Diálogo entre Floriano Martins e Nicolau Saião

 

NICOLAU SAIÃO
Tributo


As disposições de um espírito 
Diálogo entre Floriano Martins e Nicolau Saião

 

[…] mais importantes […] do que para o espírito o encontro de certas disposições de coisas, [são] as disposições de um espírito perante certas coisas. André Breton

 

Nicolau Saião (1946) integra o 2º movimento surrealista português, cuja atuação situa-se nos anos 60 e configura um momento outro dentro de um painel de filiações e assimilações do movimento francês nas décadas anteriores. Trata-se de momento em que, no dizer de António Luís Moita, já se encontrava “digerida e superada […] a bela utopia da escrita automática a que, duas décadas antes, outros poetas haviam metido mãos inovadoras”.Pertence à mesma geração de Luiza Neto Jorge – muito embora comece a publicar somente em meados da década seguinte -, que eram vozes de certa forma  isoladas, em Portugal, no que diz respeito a uma aproximação declarada do Surrealismo. Ele mesmo me diria: “Tens toda a razão! Praticamente isolada – só me lembro, nesta praça, do Carlos Martins e da Ana dos Santos e da adesão do Palácios da Silva, mas eram artistas plásticos.” E em seguida acrescenta, com mais firmeza:

    Isolado – e marginalizado, essa é a verdade nua e crua! Uns porque o surrealismo lhes deixara más recordações (desmascarava-lhes a prosódia); outros porque, até com certa honestidade, não percebiam como era e queriam à viva força que o surrealismo tivesse ficado parado no espaço e no tempo (e como o Dali estava requentado, não queriam comer dessa loja – sem verem que o surrealismo não é questão de escola ou jeito, mas sim uma questão vivencial e que vai evoluindo e modificando-se). Não me convidavam para participar em nada, eu não existia…Lembro-me que houve várias antologias, pretensamente bem feitas e sérias, que nem sequer citavam o meu nome (já não digo arrolarem-me…); sucederam até coisas engraçadas: um bom poeta, que por essa altura me leu (calhou!) escreveu-me e disse: “Afinal, gostei muito! Pensava que… você era um epígono do…”. Eheh! Por isso só consegui publicar os meus poemas porque recebi (foram os filhos que mandaram sem eu saber para a APE…) o Prémio Revelação. Devo dizer, por pura verdade, que o José do Carmo Francisco, antes de eu ser poeta em livro, tudo fez (em revistas e jornais onde colaborava) por me tirar da “maldição” em que me queriam e eu não queria (poeta maldito, safa!). Eu admirava-me por me repudiarem assim; por que será que me afastam? – pensava eu ingenuamente na época. Depois havia os dum certo sector – o partidão! – que tentavam fazer o deserto à volta pelo que se calcula (surrealista era para eles adepto do Trotsky…). Também havia os aderentes à igreja, que pensavam que íamos escaqueirar o Vaticano… Ou seja, eu estava enquanto poeta praticamente só, aqui. E então deu-se o seguinte: não entrei naquela geração, na altura; depois, agora, não entro nesta (por causa da idade). Sou uma espécie de “terra de ninguém” uma não-ilha. Eheh (riso, mas algo dolorido).

Nos anos 60, a ortodoxia surrealista abre passo para uma leitura mais sensível e valiosa da obra de autores como Herberto Helder e António Ramos Rosa. Saião esboça sua particularidade a partir do interesse pelo mistério e o humor negro, duas fontes de intranquilidade ou de subversão da realidade. De tais anotações – Mistério, Imaginação, Fantástico & Aventura – uma lista para este tempo (1974) e Os labirintos do real – sobre a Literatura Policial (1980) são os primeiros livros publicados – surge uma poética inquietante, que mais se aproxima do Surrealismo quanto menos afetada se mostra por sua ortodoxia. Sua relação com uma prática coletiva em torno do movimento o leva a assinar manifestos, montar exposições, criar um Bureau Surrealista Alentejano, na região portuguesa para onde se mudou, porém aos poucos vai se configurando uma aposta no individual, e é justamente a partir daí que sua poesia melhor se define. O olho posto sobre a obra de Nicolau Saião, o convívio com ela, ir tomando seu pulso a cada desdobramento de imagens, sondando como as presenças evocadas saltam do plano poético para a plástica, como ele rabisca imagens que transitam com exímia vertigem de um ponto a outro, esta intimidade de figuras que saem e entram a todo instante em salas aparentemente distintas, exuberância serena com que o poeta se mostra e ao mesmo tempo oculta partes de si, dá-nos uma prazerosa sensação de entrar no espelho como se tratasse de um mergulho na memória. Este é o poema central de sua obra: trazer de volta da transfixão da linguagem o que cada um de nós considera único em sua experiência. Defende a idéia de que o simulacro está ligado aos vestígios fechados, não revelados, da existência. Isto nos leva ao palco, ao tablado agônico das simulações, aos enredos míticos e místicos que se esmeram em conferir realidade à fábula. Lugar sagrado onde o poema, a criação artística como um todo, busca algo mais substancioso do que simplesmente derrotar o intelecto. Mete-se com o “finíssimo vazio”, onde vai explorar suas possibilidades de ser. Absorve todos os engates e desgastes. Não há como fugir da criação. Ela revela de tal maneira seu criador, que logo o desmascaramos em suas declarações à imprensa. Nicolau Saião salta de um quadro para outro da existência, suas observações, devaneios, recordações, fixações, tudo entra na pauta do poema que não se desvincula dos ganhos de linguagem, mas que essencialmente busca dar corpo instável ao objeto de que trata – ou pelo qual se deixa tratar. A vida se excede em seus mecanismos de indagação. A lentidão está sempre da alçada do pressentimento e da projeção. Os inúmeros retratos que encontramos na obra poética de Nicolau Saião indicam sua reflexão aguçada acerca de modelos e sua atualidade. Jamais evoca um personagem do passado apenas movido por um sentimentalismo glorificante. Sua memória é a do desconforto, do choque entre passado e presente. É sarcástico, não desvia o terreno do humor negro, nem busca dissimular a vítima de seus retratos. Uma tática visceral de sua poética radica na credibilidade que impõem os nomes dos personagens convocados. Tática subversiva que elimina qualquer discussão sobre a ocorrência anotada em relação a este ou aquele personagem. Paul Eluard dizia que a poesia cria, se cria, destrói e se destrói. Cabe estabelecer os vínculos indissociáveis entre estes elementos todos. Nicolau Saião diz em um poema que “o mundo é / inteiramente composto / por telefones e santos”. Isto me lembra a brilhante suspeição de Salvador Dali, de que a realidade um dia seria entendida como um estado de depressão, uma ausência configurada como tal. Um personagem em Nicolau Saião simplifica este ponto: “tudo depende de como se vai vivendo”, argumento posto em dúvida ou inaceitável quando a realidade opera sobre o homem. O poema é o lugar da dúvida. Este é o ponto. Toda e qualquer forma de rebelião se chama dúvida. Não é, portanto, a fé a remover montanhas, mas antes seu questionamento. Tais pontos de coordenação diversa representam a realidade móvel, esta que circula “nas ruas que não recusam nada”, somos nós, sim, nós todos, nós somos a diferença. O poeta sabe disto tanto quanto sabe que as sociedades secretas são uma deformação da nossa aceitação de um estado comum de convivência. Nenhuma alma se salva longe da poesia. A substancial teimosia de Nicolau Saião está justamente em afirmar que o homem em si, cada homem, é seu último refúgio de humanidade.


