição deu singeleza

e em cujos recantos caiem de tempos a tempos flores meio calcinadas

apontando sabe-se lá para continentes múltiplos.

 

Tu minha redôce Antígona, cinderela de papel normalizado

– e que bonito é ler, saber pintar, contar

histórias de estarrecer –

nos teus dias de volúpia como segredos contados

pelas aias meio-surdas desaparecidas, de balbuciados bons-dias

de guerreiros descritos entre o não e o talvez

procuras muita coisa essencial

quando o teu rosto ameno e comum irrompe em reflexo entre os drops das montras quando encostada ao vidro a tua infância sonhava

tentando ver o destino que adivinhavas sem escolha.

 

Sim  Rockdrill existe   quer o queiramos ou não

 

Que pensariam de nós os celtas, os aztecas

e os tais que devolviam os presentes que lhes eram atirados

enquanto um que outro gemido se ia ouvindo

à luz dum candeeiro de petróleo, provavelmente

se meditassem nos enforcamentos que o inverno nos concede

aqui, ali, acolá

quando à nossa volta crescem as velhas plantas tuberosas

de que já o Hispano falava com os lábios a tremer

se pensassem que nas mesas podem de repente surgir

uns quantos insectos mortos, vindos de parte ignota

alguns lápis roídos

ou uma pedra pequena

desenhada ou esculpida com um amor temeroso?

 

Todos irão ficar, não duvidemos, sem um ou dois

lugares onde estiveram tenuemente.

 

Não brincar, ou brincar, é o primeiro mandamento

já que os deuses nos facultam certos momentos de repouso.

E é então que se pergunta: que faz este copo sobre a toalha? Como

te chamas tu? E se pergunta ainda: somos candidatos ao recomeço?

Onde pousar

este cinzel tão velho, este bisturi rombo

com que matei o princípio que a todos foi comum?

 

Mas mais provável é que a resposta não venha

e que no átrio deserto e mesmo assim familiar

surjam de repente outros vultos barbados, de bocas

muito abertas, de silhuetas limpas mas aterrorizados

como o senhor amável que todas as manhãs delicadamente

nos saúda à esquina do prédio

em aramaico, em latim, ou numa língua maldita.

 

Claro, Rockdrill existe   e sempre existirá.

 

Que ninguém esqueça, por caridade, o aquecimento central.

E as torneiras cromadas, seria imperdoável.

Toda a gente, meus senhores, vai quando pode à consulta: de dentes,

de fígado, de circulação sanguínea.

É para isso que há especialistas dos mais diversos ramos.

E os telefones, não esquecer os telefones.

Mas sede por vezes sonhadores, como astrónomos,

pois sem piedade Rockdrill vai existindo.

 

Rockdrill, ó céus, existe e existe o vidro fosco

e os netos que tomam banho enquanto esperam quem os vista.

E gargantas que nos repetem coisas inesgotáveis.

E mortes mortes mortes rolantes e aflitivas.

 

Tiram-nos coisas dum lado põem-nos coisas noutro

anos e anos   e dias   de convulsionada ansiedade.

Em todos os países portos e pátios da História.

Por isso Rockdrill é uma presença palpável

nem vegetal nem astro excessivamente terreno.

Por isso Rockdrill nunca desaparecerá

pois conta-nos reconta-nos retalha-nos devora-nos

 

que ainda somos, aqui, o filamento mais excelente.

 

Antígona vive agora entre Sírius e Altaír.

 

DE  AMATUS
(Amato Lusitano, na sua celebração aos quinhentos anos)

 

Também ele conhecia como tu o sangue

o perímetro das veias, a primitiva viagem

nessa terra de desertos e de rios ao alvorecer

Também ele fugia não apenas dos caminhos que se perdiam

entre bosques de pinheirais e macieiras, nesses lugares

de pequenos animais ao crepúsculo, de casas

perto das grandes pedras de granito ou de xisto multiplicado

mas igualmente das válvulas incrustadas no corpo da noite

de rostos desirmanados nas grandes praças onde era irreal permanecer

onde o mar não achava horizonte de homens ou de fantasmas

 

Também ele

erguia contra o céu,  o sol,  a silhueta das árvores

um vidro facetado, a página de um livro, o perfil recortado de um fruto

e por um momento sentia correr a linfa pelos sítios ignotos junto ao esqueleto

e por um instante  sabia que a Terra ficara parada

e que tudo o que pensara era agora matéria de júbilo ou de pavor

 

Posso imaginar os teus passos na sombria rota através de um bosque em Itália

nos outros recantos que te acolhiam

o rosto grave, um olhar contemplando a neve que caía

e um silencio como se nada existisse na manhã

como num país perdido donde os teus vestígios se afastavam.

Posso ver-te sobre a mula ou num carro tirado a éguas, ofertado

por um paciente a quem devolveras a alegria

imagino-te talvez partilhando um repasto

numa sala abobadada de um companheiro de exílio

os aprazíveis frutos do tempo desses minutos sequiosos

Tal como ele, juntavas a serenidade ao porvir

ainda que por vezes a amargura fosse o teu seguro quinhão.

 

Anos e séculos se desbravaram, anos e séculos se dissolveram

e a música que cobre tudo

e a chuva que tudo envolve

e as mãos que se iniciam no que a sabedoria traz de imutável

e a fresca esperança do tempo e o que é uno, puro e não acaba

 

Quinhentos anos passam tão depressa.

 

POEMA ALENTEJANO

Nascer no Alentejo é engraçado

– com a morte debaixo e a fome ao lado.

 

Planta-se uma couve regada de urina

– colhe-se um maneta com viola e menina

 

É-se jovem e airoso como um deus antigo

– com sorriso rasgado da garganta ao umbigo

 

Esvoaça na rua da aldeia velha

A canção do pirata de brinco na orelha

 

(História contada no caminho

dos que estão

com a raiva ou o carinho

dos que vão.

História terrível

do Bem e do Mal

alentejanamente

convencional)

 

E o sol ao tombar doura as arcas de ouro

fugindo das trevas, vagalume mouro.

 

E o suão é suor de romance barato

– p’ra ter bem depressa toucinho no prato.

 

Saudades saudades saudades irmão

– natureza morta com cego e bordão.

 

Ai terra do Alentejo

corda de guitarra cigana

flor de lua ao entardecer

caranguejo de face humana

no dia negro a morrer.

 

(E o pastor que guardava o gado

jaz dolorido e enforcado)

 

Tudo está errado e tudo está certo

a oliveira ao longe e o borrego ao perto.

E balança a estrela da madre pendente

o silêncio da infância e a voz do poente.

 

Saudade saudade saudade perdida

na morte na morte na morte

da vida.

 

AQUI, ALI, ACOLÁ

Não se vai longe correndo

não se vai longe

a carne é fraca

o vento quebra ao nosso lado   as visões  os sinais

as presenças de gente e de lugares  de grandes

árvores solitárias

de portas que se abrem e de rostos sobre o seu

rodapé   de suas cicatrizes na madeira em que se bate

não se vai longe

dói por dentro a memória

o desejo

os grandes passos  as passadas ferindo lume

chispas mordentes de cavalo ou de avestruz no deserto

nas ruas imprecisas

mortalmente atentas

 

Não

não se vai longe

o peito ressoa

a mão grita

o olho soluça

e é por dentro um motor sufocando nas bermas

o nosso crescimento implume

 

Por isso é necessário

e vivente como andar de coruja ou leopardo

como rapariga apaixonada num café de vila remota

ir devagar

passo a passo

devagarinho como um ribeiro na pradaria   entre

árvores de fruto e plantas campestres

pé ante pé

com os dedos adejando  com os lábios

rebrilhando

e soletrar fragmentos de uma palavra serena

sonora

breve

 

Ir devagar

como se adormecêssemos

como se habitássemos um bosque

 

como se de novo chegássemos à primeira luz.

 

 

ATÉ AO FIM

Quando entrei na sala vi num relance que o meu demónio

estava deitado

A boca entreaberta, um resto de baba no queixo de quem

Dorme justamente como um anjo.