   ***


FM – Eu gostaria de saber por onde começas a criar, se pela expressão lírica ou pela plástica. Conversemos sobre os primórdios da criação em Nicolau Saião e a partir daí vamos construindo o universo de nossa entrevista.

NS – Tanto quanto me lembro sempre tive ritmos, que mais tarde aprendi que se chamavam versos, na minha cabeça. As pessoas mais chegadas e os meus amigos em geral sempre notaram – com alguma inquietação, até, o que me diverte – que disponho duma memória que me atreverei a classificar de muito boa. Por isso recordo perfeitamente que, bem pequeno, já respondia aos acontecimentos do quotidiano da maneira específica que depois se foi configurar em poesia escrita. Creio que a denominada “poesia da infância” vive em todos e perdura – é o elo que mais tarde permite que haja leitores a buscar-nos e a entender-nos – e, nalguns, encarna mais tarde numa escrita deliberadamente construída e desconstruída. Comecei a ler aos cinco anos, porque o meu pai era professor pelo “método de João de Deus”, a célebre “Cartilha Maternal” incrementada durante a Primeira República. Eu ouvia-o ler o jornal e todo eu me danava por não poder fazer o mesmo. Às vezes simulava que o lia…Tanto o atezanei que ele, com a bondade e a paciência que o caracterizavam, me ensinou. E nunca mais parou o meu contacto com as letras e os livros, esses castelos enfeitiçados! Publiquei o meu primeiro poema no canônico Juvenil, do Diário de Lisboa, andava pelos 16/17 anos. Importa dizer que uns dois ou três anos antes, na sala de espera dum médico, eu contatara com o surrealismo ao folhear uma revista brasileira, O Cruzeiro, que dava a lume nesse número um artigo sobre diversos autores. Fiquei encantado, porque vi que as coisas que se agitavam dentro do meu entendimento afinal tinham nome! No que respeita à pintura, começou assim: havia e ainda há perto da casa que habito em Portalegre uma espécie de moradia apalaçada que tinha na frontaria uns painéis de azulejos com flores e motivos vegetais em diversos tons de cor. Aquilo fascinava-me e sempre que ia para a “mestra” virava-me repetidas vezes a contemplá-los. Nas minhas horas desenhava, mas sem muito empenho. Aos dezoito anos, tendo já mais mundo, entrei uma vez numa galeria de pintura e, agradando-me uma obra, perguntei quanto custava. A quantia que me indicaram derrotou-me de imediato. Mas eu desejava ver-me rodeado de beleza e então pensei com os meus botões: “E se eu tentasse fazer quadros?”. Andavam-me frequentemente na cabeça, de mistura com os versos, traços, cores, formas… Comprei uma caixa com canetas de feltro – e meti mãos à obra. Há dias em que é alucinante: uma palavra, uma música, o simples olhar duma coisa fazem-me agarrar no papel ou nos cartões e nos materiais de pintura e gastar todo o santo dia naquela construção/desconstrução. Outras vezes passo semanas sem tocar em nada. A escrita pode aparecer a seguir, ou antes; dum texto se passa para um quadro e daí para dias sem pintar e escrever, inventando, arrolando, transfigurando coisas na cabeça e se calhar no corpo todo: fico sendo um magneto, um motor alquímico, uma panela onde se cozinham os quadros e os versos.

FM – Em teu Os Olhares Perdidos (2001), logo no prefácio João Rui de Souza refere-se a “uma palavra devastada e devastadora na procura contraditória do seu espasmo e da sua luz”, como sendo uma das características essenciais de tua poética. O que buscas através da poesia?

NS – Peguemos no título que referes. Por que este título? Simplesmente por isto: quando um editor me convidou a publicar o anterior livro, Flauta de Pan, disse-me mais ou menos assim: “Veja se não sai um volume muito grande… Arranje aí coisa para cento e tal páginas…”. Os editores, ao que me dizem e eu acredito, têm de ter cuidado com certos aspectos não propriamente poéticos. Então, bom aluno, arranjei cento e quarenta páginas de flauta… Verifiquei de imediato que me havia ficado, do acervo que tinha, uma boa quantidade de poemas. Olhares perdidos… Olhares que não pudera dar à luz das montras (diz um confrade que muito estimo, José do Carmo Francisco, que “os poemas devem ser para a luz das montras e não para o escuro das gavetas”). Depois, com a natural evolução dos dias, o Ventura alertou-me: “Amigo, creio que tem aí material que dá outro livro!” Tinha quase, de fato. Acrescentados de mais poemas que, entretanto, fui fazendo, os ditos olhares antes postos em sossego saíram noutra editora com o título que lhes acertava em cheio. Portanto, creio poder inferir-se que, à partida, através da poesia busco olhar as coisas duma maneira reconvertida, transfigurada. Na poesia há, implícito, um jogo intenso que ao poeta permite renovar-se, dar mais vida a si mesmo ou conservar, intacta, a que tem – antes de tudo o resto. Faço poesia para não morrer. Ou seja, para dar vazão ao núcleo duro de vida plena que em mim sinto e que a sociedade, frequentemente, busca extinguir em nós ou se vai corroendo por ação dessa mesma sociedade informe ou deformada. Também é uma incursão no mistério, nesta coisa estranha que é haver existência e palavras e maneiras de as fazer bailar desta ou daquela maneira e darem com maior ou menor perfeição o cheiro dum momento passado, a cor dum pensamento, o rebrilhar duma emoção antiga, dum temor, duma alegria. Repara que aponto, sem soberba, antes com serenidade feliz, para a sabedoria e não para o conhecimento. Digamos que a poesia é o pedacinho de sabedoria que pudemos granjear ou a que temos direito. Se nisso fazemos concorrência aos deuses, pior para eles. Não têm de que se queixar, é o resíduo divino que em nós mora e que epigrafamos sem maldade…

FM – Mas o que exatamente procuram ser teus escritos?

NS – Interrogo-me se procuram ser alguma coisa… Quando escrevo estou preso ao motivo do que me apareceu na cabeça, como Cézanne ante o seu quadro. O que naquele momento me interessa é a coisa em si: se servir para algo, tanto melhor. Mas isso não me preocupa grandemente. Creio que, como dizia Gherasim Luca, a beleza é uma doença de pele, de sangue, de nervos. Cito de memória. E cito também um poeta que muito me interessa, Cristóvam Pavia, que num poema escreveu: “Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo”. Nas alturas em que escrevo entra tudo, creio: o que aprendi, o que fui sentindo através do tempo, as alegrias e fundas mágoas, o que esqueci, o que desejo. Nos últimos tempos, pois com a passagem da idade adquirem-se novos olhos e novas tristezas, a presença da nostalgia e a fidelidade aos amores mortos têm na minha escrita um peso cada vez maior. Eu costumo dizer, com ironia, que não tenho fantasmas mas tenho muitas nostalgias. E os fantasmas, se acaso se apresentarem, procurarei fazer-lhes frente com as pobres mas implacáveis armas que possuo: as palavras, a sua organização e reorganização, as frases com a sua construção e desconstrução. Nada mais quero, nada mais me preocupa do que viajar por esses continentes encantados e temerosos que são a feitura do poema e a sua introdução no espaço e no tempo. Não sei quanto tempo eles irão durar, mas espero que alguns dos meus versos possam tocar o coração e a mente de algum ou alguma daqui a um considerável lapso de tempo… Por outro lado, já do outro lado do espelho – os poemas feitos, já em estado de papel: que sejam uma proposta de interrogação para aqueles que os lerem e mesmo de confrontação com os mistérios da existência. Sim, amigo, estás a perceber-me bem: a matéria poética como matéria philosófica. Seria preciso acrescentar mais? Talvez isto: que os poetas honrados (e não tenho de honra uma noção burguesa ou cínica) entre si se congreguem para que os que desejam impedir que eles publiquem não levem a sua avante.

FM – Até aqui vens tendo o cuidado de fazer referência emparelhada ao duplo construção/desconstrução. Contudo, é possível distingui-los em tua criação, tanto na plástica quanto na poética?

NS – Creio que sim, já que o perguntas. Pensando bem digamos que, sem ser premeditado, sempre que tentei construir o fiz buscando erguer a partir de novas bases, que assim implicavam a desconstrução do que tinha como material – dado pela tradição, o quotidiano que vivia, os próprios hábitos do milieu literário que tinha em volta. Devo dizer que, mesmo depois de quarenta e tal anos de escrita, continuo fascinado, admirado e seduzido pelas nuances que as palavras possuem, pelas infinitas variações que possibilitam. Nunca tentei fazer diferente pelo simples desejo de originalidade: tal impunha-se-me, digo mesmo que até dum ponto de vista ético, vê lá tu… Uma das coisas que mais me espantava, se pessoas ou críticos pouco argutos me liam e falavam comigo sobre as minhas produções, era o admirarem-se ante um jeito (uma inflexão) para eles pouco usual (digamos assim mansamente…) e que estava fora do tom geralmente empregue por outros operadores menos aventurosos… Depois percebi o porquê: habitualmente usava-se outra fatiota, que também desejavam eu vestisse. Mas ela não me servia e, portanto, tinha de a talhar mais ao meu gosto – tanto mais que se precisava de andar à-vontade para se descobrir outros horizontes. Ir por outros continentes. Então, já com outros aprestos na minha sacola, podia enfim tentar criar outras residências, outros locais de morada (a escrita e a poesia como palácios do nosso afeto).  Mas os dois jogos interpenetram-se, sempre se têm interpenetrado, seja na escrita ou na pintura. Duas grandes aventuras, que dão para preencher diversas vidas…

FM – Publicaste, em 1999, um livro intitulado O crime e a sociedade, pelas edições Bureau Surrealista Alentejano. Eu gostaria que me falasses um pouco a respeito deste livro, de sua atualidade, e também do funcionamento desta célula surrealista no Alentejo.