A janela pouco cerrada e o sofá chegado

à plena luz

A manta já antiga azul e amarela roçava o chão como se

Tivesse havido por ali discreta borracheira dominical.

Congeminei

Que ele antes de reentrar vindo do etéreo passara

por uma tasca ou que

aceitara a oferta toma lá dá cá de um qualquer maltrapilho

Cheio àquelas horas entradotas de uma modesta

fraternidade bebedora.

Olhando bem via-se-lhe contudo no rosto

uma vaga felicidade

Dizendo melhor uma centelha de contentamento

ou alegria, ou

assim como que a sensação de quem vira o mundo

no seu lugar real

 

Vamos a ver, no fundo a lonjura dominava

Como se visse o cavalheiro por uns binóculos ao contrário

 

Cheirava um pouco a flores e vagamente

a desodorizante

Um livro tombara no chão, ficara à espera

aberto anquilosado

Quando abri a porta da cozinha vi sobre

o fogão um tacho com

Uma iguaria qualquer com que se entretivera

certamente antes de cair no leito vencido

talvez pelas canseiras das últimas horas.

 

Se minha mãe estivesse viva decerto

lhe teria aplicado um raspanete

Uma expressão em dialecto se calhar

um tabefe levezinho. O meu pai

Poria na cara aquele sorriso suave dos dias sem idade

 

Lá fora estrepitavam ruídos da cidade barulhenta

Contos do dia e da noite, o irresistível

fascínio do desconhecido.

Sentei-me, a angústia apoderara-se de mim. Uma frase estranha

Revirava-se-me na cabeça.

Quando olhei pela janela o horizonte

pareceu-me uma linha ténue.

 

Mais tarde, pensei, falaríamos a preceito. Ou antes

por entre dentes eu diria talvez

coisas sobre a grande aurora ou então sobre a memória

 

Sibilina dos sobreviventes imutáveis.

 

LEONOR FINI

Qual é a voz que me canta

que me chama e desafia

a ir pela estrada onde o sofrimento do mundo

está guardado como para uma boda?

 

O doido penar da minha alegria

na sala dos sem coração

grita para todos os pássaros que me conheceram

 

Lâmpada, lâmpada de todas as desgraças

eu sei que o teu semblante me aterrorizou

e os lamentos estão neste lugar

como uma bela mulher de areia e neve

 

E eu adoro-te todavia

pois tu és como eu sou

como eu sempre fui

uma criminosa

a criminosa das horas flamejantes

doridas e sem medo

 

A tua mão tocou-me

bailando sobre tudo o que era nosso

a tua mão que se aproxima dos seios

das estátuas que crescem nos soalhos

 

E entre nós e o tempo das suas mágoas

somente está aquilo que não fomos.

 

O teu corpo, desfeito, recusa-se

o teu corpo, sem o ser, é a luz

mas o terror destrói a luz, na luz apodrece o riso

tudo o que existente foi para além do sacrifício

 

Os golpes do fogo tiveram a coragem de soar

uns contra os outros

anilhas de infinita ternura

e eu sei que o jogo não mais findará

 

A claridade da rosa ainda está escondida

nas formas das palavras ao acaso perdidas.

 

POEMA
(Xisto)

É de xisto que faço a minha casa.

 

Nela irei colocar os utensílios

As memórias que as coisas trazem com elas

A luz   a escuridão   os pequenos objectos conservados

Ou apenas pensados e que nunca

Se tiveram no decorrer dos tempos

E as roupas penduradas guardadas em gavetas

E papéis indevassados e móveis já em desuso

De quando os anos passavam sobre as árvores da quinta

Dias que se apagam com um gesto tão simples

Como um torcer de mão sobre uma folha de papel

 

E muitas coisas úteis e que nos faziam lembrar

Movimentos naturais tão justos tão discretos

Onde a terra congrega imagens que nos sustentam

E por vezes o riso numa sombra

De alguém que fala sem que entendamos o que é dito

 

O bruxulear duma pequena chama para clarear a noite

E faz com que as palavras tenham outra matéria

– pedaço de pão   bilha de água   fruto ainda fresco da colheita –

E com ele o perfil de um animal que por momentos

Olhamos sem sentir    a esquina de uma rua

Num outro lugar do universo.

 

Uns a fizeram de madeira ou de granito

E colocaram nos séculos sob o silencio das manhãs

Com o que pensaram com as vozes que as acolheram

Para os campos da neve   do grande sol dos astros

E dos murmúrios da amargura

Com flores dentro de minutos entontecidos

De horas para outros destinos

De anseios e solidões.

 

Mas de xisto farei a minha casa

 

Dessa matéria tão próxima e tão longínqua

Tão para todos

Tão para nenhuns

 

Que a não saibam erguer como se ergue o que perdura.

 

PARA ANTÓNIO SALVADO

Mas uma só palavra me acudia à mente

Enquanto devagar ou antes   ainda sonolento

Ia executando os primeiros pequenos gestos

Do acordar

Primeiro uma perna posta quase ao acaso

No soalho sobre algo que na madrugada

Ali se dispusera   uma peça de roupa  um objecto

(e pense-se no que estes minúsculos pormenores anunciam)

Um botão um pente de matéria plástica   vermelho   num bolso

Um arrepio porque é de facto um outro dia

Murmurações recordações uma árvore que oscila contra a vidraça

A sombra

Um traço de luz   São os gestos

De um novo início

 

Sete horas oito horas   mas mais que uma palavra

 

Ou antes  um pedaço de frase   mesmo assim

Um começo do que sabia um rasto   um vestígio vago

E repetia   repetia sem cessar a sua melodia solene

Mas não bem solene   emendo   com sua tessitura iluminada

Assim como sacral   ou diria   comovida  e talvez

Ponto de fuga para outras latitudes

E ia   e vinha   e fazia-se memória

 

(Eis como é o mapa o continente do que repercute

Do que por um breve momento é bem matéria viva

Na nossa cabeça    como se diz   no que pensamos)

Um verso   um verso apenas e que quase não se situa

 

Duas três palavras  como som desvelado   como reflexo

Uno e duplo  duplo e uno porque ligação de descoberta

(“Dos olhos e das mãos brotam as coisas”)

De casa entre ventos  de sons ora surdos ora ecoando

 

E é a voz que nos chegou   incontida  perene

 

E finalmente o grande arco do mundo é junto de nós

No nosso corpo inconcreto

No tempo que é bem nosso

De novo o princípio duma manhã reencontrada.

 

MURALHA

Na maior parte das vezes não

vemos as aves levantar voo. O de farda contava

que não havia muito ruído, que era na meia-tarde

enquanto elas passavam, que iriam

ao pequeno restaurante imaginado. Resta

uma questão importante,

dizia o outro, o radar pode ter diferentes efeitos, uma rosa era

uma espécie de pedra sobre o teu cerebelo. Semelhante

à doença dos mergulhadores, os animais da

auto-estrada e os estorninhos da floresta ao lado olham

com doçura o azul do céu. Eis as tuas mãos, os vestígios

da alegria.

 

Não é portanto uma história da natureza. Sente

o que não sabes, vê

o que não dizes. A tua voz ressoa

nos olhos dum peixe amarelo entre pedras

– a hortelã e o funcho, na ribeira sobre as hortas

nesses  dias adolescentes no calor de Junho –

e o que alcançaste é apenas

ainda que o não saibas, mesmo que o não suponhas

 

a memória de coisas que outros outrora sonharam

em fragmentos de tempo

 

para além da distancia no céu enegrecido.

 

“A MORTE NO JARDIM”

                                                       a Max Ernst

 Hoje os pássaros não cantam como dantes

nem as portas batem como antigamente

nem os gatos, que tanto amavas

como dantes vagueiam no lar dos homens.

 

Partiste

e algo terminou, que não era

simplesmente o teu vulto de príncipe renano

traçando a rota primordial

ou apenas

a tua boca sussurrando nas planuras encantadas

les hommes n’en sauront rien.