NS – O livro, um pequeno ensaio completado por recortes apropriados tirados da imprensa portuguesa “de referência”, surgiu porque eu necessitava interiormente de clarificar certos aspectos respeitantes à lei e à justiça – corporizadas, mal ou bem, no sistema judicial – que, a meu aviso, têm a ver com o cerne das sociedades e são o que motiva a atenção que se dá ao leit motiv presente na literatura policial. Que li e sobre a qual me debrucei durante mais de quarenta anos de encanto e perplexidade…Ao ler A. Christie, Ellery Queen, Fred Kassak, Francis Beeding, Sebastien Japrisot, etc. – todos os grandes cultores do “polar”, do romance de enigma (“whodunit”) ao crime story e ao social-thriller (expressão que propus aos apaixonados pelo gênero), apercebi-me de que eram não só entusiasmantes, mas permitiam uma radiografia correta e mesmo exaltante das sociedades, nomeadamente aquela em que vivemos. Esses livros, mesmo os que certa gente tentava dar como “simples entretenimento” et pour cause, estão longe de o ser. Estudando a LP (literatura policial) e lendo os denominados “casos do dia”, meditando em tudo isso – concluí que em certas sociedades (a que chamo “sociedades criminais”) o dito sistema não visa ser como que uma “entidade reguladora”, digamos, mas sim controlar o quotidiano das populações. Ou seja: haver democracia, mas isso não servir de nada ao povo – porque o dito sistema vela para que tudo continue na mesma e o jogo esteja falseado sem que as pessoas possam deitar abaixo os próceres do mando. Em Portugal, onde o sistema judicial está quase totalmente desqualificado dum ponto de vista ético, foi-me fácil fazer a fotografia deste estado de coisas. E digo: um dos pontos – talvez o mais importante – em que as pessoas sérias e que querem que o mundo melhore devem insistir, é na necessidade imperiosa de esse sistema funcionar sem álibis hipócritas. Ou, então, tirar-lhes a máscara – é essa máscara que lhes permite continuar a tripudiar ilegitimamente sobre as pessoas, sobre a sociedade em que estas co-existem. Deve tentar-se a todo o custo que os intervenientes no sistema sejam responsabilizados (democraticamente) pelas “demoras”, pelas imensas caquexias – que são propositadas e mediante as quais estabelecem um clima de intimidação, de medo e de sufocação interior. Com relação ao Bureau Surrealista Alentejano (BSA), no que respeita a esse núcleo de pessoas que existiu aqui no Alentejo, era grosso-modo composto por mim, pelo Carlos Martins, pelo Palácios da Silva (devido a problemas existenciais foi apanhado pela tóxico-dependencia e morreu prematuramente de Sida), pela Ana Santos, pelo A. J. Silverberg, pelo companheirismo do Almeida e Sousa; depois, pelo vigor criativo do João Garção… Emitíamos folhetos (também feitos em conjunto ou assinados pelo Cesariny, o Inácio Matsinhe e um que outro mais, conforme recordo), pequenos livros copiografados (não havia então esta máquina mágica que é a digitalização), fazíamos exposições de colagens e pintura aqui e acolá…). A edição before the fact de Arquitectura do silencio, por exemplo, que depois valeu ao Ventura o Prémio Revelação da APE, compu-la eu dactilografada, fiz o prefácio e a capa (Ed. Folhas do Rosto) para dar a amigos… Um circuito personalizado, mas que deixou resíduos. O BSA era uma espécie de irmão-colaço do Bureau Surrealista de Lisboa, que o Cesariny tinha na capital e através do qual dava a lume coisas muito giras. Tenho dele muitas cartas e bilhetes, no sótão da “Casa da muralha”, em Arronches, que um dia sairão à luz do dia assim eu tenha saúde e sorte…

FM – Já participaste de inúmeras exposições de mail art. No Brasil a mail art acabou limitando-se a um ludismo da forma sem maiores conseqüências estéticas. É muito raro encontrarmos entre nós um artista como o Hélio Rola, cuja interferência a partir da mail art sempre se deu de uma maneira crítica e não de mero seguimento de modismos. Meteram-se com a mail art mais os poetas afeitos a um construtivismo inócuo do que propriamente os artistas plásticos que eventualmente poderiam ver ali uma possibilidade de fusão de duas linguagens, a plástica e a poética. Como se deu tua aventura em tal território e até que ponto se pode vislumbrar algum contributo estético a ser destacado em Portugal em tal área?

NS – A mail art é, por definição à letra, a arte que se pode enviar pelo correio. Mas se encararmos o seu espírito chegaremos a definições e conceitos mais apropriados: arte que modestamente aproveita as virtualidades de se poder enviar algo de especificamente artístico ou poeticamente plástico num simples envelope, numa pequena encomenda. À partida, as encomendas dos que são civilmente despossuídos ou não muito abonados, que não dispõem de galerias para as suas trocas artísticas, para as suas mundividências de alma de seres do lado dos que sofrem a História e não dos que a fazem. Em suma: dos que procuram utilizar os meios que os outros, mais fornecidos de dinheiro ou poder, desprezam ou não aproveitam.  O envio interior, a troca, processa-se em geral a partir de materiais pobres, usando de maneira muito própria as possibilidades postas à disposição do artista e a partir daí é a imaginação que comanda o jogo: utilização de cartões habilmente modificados, fotografias rasgadas e recompostas com outra estrutura, invólucros poeticamente deturpados e transfigurados, bocados de revistas e jornais forçados doravante a proporcionar outro “espetáculo”, desenhos, guaches ou aquarelas dissimulando-se nos intervalos da vida plástico-quotidiana, etc.  Nos últimos tempos assiste-se, no entanto, a umas burlazitas: o que alguns enviam são pequenos quadros sem especificidade. Chega-se mesmo a isto: certas escolas dão aos alunos possibilidade de enviarem para exposições produções suas, à guisa de trabalho curricular – com horripilantes resultados, adulterando a verdade, a realidade e a liberdade da mail art. No meu caso, comecei por enviar coisas a amigos, sem mesmo pensar que era uma atividade que podia desaguar em exposições. Depois, com o Almeida e Sousa, o Carlos Martins e o João Garção, entrei no chamado circuito. Procuramos sempre ser autênticos na nossa participação, o que pode comprovar-se vendo os catálogos que transportam as coisas remetidas por nós. Devo salientar que muitos organizadores ao levarem a efeito mostras de mail art visam sim alambazar-se com pequenos museus mais que serem um motivo para as trocas, sempre excitantes e por vezes surpreendentes, da arte postal.

FM – Fala-me agora da tua aproximação de Mário Cesariny e Carlos Martins, da maneira como acabou resultando na organização da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”. Claro que ambos conceitos estavam ligados e numa percepção dentro da ótica surrealista. Mas o que a eles acrescentavam então poetas e artistas portugueses?

NS – A exposição surgiu da maneira mais espontânea e informal que possa pensar-se. Mas já lá vamos… Conheci o Carlos na chamada vida militar, em Leiria – numa noite com certas peripécias surreais. Ficamos amigos quase de imediato e verificamos que navegávamos na escuna surrealista e libertária. Estivemos depois em comissão de serviço “por imposição”, como oficialmente dizia na guia-de-marcha, na Guiné. Escrevíamos, principalmente e, quando podíamos, pintávamos – eu pratiquei mesmo cerâmica e tentei aprender, em boas condições, tapeçaria com os nativos. Quando viemos para casa, contatámos com os membros do “Grupo do Grifo”, da revista do mesmo nome que saíra por essa altura e a PIDE logo apreendera: Virgílio Martinho, Ernesto Sampaio, António José Forte, Pedro Oom, António B. da Fonseca, Ricarte-Dácio. Também apareciam no Café Monte Carlo, local da tertúlia, o Herberto Helder, o Luís Pacheco, o Miguel Erlich, a Luiza Neto Jorge, a actriz Eunice Muñoz, o declamador Mário Viegas… Só em 1976 conheci o Cesariny: eu estava ao pé da Estação do Rossio quando ouvi ao lado uma voz a pedir à ardina um jornal que tivesse notícias boas… Era o Mário. Dirigi-me a ele, apresentei-me: ficamos até às quatro da manhã a conversar no seu atelier. E passamos a contatar regularmente e a levar a efeito atividades em conjunto. A exposição surgiu por acaso: tanto o Mário como o Carlos partilhavam comigo o deslumbramento pelas coisas do Lovecraft, do Georges du Maurier, do “Monk Lewis”, do Bulgakov, dos antigos e modernos cultores do humor negro, do  maravilhoso e do fantástico e falávamos muito a seu propósito. Como nessa altura o Carlos e a Ana estavam no Teatro de Xabregas, ela como atriz e ele como encarregado do sector cultural, pensamos em artilhar a mostra. Eu conhecia o Miranda Calha, que estava secretário de Estado do Desporto e ele falou com o Coimbra Martins, ministro da Cultura de então. Ultrapassadas algumas dificuldades que nessa época ocorriam – o Cesariny por seu turno falara com a secretária do Mário Soares -, articulou-se a exposição com o apoio do movimento Phases e de autores ingleses, brasileiros, belgas, angolanos, moçambicanos, holandeses, etc. Conseguimos também, por intervenção do Mário Soares junto de certas embaixadas, a participação de alguns autores do leste… Os portugueses (Mário Botas, Paula Rego, Eurico, Armanda Andrade, António Quadros, Relógio, Garizo do Carmo, Areal, Júlio Reis Pereira, Escada, Isabel Meyrelles, entre muitos mais) quando vivos eram contatados por conhecimento próprio de uns e de outros ou disponibilizavam-se ao saber da coisa. Se falecidos, falava-se com os herdeiros.  A minha contribuição de maior vulto – além de traduzir textos e publicar poemas no catálogo-livro e expor dois quadros – foi descobrir um surrealista ínsito, meu companheiro de adolescência: de sua profissão carpinteiro, meio-surdo e com dificuldades na fala, mas muito atento e inteligente, o Manuel Mourato nos dias em que tivera de ficar em repouso por haver partido uma perna pintara um enorme quadro com as tintas da profissão: O bosque encantado, título de minha lavra e que foi uma das revelações da Mostra. Mal recebida pela crítica au pair (estava-se em plena época da reação pura e dura aos que não aceitassem os ditames culturais dum certo setor) a mostra foi depois levada para a Sociedade Nacional de Belas Artes pela mão competente e esclarecida do crítico democrata Rui Mário Gonçalves.

FM – Este teu deslumbramento por Lovecraft o levou à tradução de seus poemas. O que exatamente esta afinidade acrescentou à tua poesia? Penso até que ponto nos teus retratos não se verifica a mesma simulação, o mesmo efeito das “surpreendentes fabulações engendradas” que percebes na poética do autor de Fungi from Yuggoth.

NS – Penso que tens razão, é uma observação perspicaz! O primeiro livro que dele li foi O caso de Charles Dexter Ward, editado pela Livros do Brasil em Janeiro de 1956 sob o título de “Os mortos podem voltar”. Eu apanhei-o dois anos depois, tinha uns doze e nessa altura já recebia semanada – o que me permitiu economizar para o adquirir… O que desde logo me fascinou em Lovecraft – depois pude corroborar esta idéia – é que o fantástico que encena se inscreve num realismo apurado. Lovecraft é um grande escritor realista. Descrições dele da Nova Inglaterra são do mais apropriado que se traçou: porque o realismo dele não é estrito, não é charro – é transfigurador, sente-se nele um frémito de vida, uma intensa palpitação de coisas e de pessoas. Daí o interesse que os surrealistas americanos (e franceses que depois o leram) tiveram por ele, o que só mais tarde vim a saber por ter lido um exemplar (oferecido em fotocópia pelo Cesariny) de “Cultural Correspondence” dado à estampa por Franklin Rosemont como editor convidado para esse número, “Surrealism & its Popular Accomplices”. O que Lovecraft me deu – e já agora quero confidenciar que me encantou imenso ter sido o tradutor da edição integral e fiável do seu “Fungi” (trabalhei a partir dum dactiloscrito de HPL, fotocopiado e enviado ao Carlos Martins por intercessão de Jean-Pierre Andrevon segundo informação dele, pelo grupo de Providence – foi a sensação de que não estava só na caminhada empreendida. A adolescência é um lugar mágico, e se temos a sorte de a ter pacífica e aberta à criatividade, como foi o meu caso, a viagem fica escancarada a todos os ventos e rotas: Lovecraft foi um admirável companheiro, um tio afável e possuidor de um universo onde eram possíveis o sonho e os raciocínios menos convencionais.