 

Foi aqui que tu morreste, Max

nesta rua portuguesa onde as crianças brincam

neste pátio de casa provinciana a que as plantas conferem

a dignidade e o medo

a beleza interior de algo humilde que se evoca

foi bem aqui

nesta Cidade Inteira

repleta de inocência e de amargura

neste Café que se alonga como se quisesse devorar o espaço

neste quarto alugado onde os amantes se encaram

como se se vissem pela primeira vez

nesta praia policiada pela maldição das pátrias

neste silêncio

neste espanto

nesta ignomínia.

 

Alguém um dia desenhará nas paredes derruídas

o coração escondido da tua Ninfa Echo

com o ar de quem volta de uma grande viagem

com as mãos humildes e já serenas

sem que ninguém lho impeça

Algum dia, no doce recanto duma madrugada

alguém entenderá porque sabias tu que é bem real a Vila Petrificada

e então será possível o caminho até ao mar

e os homens saberão finalmente

qual a melhor mais bela delirante floresta

guarida para os cavalos e os animais nocturnos

E que será na penumbra das ruas desse mundo

onde cantamos, comemos, bocejamos, padecemos

que a alegria submersa se haverá de descobrir

paciente e subtil como uma estrela abrindo

sobre uma antiga casa.

 

Há gente que fala, dizias tu. Há gente que fala

mas as palavras sabem a azebre e a limalha

e a tristeza e o remorso percorrem-nos os ombros

como um pedaço de um qualquer metal maldito

pois a cidade violenta devora a sua própria cauda

como se fosse ainda existir centenas de anos..

 

É nas coisas reais que morres em cada minuto.

 

Neste pedaço de pão a que uns dentes ofereceram um sinal de fogo

nesta janela aberta como se aqui tivesse sido posta para um acto teatral

neste incrível Abril de vozes sonolentas

chamado muitas vezes a ultrapassar o tempo

É aqui que tu morres com as palavras por companhia

em cada hora de desespero organizado

nas vagas caravelas sulcando o mar oculto

para as ilhas para os momentos para os sonhos.

 

Não morreste pela razão das armas

como essoutro teu irmão Garcia Lorca

nem te foste pelo postigo octogonal

que Jacques Rigaut escolheu lucidamente

partiste, apenas partiste como um fruto demasiado maduro

como um ovo que se quebra no minuto habitual

como uma cama revolvida pelos espasmos da solidão

e que já nada dará  nunca mais   a quem a abriu.

 

Por isso Max para ti não tenho mais que um olhar longínquo

ou um breve uivo de raiva à altura do coração

para a tua fresca libertação

para a tua máscara e para o teu cinzel que soube construir

e desconstruir de seguida

todos os Napoleões do Deserto

mas mesmo assim dói

e persiste

porque ficámos mais sozinhos ante a solenidade e a ganância

e não mais nos dirás que a vida reside no segundo degrau.

 

Porque quase ninguém tem a coragem de brincar

como tu a sério dizias defronte ao teu chemin mistérieux, debaixo

da tua eternité des mondes

nós continuaremos com os nossos frágeis cigarros

lançando o fumo da nossa dor revoltada de encontro às sombras

que já se vêem surgir no tempo

do derradeiro arrepio

como um tremor na montanha distante

no mundo que permaneceu

 

nesse teu universo adivinhado

tantas vezes sonhado, no plenilúnio

 

pintado e escrito.

 

COMO O OUTRO QUE DIZ

                                                   ao Mário Cesariny

I

O que os meus olhos seguem nesta vida

tem mais perversidade do que manha.

Não está sempre perdida

não é sequer estranha.

É um pescoço

rodando lentamente para o lado da sombra

para o lado da barca dos primos de Cacilda

franja por franja correndo o espaço morto

tão depressa coitados como se fossem de mota

ou sobre o rio

sem margens

sem o batuque doido extremamente caligráfico

da água interior

dos nomes.

 

E os cabelos   os cabelos do mundo

estão sobretudo aqui

nesta cadeira branca simulando o silencio

a quinhentos quilómetros a oeste do mar

equidistante   gélida   submissa

detendo-se de súbito na sua própria agonia

muito perto   demasiado perto

do jardim diurno dos réprobos cuja candura

acende

e se dissolve

se dissolve sem mágoa

uma e outra vez   e ainda uma outra vez

no colo amarelíssimo de Rosaíris.

 

Escuta   por favor

escuta

não os enganemos    nunca

A voz que me sopra junto ao tímpano

vem de muito longe    vem de muito longe

tão morta como viva

e em vez de dizer arcano diz madrugada

e em vez de dizer o mundo diz fogo-fátuo

virgem    montanha    almofada

diz os catorze nomes que é proibido ouvir

diz o dia e a hora de todos os demónios

e um corpo que se agita por baixo das arcadas

no Alentejo da Europa dos automóveis por dentro

buscando a clareira imprecisa dos cemitérios

em Sintra   na Ericeira   nas ruas de Lisboa

nos locais onde canta a raparigataúde

imersa em claridade

em cuspo

em chuva.

 

No entanto, no entanto

é preciso sim senhor desesperar

digam lá por favor que é preciso

andar de novo ao longo da estrada de tijolo

adormecer cantando nos túneis    que maçada

e defecar do alto duma árvore

para cima da moleira de Adonai

depois olhar as estrelas que surgem dessa vasa

e recuar para o sítio onde o barco dissimula

a sua rama suja do Oceano

esperando a tardinha   o vento morno

a negra Primavera e o rei do bosque maldito

com barbas adejando como um estandarte louco

no seu retrato igual ao rosto do emparedado

na selva da distancia

que ninguém

nem mesmo nós

conhecemos.

 

II

Todavia o homem-mosca bate que bate

a a mulher-gafanhoto sopra que sopra

e o senhor-fantasma rema que rema

entraram já na casa inconquistável

e nada deixaram de pé

e eis que de repente há alguém que se interrompe

perto do braço-bandeira a oriente da aurora

e tudo fica escuro, serenamente

como colunas raras de cimento

na cauda sexual do elefante por fora

cujas presas bem limpas desfizeram o dia

levemente atmosférico

sobre a areia do universo   no país onde o choro

é só até ao estômago

e alguém espera   tremendo   que o fresco sangue de Alceste

o outro sangue

seja a calamidade e a angústia

que não vão de avião para nenhum deserto

nenhum glaciar horrificado

nenhuma cama especiosa nenhum comboio sem lágrimas

nenhuma taberna de Alcântara onde o sarro dos anos

se descobre no salto da pantera

que galga o passeio de azeitona na boca

de axilas escurecidas

cujo suor excessivamente espesso

é bem o resultado fiel do habitante da cubata

com um diamante escondido numa ferida

o filho infiel da oração dos marinheiros de outrora

a rua do mundo que desemboca numa laje circular

em frente do lago pútrido

aguardando sem minutos desaproveitados

os que gemem  os que se cobrem de negrume

os que nada querem imenso

e só sabem sonhar em termos de ave ou de horizonte

de rato semimorto encontrado num jardim

de árvore

de meio-homem de Epaminondas os sustos

duma Lisboa sem língua

de janela de um país efémero

de constelação trepa que trepa, enfim

de mancebo de pouco futuro desaparecido

de todos os barulhos da Terra.

 

Mas convém, ó meus amigos de infinito

que tudo seja aquilo que sabemos

e fazemos

o perfil ardente sorvendo o rio trovejante do mundo

a garganta trémula dos lobos ao longo dos carris

sob os tectos

da cidade repleta de ferrugem

e cal tocando o horizonte

ferido como o braço rasgado arrastando sangrentos

embrulhos para a campina solitária

para a babugem da praia na linha de água do mar

onde os peixes ficaram nessas pedras nesses recantos

tão conhecidos por Ahab, o capitão louco

e o seu tubarão vermelho.

 

Entretanto o poeta cabisbaixo os bantus e as aves

lá vão ao longo das avenidas

nesses táxis que usávamos sob um trémulo firmamento

na Praça do Intendente onde numa noite de repente

as palavras mais simples se velaram nos nossos lábios

como os de Bulgakov, como se fossem de Margarita.

 

E uma luz assombrada

abominável     aos solavancos

crescia em todos os pontos cardeais

em todas as coisas que se divisavam

ao vicejar da treva

entre os degraus dum largo sem nome e sem lugar

na mão tremeluzente, na chave de novo achada

para trespassar todos os símbolos

quando o homem de cinzento erguia no seu chapéu

entontecido e prestes a partir

uma agonia lírica, clássica, regionalista

 

para todos os rostos destroçados.

 

POEMA PARA ANGELA DIALA

Este poema é para ti, Angela meu amor

Angela Diala,  loba de dentes cintilantes.

É para ti a febre é para ti o sono

é para ti o pulso sangrento desvendando

o caminho de tudo aquilo que eu adoro.

Angela com raiva

Angela com mágoa

é para ti este poema e o triângulo dos meus olhos

e a pedra escura do meu peito

e a viagem entre escamas e pesadelos

e a órbita o vitral do meu amor perdido.

 

Quando à noite o corpo lento da Terra

desperta para a ternura e para o esquecimento

todos os vulcões me escutam   todos os braços

me apontam a antiga multidão em chamas e serenidade

a noite que me determina

o dia que me socorre

a noite e o dia verdes da minha amada

África

amada dos ventos que em mim forjam

os tempos anteriores e puros até sucumbir.

 

Sob uma tenda repousa

a lança misteriosa da liberdade

em tristeza dorme

em amargura dorme

mas sem que o elefante negro dos sonhos

depois de ti e de mim

depois de todos nós

crave o seu louco batuque nas cidades.

 

Em Londres, Roma, Paris

na gordura escorrendo das paredes   um choro

eleva o seu canto de cegonha e de navio

e tu Angela passas

por entre o cinzento das avenidas acenando

a saudação do porvir   o futuro incendiado das ramagens.

 

Tudo o que está em mim foi de ti que me veio

de ti antigamente do que tu foste e és

da cabeça de bronze em frente do cavalo

que apenas uma palavra espera para surdir

do fundo das mãos negando o tédio

do rumor das sinetas   do desespero   da cinza

de todos os medos que não conheces

e que são o meu trigo deslumbrante e astral.

 

Angela, para ti

é este poema

mas não somente o poema, a cabeleira do verbo

não simplesmente o sal maduro dos anos

 

é para ti a liana rememorada

o vinho atravessado pelo rasto das caravanas

a suavidade dos planetas   dos rebanhos emudecidos

de todos os desertos, savanas, ilhas rebeldes

 

da minha voz, da esperança, da lembrança terrena.

 

FÁBRICA NOCTURNA

ANÁLISE ESPECTRAL

Embora seja dia

a vida densamente esvoaçante

por uma profunda afinidade com a virgem negra

do hemisfério tranquilo

inclina-se cada vez mais.

 

Os veados na pesada clareira da floresta

colocam travesseiros em frente dum ventilador.

 

Sob os lenços   durante uma fracção de segundo

as luas desabam estendendo a mão.

Os homens libertam-se galho por galho.

 

O sangue passa pelas agulhas

em velocidade moderada.

 

Tudo é um clima e não um tempo.

 

El Norte!” murmurou o anjo

aconchegando-se nos seus trapos

enquanto deus encolhia os ombros

resignado

ameaçado de atraso na sua enorme torre branca.

 

Ora mais ligeira, ora mais vagarosa

a dama suspensa reflecte a luz contra o rosto

da memória não-habitada.

 

A extravagância avança entre chamas.

– O que é o Homem? pergunta o pássaro a vapor

no desfiladeiro das cavilhas.

– Um produto que não pode ser guardado

transportado e consumido

tudo no mesmo instante. – responde a pomba de Verão

mergulhada em agonia

meio centímetro a leste do céu.

 

É tão vão esperar que a alma se suspenda

numa peneira

como esperar que a virtude

no longo declive das lendas

projecte sobre o Universo a secura hibernal

das grandes feridas.

Finalmente, o Homem, a truta, o escafandrista e o ouro

incendiado

levam-nos a crer na existência de diversos estados

oscilatórios

com períodos duplos ou quádruplos:

o amor, o crime, a solidão

etc, etc.

 

ELES VÊEM

Desde os seus inícios a inocência pretendeu

ser a obra eterna a uma dimensão nova no sinistro universo

das qualidades. Mas na ilha onde germina o zimbro

das gargalhadas, os altos fornos vencidos esquecem os grãos

da idade e os anõezinhos persistentes.

A ciência é a imagem do Verão em conflito

com a serenidade talvez assassina.

Posso estar em desacordo com o meu próximo. Nunca, porém

com a consciência do trovão numa sala às escuras.

Submetendo os deuses a excitações que exijam

respostas contraditórias

verificar-se-á que a madrugada é uma máquina

misteriosa, muito diferente do aspecto dado por duas

ou três gotas de saliva segregada pela carapaça

ardente da humanidade.

Sabe-se que a eloquência das paixões é semelhante a uma

aurora olhando o Inverno penosamente.

Mas, cuidado: o Homem esquece; o escaravelho agoniza.

E os licores preciosos nem sempre deixam as mãos contemplar

com ternura o coração gelado da amante morta.

Assim o milho provoca a melancolia. Assim os pêndulos

choram, ao longo dos continentes, a firmeza

magnífica dos loucos, esses que entraram já

na máscara da Terra, e vivem

paredes-meias com os mortos

e com os ratos negros de perturbantes

cabeleiras.

Assim na colina cercada de sonhos

por todos os lados

nesse leito de prata onde se morre

sem chaminés nem horizontes

ante o brilho devastado das janelas

o manequim venenoso solta o seu pio

o seu gemido iluminado.

 

A morte é uma chave; ávidos, entre as colinas dardejantes

eles espiam a orgulhosa concha

da ostra solar. Povoadas

de ossos musicais, as cidades entregam-se

à ferocidade e ao crime duma perpétua

 

abstinência.

 

POEMA

É possível que a sobreposição da vida e das manchas sonoras

nas paredes dos corredores

constituam a primeira evocação dos mágicos que nunca

falaram nem podem emanar deles mesmos.

Muito frequentemente

os desenhos que a criança executava navegavam sobre a obra

das gerações. As transformações progressivas

reflectem um mundo onde o isolamento se baba com autoridade.

As aves que serenamente voam nos domingos

conhecem agora a catástrofe.

Não é de estranhar que as ondas e os lírios

da fascinação chorem no jogo do amor: nunca ninguém dissera

arquejando que os ouriços cujas campainhas se agitam

apodreciam junto ao sorriso da Virgem.

O rigor – essa formação paralela – caminha na eternidade

como um rosto.

Pela noite

enquanto milhões de almas amavam a bela mulher de cera

os invisíveis partilhavam o sofrimento.

Todas as dificuldades apareciam e desapareciam.

Os três objectos que seguiam o pó das datas convenciam-se

de que o mas de cada poeta não era mais do que uma flor

sem braços.

Milhares de silêncios negavam o não.

Os outros

que sobre os sinais característicos do Mal

ocultavam os restos da agonia

renasciam de tarde soluçando

erguendo o seu castigo com bravura.

Este candeeiro seria até capaz dum assassínio.

– E os esqueletos? Onde se encontravam essas formas geométricas

concentradas num gesto molecular

depois iluminado com a sua própria história?

A tonalidade musical não respondia.

Em torno do Futuro as abóboras fluíam

contrastando entre si.

Muitos anos mais tarde

nos dedos insubmissos do sentimento

necessariamente feito para tranquilizar

o exotismo depunha gravemente

micróbios e ausências.

 

POEMA

O fatalismo primaveril é uma oferta

liberta, mole, autografada

em pé

na cidadela da dúvida.

Inquieto e isolado

o moscardo fiel espera a escama dos olhos

e dos amores

antes de largar a sua pele

de rato sob as intrigantes lunárias.