FM – Na tradução de “Fungi from Yuggoth”, optas pela estrutura do soneto inglês, enquanto que originariamente Lovecraft modula seus sonetos em dois blocos únicos, com 8 e 6 versos. Por que esta interferência tua na concepção formal do autor?

NS – Porque a certa altura, quando o estava a ler aturadamente antes de começar a traduzir, me apercebi de que não poderia/deveria seguir a estrutura que ele seguia. Diferenças de língua e de cadências… Há um poema, por exemplo – trata-se do undécimo, “O Poço” – que ficava desfigurado se eu tentasse rimar como ele rimou. Então, notei que resultava se a terminação fosse sempre em “ar”: ficava com um tom de balada – das baladas que ele bem conhecia.   E com aquele final de duas linhas os poemas afivelavam o tom dos contos de mistério, que em geral terminam por uma revelação súbita e desconcertante… que concerta tudo para nosso gáudio.

FM – De que maneira te sentes integrado ao surrealismo em Portugal? Explica-me tua participação efetiva no movimento e as afinidades eletivas.

NS – Começarei por dizer que “surrealismo em Portugal” é uma espécie de ave rara que diversos caçadores tentam abater, uns por umas razões e outros por outras. Se ser surrealista é sentir o primado da imaginação e da transfiguração que a liberdade livre proporciona, do sentido que o humor negro, o amor e a lealdade aos poderes do espírito nos concede, sou surrealista e tenho como meu albergue a terra inteira. Ser surrealista em Portugal é, entretanto, um negócio arriscado, no mínimo, constantemente sujeito a deturpações, difamações, fingimentos e desprezos subreptícios. Nesta nação nunca houve uma verdadeira democracia – o que há agora é uma partidocracia num país belíssimo, paisagem que o povo vai ornamentando (e com frequência o melhor surrealismo sai do povo espontaneamente, feito com arte ingénua e perfurante inocência), mas dominado por gente que se apôia nos meios de comunicação, no caciquismo e nos maus hábitos seculares. Nestas circunstâncias, o espaço de manobra do surrealismo é pequeno.. É impensável, por exemplo, que a entrevista que V. me está a fazer me fosse feita por qualquer órgão de referência nacional. A imprensa portuguesa vive dominada por uma espécie de paranóia guerreira que existe entre os diversos quadrantes políticos, sendo porta-voz das trocas e baldrocas em que estes vivem mergulhados. Também se alimenta intensamente da saga futebolística e dos talk-shows televisivos, criando um espaço letal para a poesia e de entre ela para a poética surrealista. Quando necessidades de maquiagem cultural a isso aconselham recordam-se de novo, pela milésima vez, os tempos já idos dos surrealistas Cesariny, Seixas e um ou outro mais (António Maria Lisboa e o também já falecido Mário Henrique Leiria, quando muito) faz-se uma excursão por esses anos (cerca de 50 atrás…) e aproveita-se para dar a entender que, afinal, o surrealismo que foi giro nessa época está extinto, kaputt, passemos agora a coisas sérias e importantes – as literatices que rendem. Por isso o que há, falando em grupos, é grupos de um – como o Cesariny me dizia há anos com ironia – ou de dois ou três no máximo, reunidos quase por acaso, ajudados por companheiros de jornada. De vez em quando tem-se a possibilidade de fazer uma exposição, publicar um livro… A minha participação no… movimento (?) caracterizou-se por um lado pela feitura de poemas e pela efetivação de mostras, os primeiros publicados em jornais e revistas que respeitavam a sua qualidade sem repararem muito na sua condição surreal e as segundas levadas a cabo pelas entidades que, sendo um pouco de letras grossas, não viam bem a epidemia que lhes levávamos…  Quanto aos meus livros, faço questão em salientar que foram dados a lume com dificuldade. E saíram porque subsidiados pela autarquia da minha cidade – onde gozo/gozava de respeito pela minha condição de democrata que ajudou a fazer o “25 de Abril”. Por outro lado, nos tempos mais chegados com o João Garção, tenho levado a efeito palestras e conferências aproveitando as abertas que se podem e sempre escorado no prestígio pessoal enquanto poeta e militante democrata. Escrevendo nos jornais que me dão eventual guarida, indo à rádio de tempos a tempos, metendo aqui e ali a palpitação surrealista… Nunca tive, todavia, qualquer dificuldade em mostrar-me em Espanha e em colaborar com entidades culturais espanholas, devido à maior abertura que existe do outro lado da fronteira.

FM – Fala-me um pouco mais destes outros nomes referidos por ti e ligados ao Surrealismo em Portugal. Muitos desses autores vêm tendo suas obras reeditadas, o que permite uma reaproximação. Quais nomes, no entanto, foram deixados para trás e que consideras importante recobrar?

NS – Certos nomes de autores chegavam até mim através de referências dispersas, como, por exemplo, Manuel de Castro ou José Sebag. Este último ainda tive ensejo de o ouvir frequentemente na Antena 2 da rádio pois era ali, até falecer, locutor ou realizador, não sei bem se mais isto que aquilo. Tanto um como outro são de considerar, acho que fará sentido serem reeditados. “Paralelo W” ou “Estrela Rutilante” são livros de levar em conta no não tão vasto como isso campo dos surrealistas que conseguiram epigrafar-se. Também devia, a meu ver, fazer-se uma recolha – em estilo livro-catálogo, digamos – das pinturas e cerâmicas de Carlos Martins, Ana dos Santos, Lud…  Cito ainda Pedro Oom, do qual não saiu nenhum livro enquanto vivo. Faz sentido que seja de igual modo conhecido, ou conhecido mais intensamente, entre vós. Um outro autor que me vem à memória: Ricarte-Dácio, com estórias e crónicas entre o real e o imaginário, com um tom muito peculiar de grande senhor criando mansões misteriosas.