Depois

dos amados anos

fica no lazareto

chorando a partida

dos búzios

o ranço

dos astros

medrosos

a agonia dos

renascidos fetos

 

Noite, noite

homem, mulher

agasalho esfumado da Terra ardendo

ergue sem piedade a nossa

violação

o nosso

jogo inútil.

 

A voz apodrecida

sentada

de enormes vultos negros descendo

os rios

lança no infinito a lâmina do Levante.

 

Macio, macilento

eterno

caminhar da ternura

quem marcha em ti antes do meridional assassinato?

A modéstia protege-nos

putrescente

e reconciliada

 

e o sangue não é sangue

é um salvo-conduto

assenhoreando-se do inferno e do céu.

 

Novamente

a luz.

O luto

a manhã que mastiga

os ossos

construídos no corpo.

 

O perigo em nós remove o sentimento

ilusório e fugaz

de não morrermos nunca.

 

POSFÁCIO

Quanto ao resto, bom dia

que é o hábito, pois então

e grande é a seca nos campos

e fraco o oxigénio. Enxertias

nunca o mar as dá à mesma glória

– como eu vos compreendo! –

fica sempre o remorso

uma certa dor

de canto para canto

de telhado para telhado

palavra que cruza a estrada e não se vê

cair

e finda sob as rodas.

Constantemente

o barro e o cimento, a parede e o entulho

o leve esvoaçar da mosca morta

queira-se ou não, suba-se ou não se suba

 

E aqui Ele é que pode

e tem disso a matéria

irrecusavelmente

perversa.

 

Não há pois almas nocturnas

camisas penduradas   na manhã

manteiga e queijo, toques de campainha

carteiros e gatos

não há nada

a não ser lá quando o rei faz anos

(o rei do Sul

e de outros pontos misteriosos)

um pouco de piedade

de tal forma que a luz

se apaga.

 

E aqui Ele é que sabe

e fixa a substância

intraduzivelmente

maldita.

 

Todos os que dizem que viram a imagem

todos os que sopram a penugem adivinhada

todos os que se calam depois do que calaram

todos os que se baixam até tocar o solo

enquanto caiem no solo

não são p’ra’qui chamados: miniatural

é a tristeza   e a distância

verdade transitória

viscosamente bela.

 

E aqui Ele é que observa

a nossa voz: mãos

e números diversos trocando

entre si o espanto (a dimensão de oiro)

e a agonia

constante e luminosa.

 

Quanto ao resto, boa tarde

boa noite

boa hora

 

Boa miséria.

 

A S S E M B L E I A   G E R A L                                                                   

                                          (Turba Philosophorum)

Um dia o lirismo veio ter comigo

não me recordo já se de tarde se de manhã.

Mas lembro-me que havia um estranho ruído nas ruas

de gente que subia   que descia

e do antigo tempo – como nos sonhos –

saía uma luz como que de farol de automóvel

e o verde-escuro dos rostos crescia  a cada segundo

como que para estabelecer uma atmosfera de amargura

todavia amável.

 

O lirismo a princípio apareceu

como um simples habitante

quero eu dizer: com figura de homem

o que não deixa de ser perfeitamente natural

se nos lembrarmos que os andrajos e as cartolas

constituem ora mistério

ora logro

ora elemento transfigurado

– culinário, diga-se assim –

seja na Poesia que se enrola sobre si

seja na Música como um braço tatuado

ou até na Pintura cuja ternura nos acompanha

como um canivete de infância.

 

Bastou um modesto aceno com os dedos da mão direita

que nem sempre ao contrário do que se diz

tocam ao acaso um dos pontos cardeais

para estabelecer o natural nestas coisas: o lirismo

tinha de facto um coração atormentado

perdoai-me a ironia, ó amantes

perto do lago Léman

e com um ar triste tocou-me ao de leve no braço

mas não havia árvores por ali

nem casas

nem pessoas

naquele momento como que estávamos em certo núcleo interior

– o assunto era já outro –

estava de repente muito claro e os jarros sobre a mesa

apagavam-se pouco a pouco.

Mas como durante anos utilizei palavras evidentes

(como saleta   tuberculose   amendoim)

foi-nos permitido reentrar no ambiente de todos os dias

que não tem mal nenhum: há zumbidos de moscas

e um olhar súbito de face surpreendida   branca

e alguns garotos que todas as manhãs passam por nós

a caminho da escola na rua da Fonte do Penedo

(estamos todos no mesmo barco, ia dizer

mas nós é que riscamos o derradeiro fósforo

e o olhamos contra a silhueta das casas)

e seja-nos permitido

guardar uma fugaz circunspecção

para não enovelar toda a conversa.

 

Chegou e fez

coisas impossíveis

e não havia já barulho no corredor

porque lá as diferenças não são acentuadas

uma pedra aqui, outra pedra acolá

e a nossa voz reflecte-se como se recordássemos

e se algo brilha (ou não brilha) sabe-se que ali

é o corpo

Sabes   dizia ele   foi tudo uma maravilhosa aventura

ó os anos na quinta que tinha aquele grande pinhal

sombra dedilhada, que é como quem diz

perfeitamente posta num caminho de saibro

e o Pai com o seu grande chapéu de alquimista

afeiçoava os dias

e uma penumbra de mão na estrada vicinal

Não há coisas fora do mistério de arbustos desconhecidos

o que já foi já é   retrato ou natureza morta

mas sempre com as cores necessárias.

 

E de repente estávamos todos com a mesma cara

havia uma cara de apreciador de calendários

como nos tempos de Abu-Bakr

ou dos antigos egípcios

aqueles que nos confins do deserto divisavam ondeando

a molécula primitiva – para bom entendedor – ou figueiras

noutras terras, com um sol no labirinto

ou com a cara que se usava nos anos cinquenta

Os Citas, a propósito, eram cavaleiros exímios

e de acordo com Sir Vivian Fuchs

“foi no dia 26 de Dezembro que realmente começaram as dificuldades

é evidente que

se trata da viagem de travessia da Antártida

– lá ao longe as montanhas ligeiramente negras, o barco

uma breve mancha negra como um animal gelado

(a horta era em socalcos e havia um tanque

e havia uma pequena estátua num nicho  seria a deusa

das ervas?)

Ora portanto

o lirismo queria dizer-me coisas e sentámo-nos

num degrau das escadas da capela do Miradouro

de São Cristóvão

dali vê-se a cidade inteira

e durante alguns minutos nada dissemos um ao outro.

 

Lembra-te

os ramos das videiras

brilhavam

– nada de perdões fora do tempo –

dentro de ti ficará sempre qualquer coisa inescrutável

mas é preciso   falar e dizer que em Novembro há uma rua em Coimbra

e muitas outras ruas no mundo para muitos anos

As cerejas comidas numa azinhaga a oeste

do clube de ténis (a casa

recorta-se como um barco silencioso de encontro às sebes do monte

que antecede São Mamede) vão vivendo pelo tempo fora

e tudo flutua

 

Lembra-te

as rosas que nos sábados bem cedo te traziam do mercado

lá estão elas sobre a velha cómoda

 

Lembra-te

os pequenos cactos na janela da moradia defronte são o penhor

de um silêncio íntegro e solitário.