FM – Já me disseste que estou certo ao observar que és uma voz praticamente isolada, em tua geração, no que diz respeito a uma defesa do Surrealismo. Decerto que esta posição reflectia também certa marginalização, não?

NS – Eu diria uma clara marginalização, à qual fui sempre submetido por responsáveis de órgãos de comunicação “de referência”. Isto se deve, tanto quanto percebo, ao seguinte: 1. Clara incultura e incapacidade de ler os que não sejam vedetas evidentes ou por aí; 2. Necessidade de irem em frente com sua razão muito própria: as estantes da literatura e da escrita serem o que eles determinam; assim sendo, este não pode cá entrar (como é que explicariam então o rosto do acervo que sem cessar montam ou desmontam para efeitos de comércio mental ou mesmo social?); 3. Intolerância/repúdio pelos que não fazem parte da equipa (política, social, de confraria, etc.) e eu não faço de fato parte: não andei com eles na Faculdade, não alinho no/s seu/s partido/s, sempre fui dotado de uma certa vitalidade de maneiras… (Em Portugal a vida das literaturas também é muito física… E eu, como fui pugilista e esgrimista, tive sempre a segurança suficiente para dizer na cara de certos fulanos o que de fato pensava deles sem temer levar uma sova…). Contra mim falo: não tenho nem nunca tive, digamos, feitio para beijar a mão a putas e putos literatos… ou gente “atravessada” – e isso é mortal entre nós, apesar de ser um indivíduo pacífico que quase nunca utilizou os músculos distribuídos por oitenta e tal quilos…

FM – Ao lado da poesia tens uma produção teatral, de que são exemplos “As estrelas sobre a casa’ (em elaboração), “O desejo dança na poeira do tempo” e “Passagem de nível”. Já me dirás se algumas dessas peças foram montadas. O que mais me interessa saber aqui é como identificas o corpo – sua percepção espacial, a ressonância do convívio com outros corpos etc. – em um plano de ação. Há uma distinção entre o corpo evocado no poema e em sua representação teatral?

NS – Respondendo em sequência: nunca foram encenadas. Pouco depois de sair “Passagem de nível”, um belga que estava nessa altura numa vila para os lados de Évora a escrever um livro, como a achou sugestiva e original propôs-me traduzi-la e levá-la à consideração de um teatro de Bruxelas – se o setor cultural da edilidade portalegrense lhe pagasse o tempo de trabalho, pois não era/estava muito abonado… Escusado será dizer que na altura a gerência cdesse setor não se dispôs a abrir os cordões à bolsa para esportular esses míseros 500 euros… Também um indivíduo de um grupo de teatro, de que aliás nunca esperei muito, analisou a obrinha – parece que era gira… -, mas o fato de ter um padre (padre Joaquim Gráfico) pouco ortodoxo entre os personagens, diminuiu-lhes o apetite: os próceres locais podiam levar a mal…

Quanto à questão do corpo, vejo a coisa assim: nos poemas, mais ou menos marcadamente, aparecem pessoas, mas a estrutura do poema dá-lhes uma existência específica, só sugerida e como que suspensa sobre os acontecimentos, a progressão de verso para verso. Então, escreve-se uma peça – para que haja pessoas que executam os actos do quotidiano: comer, dormir, passear daqui para ali, tomarem banho, dizerem ao que vêm e o que desejam…

Nas peças que citei mistura-se o que as personagens dizem e o que o autor diz por elas e o que elas dizem por ele: frases que sugerem algo que se passou sem estar absolutamente descriptado, que o leitor (ou o potencial espectador) deve destrinçar para entrar na posse do conhecimento completo das peripécias. Por isso, julgo, é que João Garção, em “Algumas palavras” que dedicou à peça citada, refere que as personagens “ora assumem um ar circunspecto, ora se lançam em tiradas decididamente talhadas no material do humor negro e do onirismo fingidamente quotidiano”. Essa troca, esse percurso incessante entre real e trans-real (se me permitem o neologismo) interessa-me prodigiosamente e espero vir futuramente a concretizá-lo noutras obras.

FM – Diz o estadunidense Allan Graubard, também poeta e dramaturgo, o que segue: “No teatro, o ator projeta palavras, transformando o corpo num palco que soa. O ator incorpora a linguagem ao revivê-la dentro da peça. O poeta joga com a linguagem sem recorrer a um ‘jogo’. Não há nenhum personagem exceto nas palavras que o poeta escreve, e na ressonância a que elas dão vida.” Estás de acordo?

NS – Creio que estou. Sim, sim, é muito arguta a observação que ele faz e a forma como o faz. Também pensei nesse duplo sentido da expressão inglesa: jogo e representação. Onde começa e acaba o jogo, onde se representa e onde nos representamos? Devo dizer que para mim o teatro – a sala de teatro, assim como o circo, que adoro – é o lugar por excelência do encanto e do segredo, o território do maravilhamento, do mistério, das perguntas nucleares que se nos colocam enquanto seres que por cá vivem durante os anos que nos é dado viver. Gosto muito de cinema, mas é na sala de teatro que volto de novo à infância e de repente tenho centenas de anos e, parece-me, fico entendendo algumas coisas. Talvez por isso não vou muito ao teatro, por receio de levar com “alfacinhismos” nas narinas – quando apanho um fraco “banquete” fico infeliz por muito tempo. Mas quando o que me foi proporcionado é efetivamente bom, é um deslumbramento que me suscita a vontade de fazer logo coisas a seguir…

FM – No que diz respeito ao “temperamento” da imprensa em Portugal, isto tem sido a tônica dos organismos de comunicação em todo o mundo, não constituindo uma particularidade portuguesa. O que intriga é a maneira como esta forma violenta tornou-se natural com a conivência da própria casta intelectual que a deveria combater. Meter-se com a mídia hoje é coisa para excluídos que ainda sonham em ser incluídos. Já não se questiona a deformação moral do que seja. Não se trata de ideologia ou estética e sim de um naufrágio existencial.