 

Agora um aparte: às vezes

Deus começa a meter-se nas coisas

ultrapassado o negrume entre os castanheiros

um escrito como de até à vista

Que aqueles que viram Deus face a face me entendam

e me escutem   fala por mim a voz da justiça

não me façam rir mais, por favor, ora ia

eu dizendo que o lirismo tinha agora cara de rapariga

tinha uns olhos cor de avelã não completamente madura

coisas que servem para ler o jornal

poder ir sem tropeçar ao mictório e ao super-mercado

olhar a Lua em terça-feira gorda

os desenhos sempre alucinantes da vegetação antiga nos

livros de ciências de antes da guerra

Ora bem

pôs-se a olhar para mim

e contou devagar: setenta e dois, trinta e sete, quarenta

(mas dizia tudo de trás para diante, como Calígula no teatro

ou como se recitasse aquele poema de Rilke que se refere às

peras maduras que uma criança devorará)

não era nada disto

estou a brincar convosco   ou antes   a delimitar

este é o mapa

aquele é o mapa   inteiramente cobertos

o que disse, asseguro-vos, foi muitíssimo diferente

Falava, segundo ouvi, nas idades mortas da Terra

e na altura do oceano que só existe nas fábulas

e em como era grato sentir no plexo solar o ar de Setembro

– na praia há, sensivelmente, tanta areia como astros na

Via Láctea

li num livro do Asimov    personagem singular

não há somente areia mas estranhas figuras evanescentes

carne de cefalópode, de tyranossauro rex

e de rynocerus ou lá como se chamava

porque tudo vai morrer em frente do grande mar

cor de vinho como na Odisseia

– e, a propósito, sabiam que se sobrepusessem

um mapa do Pólo Sul

à Europa    a base de Shackleton ficaria quase sobre Lisboa

e a de Scott sobre Estocolmo? – e o lirismo

dizia-me que por dentro tinha ora a neve ora a treva

e sinais de que não se conhecem coordenadas

sob o firmamento   apreciem a cagança desta frase, flor inicial

que vos vendo pelo preço que me custou e que vos ponho

à consideração de jovens animais do Terciário. No começo

era o vento

(e chega-te para lá, ó eterno Adão

senão levas um chuto nos tomates

falo como quero e onde quero

significando então que há palavras intraduzíveis

e faço os trocadilhos de acordo com as Estações)

que não inclui lepra   ou estátua de sal    ou cancro atómico.

Os inteligentes    que me perdoem   mas é sempre

entre Tel al Amarna e Lagash que se sente o apelo

e subitamente ante nós aparecem imagens irreais

e a montanha da primeira estrela dupla

– uma criança passa, com o seu boné de lã cinzenta

junto ao alpendre da taberna –

porque uma coisa está por detrás da outra e há

um choro que se ouve vindo das traseiras do velho estábulo

entre a neblina ao pé do tanque

quando ainda existia a azinhaga onde cresciam

fetos e plantas incógnitas.

 

Ora bem

dizia eu que os caldeus adoravam o equinócio de Verão

e nem tu meu amor soubeste entender o que havia

de terrivelmente distante ou seja

vivo e sobre os velhos sinais de betume e tijolo

passe o exagero

uma que outra vez fico muito calado e do alto caiem figuras

ou chegam mansamente    as antigas

faces dos filhos, de todos os nossos

pais e mães, mulheres e amantes, pois que todos

têm mais que um só significado

digo   um rosto   fugiu-me a boca

para a grande espiral dos planetas exteriores

é cá uma maneira de dizer    nada de sustos

ora aconteceu então que tudo ficou como as cartas de jogar

cara de valete para baixo, cara de valete para cima

e o Outono anunciava-se e um garoto trepava pelas paredes.

Como dizia aquele zé dos anzóis

esse da legenda mais que tudo parisiense

se o meu intento era louro

era suficientemente desembaraçado

para ir à pesca e trazer um bacalhau de oitenta quilos

(mantenho-me jovem porque por baixo da camisa

trago não apenas o esqueleto e os tendões

mas inúmeros sonhos de gatos e cães

que sempre são mais solenes que o vulgar homo sapiens)

e já agora, antes da pista final

uma história: em Alexandria

dizia-se frequentemente que de Hébron a Nippur

eram duzentos dias de marcha

e havia bosques de palmeiras a toda a volta

e o ar era frígido de noite como nos plainos da Bretanha

e por detrás de nós havia passos docemente retinindo

e também, como o recordo, aves no negrume que se avizinhava

Iremos, pergunto eu, mais depressa que a estrela

que em Belém anunciou o nascimento do Cristo

E será verdade que no tronco das bétulas brancas

as borboletas alitreus bombex mudam de cor através dos anos

o que corresponde não só a uma mudança de habitat

mas dos hábitos da espécie

uma estratégia para sobreviver?

Neste universo de duas

mãos dois pés não subsiste o grande sonho

ainda que o contrário seja possível admitir

O que há é um muro de quartel ao longo da Calçada da Ajuda

e flores e frutos no pino do Inverno

o que afinal está certo   por razões desconhecidas

os grandes sáurios morreram em pouco tempo    o que deu

possibilidades para que a cadeia da vida continuasse a rolar

e depois nascesse o Homem   o castor    a rena

nossos bons companheiros de vida sublunar. Apesar de tudo

vos digo, ó alturas de Machu-Pichu

que gostaria de saber-vos loucamente amadas

com todos os números pares, com todos os números ímpares

sulcando o céu cor de cobalto

ou entre a ponte e o rio, pois há sempre um rio e uma ponte

entre possíveis e impossíveis

entre luz que diminui e lâmpada que imita

a voz do antigo deus    Dionisos ou Chukulkan, esses que numa

rotação milenar navegam intemporalmente.

 

Sob um qualquer momento    divino

entrai no campo – o lugar das plantas vai mudando

o vosso corpo fede, a unha estreita cobre-se de baba

nada parece belo e nada parece horrendo

nesse princípio que é futuro e passado. Procurem

a palavra que faça zunir

lâminas de carne entre bancadas depois limpas

– a boa terra grumosa assemelha-se ao papel

de súbito povoado por figuras atónitas

Porque desde os caldeus e os gregos, os persas e os assírios

a certas horas da noite em certos lugares das cidades

um virar de vento agita um minúsculo fio de lã

um farrapo que um dia existiu em qualquer lado

– a lua nas vidraças não existe   é uma recordação

onde entram de juntura um cântaro e um lábio sangrento

meditados com alegria. O cheiro da chuva é agora

como um coração cheio de moscas. Passo e repasso

sucumbo   como através duma montanha

a luz de um camião na estrada da vertente. O que Scipião

Africano fazia era juntar por sobre as rochas o

que à natureza é defeso: a fúria da língua, o

hálito fortuito numa cama aberta

entre as eras.

Sabeis a pergunta? Um lápis como um arado arrasta

o perfil de alguém que com uma faca separa

tendões e ossos. Uma caixa de fósforos e uma folha rasgada

onde se pode ainda distinguir

algo que poderia ser uma flor branca –

e alguém corre e murmura um nome

e nada do que no homem é nossa proximidade

é o contrário da lenta estranheza que na manhã nos antecede

pois o orgasmo não é uma pedra mármore ou uma esponja

e há por vezes de noite, naquela quinta a sul da terra dos pais

um súbito cheiro de curral

um joelho que seria possível ver nos declives da cidade

mas que desaparece minuto sim minuto não.

O que é certo é que a verdade atravanca os séculos

não, não atravanca os séculos, os séculos

são uma hora dividida entre Julhos, Janeiros, Agostos

e a verdade atravanca-se a si mesma

reflectida no pó é de repente pó e de repente cera escura

para que algo incolor se despeje e inicie

uma atmosfera exposta

ao brilho dum pulso queimado.

 

Saúdo-te, antiga melancolia

que não és melancolia pois pelas ruas há filhos que vão

e filhos que vêm

como se um limpa-parabrisas fosse um arco-íris no Verão

Distingo do lado esquerdo uma parede romana

mas é um quadro de Van Gogh

mas é o vestido de uma holandesa num texto de Paracelso

e passo-te a mão sobre a cabeça

e acontece que a electricidade flui em toda a casa

belamente erguida e que me diz    espero.

 

Renoir morreu aos sessenta e tal anos

e no último momento pediu que virassem uma perdiz de lado

no seu delírio para a pintar melhor.

 

(Agora, vejam bem, já não pertenço à ilha

não sou nem Sagitário nem Virgem, nem Peixes nem Aquário

não trago comigo o cão e a aranha, acima dos outros seres

e a capa que nunca bordarás e os couros vermelhos desfeitos

e a lebre e o cavalo   e a folhagem de Janeiro

sou talvez como

uma noz que nunca morrerá

uma almofada de veludo amarelo

inerte como um aparador ou um armário de cozinha

sem tristeza mas também sem o leve cacarejar suscitado

pelo azul, pelo roxo, pelo anil ou o índigo

cor que pouco   aliás   emprego em qualquer circunstância

porque para desporto bem basta a garrafada na cabeça

e, dizes bem, afinal

se nada é uma questão de retórica

muito menos é questão de apaixonada sonolência

quando os seres adormecem contentes nos braços um do outro

depois de terem passado a Neptuno e Mercúrio

a rasteira mais que tudo concebível).

 

Olha

disse o lirismo

não temas

tu és a verdadeira bíblia dos homens

porque morreste e reviveste, porque morreste e tornaste a morrer

e a porta onde uma criança pintou letras e corpos

vai-se desfazendo lentamente

não temas

Sabias que sobre uma rocha numa quinta do Frangoneiro

uma raposa pelas noites de Verão certamente se sentava

– assim o indicavam os excrementos depositados num

pequeno côncavo da pedra – e lá por cima (como dizê-lo)

o negrume entre os astros continuava como se nada fosse?

E sabias ainda

que os mergulhões de uma charca saem subitamente da água

e voam alucinados para um bosque de árvores ali de perto

e sob uma romãzeira existe um poço fresco afeiçoado

em cimento para que de lá se possa tirar a água com um côcho

se é assim que se diz, pois por vezes a memória falha-me

e não sei já se este automóvel passou no sonho xis

ou passou na realidade ípsilon

(o piano lá continua a executar qualquer coisa de Bach)

e, meu caro lirismo, tu que tens ossos de milhafre ou pintassilgo

diz-me de novo: não temas

tua é a imagem da mão que apodrece

e o ruído de uns pés por cima da cabeça

diz: não temas

apesar de estares absolutamente só

num certo ponto, sob certa forma

ainda é tua a certeza de que existem reposteiros e lâmpadas

como se fosse por encomenda. Por exemplo: primeiro – o fogo e o ar

interpenetram-se

a escolha inclui esqueletos e colinas

e se não existe amor talvez exista um pouco de piedade

um destino, uma sombra, um pedaço de sombra, um pedaço de destino

e segundo – corre um bocadinho mais depressa

entra-me já em Junho, mesmo que os pólos se atropelem

e não esqueças – de línguas não fales uma só

diz boa tarde em inglês, olá em aramaico

e cresce umas vezes para baixo outras p’ra cima

“a cidade é uma represália à natureza selvagem”

como dizia o Papini uns tempos antes de patear.

 

Não te vendarão os olhos com um lenço de seda

disse o lirismo

não te meterão na mão esquerda uma vara benzida

não terás mil portas para olhar

mil janelas para ornamentar

mil degraus para subir e queimar

mil cadeiras para destruir

mil espelhos mil âncoras mil alfarrábios

para trocar as voltas a quem te leia

a quem minimamente te tivesse querido

te tivesse agarrado pelo espírito ou pelo corpo

– o que é a mesma coisa, deixem que diga

excepto quando se consegue algum adiamento

que afinal nunca chega, porque nisto de paraísos

a chama equivale o alfinete, a couve-flor e o insecto

mesmo com certificado, testemunhas abonatórias

e algum incenso a acompanhar. No tempo dos grandes veleiros

Sírius estava seguramente no mesmo sítio.

As palavras fazem sentido    pense-se o que se pensar

embora nada modifiquem, porque o saber

aquele que permite

que se veja a relação entre a raiz duma cidade marítima

e o tremor de uma macieira

não é um infamante cartapácio rasgado

que altos são os desígnios de Deus (um traque)

e altos os caminhos do Senhor (outro traque)

com o devido respeito, porque café há-o de várias marcas

– lentamente a polpa da mão passeia

e sente o minúsculo relevo da tinta, o azul, o vermelho

depois novamente o vermelho e, por fim, o preto.

O lirismo

de repente adormeceu

pensava então em Esculápio e em Sosóstris

o tal que comprava e negociava tecidos multicolores

ou em Don José Maria de Hinojosa

porque diabo me lembrei deste agora

– sendo certo que uma ou outra página teria

em que falasse da alegria de viver –

pensava nada    o que ele queria era descansar

refastelar-se de todas as maneiras

(o ânimo não ousa erguer-se

ele finge agora que é um gémeo com a boca cheia de sangue)

pois não se pense lá que alguém perdeu isto ou aquilo

ou se perdeu   procurai lá entre as ervas

e dizei-me depois se algo haveis encontrado.

Mas se há brisa ou não há brisa

isso compete ao taumaturgo

agora sentado entre laranjeiras e favais.

(Agora

ele escuta

ruídos difusos, leves, incorpóreos

É gente que executa os ritmos habituais de quem se deita

de quem tira a camisola, lentamente as cuecas

e brandamente coloca sobre o espaldar da cadeira

uma gravata, um cinto, um lenço de pescoço).

Sim

longe está o país

onde o nosso cérebro bate como um coração novo.

 

Não há resíduos sobre a pedra de mármore

da cozinha

ali nunca ninguém estrelará ovos às duas da manhã

com um pouquinho de pimenta que faz os olhos bonitos

ninguém lançará para a lata do lixo com alguma pena

uma que outra garatuja incomensurável

Se doze são as figuras do mundo

vinte e quatro serão os clarões do universo

a despeito das imagens que se agitam na água

 

mesmo sabendo-se que no continente se perdeu

entre as ilhas

a cabacinha branca conservará o seu poder oculto

e olharemos ainda os soalhos de madeira

para aí vermos os passos dos que viveram antes

– lentamente, muito lentamente

do chão se vão apagando os vestígios que os animais

encaram como palpáveis, como se fossem desenhos

impressos nos azulejos à semelhança daqueles

que os romanos pintavam por pirraça

por antiguidade clássica.

 

Contaram-me ou não sei bem se li

que entre as pedras das casas dos Aqueus e Átridas

crescem plantas domésticas, a camomila e a papoula

limite para que tende o divino e o humano

Não temas, não temamos, disse o lirismo a pensar no almoço

é preciso calar, calar muito e a boas horas

mas se acaso for de dizer coisas, que elas saiam

com serenidade e alento

(cheias de gripe, que é como quem diz)

pois que a poesia, para além de ser

um aparelho circulatório, um calhau solitário

e um rio fértil e  majestoso

é também para que conste apesar do métier

a velhice e a adolescência misturadas

uma cócega na orelha, um arrepio na anca

e agora façamos uma pausa

Calados o lirismo e eu olhávamos a rua

alguém que passava com a cabeça palpitando com a ventania

outro que olhava ondeando gravemente úteis composições

uma que se tinha cabelos chapéu é que não tinha

e muitas coisas mais que me dispenso de referir

Sabiam que as montanhas de Théron

no seu ponto mais elevado atingem

quatro mil e quinhentos pés de altitude

e que logo a seguir para além de um largo glaciar

outras se elevam a cerca de sete mil pés? O lirismo

estava evidentemente cansado

ouvira entrementes a história de dois irmãos apaixonados pela

governanta mais idosa que eles

e que no sótão todos três celebravam ritos tenebrosos

a escuridão ficara no jardim e formava como que obeliscos

Estava cansado, tinha andado de barco

tinha ido comprar papossêcos

distraído   tinha mijado para cima das botas

e pensava lá para ele inúmeras situações comovedoras. Passe

o exagero dir-se-ia

que conhecia o nome de todas as coisas vivas

porque tudo, sem resumir, se igualava às vinte e tantas letras

do alfabeto e o amor é tão transparente como opaco

–  usavam um corpete, uma touca branca, um guardanapo sujo

lentamente os olhos iam seguindo os movimentos

sobre tudo descia um silêncio decisivo –

por vezes dentro dele encontram-se vagos objectos ornamentais

vestígios de um dedo cortado, um beijo dado no vácuo

um pedaço de baton

uma meia rasgada.

Mas o lirismo sem se fazer rogado

dizia

o sueste e o nordeste, a silhueta axial

de, por exemplo e sem compromisso, a Lua, um satélite de Júpiter, as

primeiras memórias duma infância

qualquer ela seja

e, como de propósito, as diferentes parcelas

em que se dividem os números e as cores.

Mas não era isto

a nossa hipótese de sobrevivência não se compadece com o real

e o irreal é como que o resíduo de um mínimo que se atirou

fora

– bastaria o amor, encontrado ou procurado

e que afinal sabe bem onde ficam as florestas

mas bastaria um invólucro de bolos

ou uma limonada conscienciosamente feita

bastaria na madrugada um gesto simples de mãos

um soberano movimento de outonos e primaveras

(aqui o lirismo tropeçou no seu próprio manto

a pergunta colara-lhe na testa um papel de cor incerta)

e era estranho e belo aquele tecido

 

– de várias matérias composto:

havia a lã, a boa lã de Norfolk que nos primeiros anos

era muitíssimo popular

(a Mãe tricotava pacientemente

puloveres, carapuços, meias compridas)

havia a seda, que se nos descuidamos cobre os mortos

havia o linho

que faz funcionar os diferentes aparelhos

e o algodão, feminino no singular

e tudo estava unido a ponto cruz

e de repente o lirismo

que agora era uma espécie de porteiro de pensão com cara de médico

percebeu que nada tinha dito que se aproveitasse

e, vai daí

começou devagarinho a despir-se

fazendo ao mesmo tempo uns sinais cabalísticos

para significar, lá no seu entender, que jamais

discutiria a necessidade eventual

de dizer sim ou não

uma vez que se dispusera a referir que a verdade

tanto é curta como comprida

se é natural que um verso seja mais ou menos intenso

conforme o calor e o frio

e as formas do milénio. “Faço os meus cálculos

executo as operações

aqui é a soma, ali a diminuição”

disse baixinho e compassadamente

e de repente caiu para o lado

e dos seus ouvidos saíram algumas sombras

que se espalharam em torno e afeiçoaram uma auréola

uma irisação de orelha a orelha

entre o risonho e o sinistro. E eu

que já não estou totalmente deste lado da vida

mas que estou mais que nunca no que existe e não existe

recordo que em certas grutas

da Andaluzia e da Provença

foram um dia encontrados

vestígios

de estranhos seres

que – dizia-se – teriam amado a corça e o cavalo

Supôs-se até, mesmo devido ao fumo

inexistente nos tectos das cavernas

que pertencessem à raça outrora amaldiçoada

dos deuses

que no frio lunar tocavam lentamente nos lábios

(eram homens e mulheres, cheios

da sua própria existência

que limpavam as unhas

à pelagem dos pequenos animais do bosque

às  últimas horas do dia)

o que me faz perguntar com singeleza: há nessa casa

alguma mesa branca de madeira de pinho

com uma toalha aos quadrados por cobertura

ou uma pedra antiga como a que eu mesmo possuo, pedra vinda

de longe

do Paleolítico

pedra que ainda conserva na superfície áspera

vestígios que poderão ser de lume, ou ser de sangue, assim a luz

seja de um foco eléctrico ou do sol e estejamos

por exemplo perto da porta

ou a norte da vidraça entreaberta e velada

por uma branca cortina de renda?

 

E então

como a tarde começava a chegar ao fim

com o seu tom habitual de algarismo entre milhares

ele tomou-me pelo braço e fomo-nos sentar na esplanada de um Café

e com uma expressão lamentosa e indizível

disse-me serenamente: “Você, meu caro

foge à reflexão. Ora venha cá. Ora prove

e depois cuspa, ou então

finja que não é nada consigo. E diga-me: ele tem ou não tem

só a saudade que é dele

só o corpo que é dele

– que é aliás alugado –

sim, aquele corpo que estende para nós asas libertas

e é alma (mas sê-lo-ão mesmo

em vez de asas não serão lençóis batidos pelo vento?)

no quintal ou na sala de estar

Mas adiante

porque se de tão pequeno começa o espanto a não nos deixar

existir

tudo se complica excessivamente. Mas dizíamos

foi este o mistério que sempre nos cruzou a mente

sem deixar contudo que o seu voo chegasse à altura dos nossos olhos

de tão escuro, tão sem sentido na orla das nossas narinas

perto ou frente a frente com o animal que nos observa

dia após dia, hora após hora

sem desfalecimento e sem, claro que não, remorso

– o solo falhando sob o tapete, o soalho sob

as pantufas –

(esta do remorso dá que pensar: se ao mesmo tempo

o tal anjo começasse a… mas deixemos isso)

tal qual boa terra arável. Só a nossa indisfarçável paciência, só

a extrema e corajosa calma

que nos permite trocar o bê e o jota

as calças, o colete, os suspensórios

as diferentes espécies de açucenas e malmequeres

que nos rodeiam a cintura

é que sustentam o impulso de correr

altas e infinitas, ó figuras   de correr para o vosso regaço

incomensurável e molhado. Talvez

ainda não tivessem sequer pensado

que antes de nós havia luzes nos caminhos   e eucaliptos

com pequeninos flocos sobre os ramos

– só um momentinho   que já bebo – abarcando entrelaçados

movimentos de pulmões. Prefiro uma cerveja. E mande o criado

buscar um outro género de crepúsculo, que este

dá-se mal com o tabaco. Se tivesse morado em qualquer parte

que não as partes em que este mundo acaba

(não consinto que pague!) e tivesse saltado

inventando e desinventando outro género de reinos

gostaria que então me contasse dessas. Possa

como aos que demandaram as terras do Prestes

o destino um dia cravar-lhe nas costelas

um centímetro de areia dos desertos. E agora cantem-lhe

assobiem-lhe às botas

como um passeante que nunca aparece

mais do que a conta. Por aí

penso que não irá lá, mas enfim

– nós somos os herdeiros

não simples espectadores

e muito menos estofadores ou carpinteiros

meros videntes ou construtores esperando

numa escada que não se conhece

dum edifício confusamente olhado

alguém que daí a minutos descerá

com uma mala na mão.

Lá onde o mar bate e se desintegra

admirado com o tamanho da Terra

iremos como sempre, as sobrancelhas acentuando o negrume

que já nos cobre toda a cabeça. Iremos no nosso próprio

girar”.

 

E pronto, acabou-se o contarelo

já de há muito se ouviu o sussurro do cuco

e da poeira nocturna

entrando na órbita dos planetas menores

Os animais, agora, vêem através dos nossos corpos:

olham na direcção do fígado e por detrás divisam

um relógio antigo

olham através duma perna e do outro lado

está uma máquina de lavar

olham através do antebraço esquerdo e distinguem

um casaco de criança no cabide

As nossas figuras cresceram

e são breves e intensas como um astro. Agora

é-me lícito finalmente dizer

– objecto ou escultura o meu coração permanece

discreto e impenetrável

antigo marinheiro, antigo tecelão acocorado num escuro

compartimento

onde pouco antes passou o silvo duma serpente

Ele viaja até aos lugares mais secretos

ele sabe o que está por dentro dos diminutivos

a matemática de espirais e elipses

 

Obscuro viajante ornado apenas com um chapéu e um colar

agita-se devagar como uma abelha maldita

e não toma a realidade por uma pomba cubista

Às vezes visita-me

como um turista afeiçoando um idioma

injuria-me se visto o meu casaco escuro

porque o botão de cima não lhe agrada

 

O meu coração é não só o alfa e o ómega mas a linfa e os humores

o que cresce entre placas ósseas finas como um tronco consagrado

é um desconhecido de quem só sei o nome oculto

– duplo nome caído numa masmorra –

O meu coração

ressona de noite

sabe que a lua é um arbusto adormecido

e que um desmaio nem sempre é

aquilo que parece

entre os signos de Caranguejo e Capricórnio

 

O meu coração

é um vulto embuçado que de repente salta e ri

é um pedaço de carvão de pedra

uma planta de pé atravessando

os minutos

 

uma linguagem morta e primordial.

 

        Atalaião de Portalegre, Novembro de 1987  / 2017

 


Nicolau Saião \ Biobibliografia sucinta


revista triplov

série viridae nr 02

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