NS – Gostaria de contar uma pequena estória que eu apelidaria, com humor negro, de “proveito e exemplo” como se diz por cá: no filme do Oliver Stone sobre o assassinato do Kennedy o procurador que está a investigar a conspiração, ao encontrar-se com o operacional reformado que pertencera aos mais altos círculos da “secreta” e lhe dá informações, começa a falar-lhe na filosofia do mal dos previsíveis assassinos e em outras coisas transcendentes que tais. Ele, com um sorriso, diz-lhe então: “Deixe-se de filosofias e de ‘poesia’ e siga a pista da massinha…”. A minha posição perante o que deixas transparecer na tua observação é exatamente a mesma. A meu ver não se trata de um naufrágio existencial e sim de algo que tem a ver com a charra e crassa falta de ética e do desejo de estar à manjedoura do poder. Há uma parte da intelectualidade que questiona a deformação moral que muito bem referes. Mas são defenestrados, marginalizados e mesmo perseguidos quando é necessário. Creio que os movimentos sociais de ponta – nos quais os surrealistas a mais de um título militam – devem forçá-los a definir-se – e não se julgue que é um esforço ingénuo ou desinteressante, este. Pela minha parte não estou nada intrigado com os fastos que os lacaios de sempre se auto-ofertam: os oportunistas sempre jogaram pelo seguro e têm artes de estar sempre do lado onde há sol… Creio que a pouco e pouco a figura está a reconfigurar-se: também os de Leste se pensavam eternos e veja-se a implosão que os deitou todos abaixo. Nisto, sou optimista.

Também os que pensam que a bambochata sequente durará encontrarão o seu Waterloo mais depressa do que julgam. Hoje já nem os próprios gurus da economia de mercado se atrevem a arvorar um sorriso sobranceiro, eles sabem bem quanto as suas aparelhagens aparentemente de precisão são falíveis. As próprias religiões reveladas, que são outra das partes (baixas) da questão, sentem um frio mortal à sua volta. Mesmo os chefes do Islão, de acordo com dados a que se tem acesso, no fundo estão muito pouco tranquilos – e por isso tentam uma fuga para a frente mediante o fundamentalismo mais agreste e o terrorismo como razão intrínseca duma linha que já se perdeu na História e está prestes a perder a própria História. Aos surrealistas caberá então uma tarefa definitiva: colocar sempre e cada vez mais em evidência as margens do amor sublime, da transfiguração imaginativa para além do simplesmente literário ou societário. Como diziam e viviam os mestres alquimistas, a questão que se põe é mais artística (ou seja, de paixão e de um realismo que sabe espiritualizar a matéria e materializar o espírito) que técnica ou filosófica (no sentido estrito). O próprio exagero das forças dominantes – entre as quais os médias se contam – em rebaixar a ética, nos diz que eles percebem que existe certo estrebuchar imparável. Não tenho da vida um sentido catastrofista e, por isso, sinto certa calma que me permite viver sem a angústia que é natural muitos terem colada aos ossos e à alma.

FM – Qual a situação hoje do Surrealismo em Portugal? Bem sabemos da importância do trabalho que vem realizando um crítico como o Perfecto Cuadrado. Contudo, não te parece que se está dando ao Surrealismo uma conotação essencialmente historicista, minando-lhe a actualidade?

NS – Confesso, sem nenhuma malícia, que não conheço muito o trabalho a que te referes. E isso será já significativo em si. Num país normal eu não poderia deixar de ter bom conhecimento disso. Mas se calhar sou como o personagem do livro do Richard Wright sobre o racismo, um homem invisível. E como eu há mais… É claro que isto sucede porque, precisamente, o Perfecto Cuadrado estará dando ao surrealismo isso que referes. Ou então foi alguém que, interessado, inteligente, agilmente manobrador, lhe deu a volta, como se diz que o Napoleão fez a um encarniçado opositor. Mas isto são conjecturas. Não conheço esse estudioso, não sei se é uma alma cândida ou uma pessoa que, interessada e ardente, terá eventualmente do surrealismo português a visão que o imperador Guilherme tinha da Alemanha: uma dama pronta para todas as aventuras… Sério calculo eu que deva ser. Seja como for, o historicismo interessa a muita gente – desde logo os pequenos aristocratas da fantasia aplicada que são ótimos para lançar uma cortina de nevoeiro sobre os tempos e os modos.  Só posso, a este propósito e de boa catadura, dizer que houve uma ensaísta que em tempos escreveu um tomo sobre o surrealismo que, lido por mim e pelo Carlos Martins – que, aliás, lhe mandou uma carta, eu dispensei-me de tal maçada -, nos fez rir primeiro a bandeiras despregadas. Aquilo que lá dizia que nós tínhamos feito era, com o devido respeito, uma traquinice pegada, não foi nada daquilo. Depois, pelo menos eu – que tenho um temperamento dramático, quase trágico – gelou-se-me o riso nos lábios.

FM – Olha, o Perfecto é um espanhol que vem cuidando de recuperar a memória do Surrealismo em Portugal. Está à frente do Centro de Estudos Surrealistas, da Fundação Cupertino de Miranda, e vem publicando alguns livros, tanto pela Ed. Assírio & Alvim como pela Quasi Edições. Tem sido também o responsável por algumas importantes exposições de artistas portugueses ligados ao Surrealismo. A rigor, tem cuidado melhor do Surrealismo em Portugal do que qualquer português.

NS – Fico ciente. Então ainda bem. Ou ainda mal – passe a ironia – isso diz bem da estrutura lusitana do “panorama” envolvente. Espero sinceramente que esse organismo da dita fundação não seja uma estrutura para liofilizar o surrealismo, mas sim com pundonor e caballerosidad (com heterodoxos e competentes cojones, para seguir o requisito de Pavese) destrinçar as coisas que importam ao mundo e à realidade sem antolhos e sem academismos decentezinhos e compenetrados.

FM – Até 2005, quando então te aposentaste, foste o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, em Portalegre. De que maneira isto permitia alguma aproximação entre literatura em Portugal e demais países de língua portuguesa? O que se conhece da poesia brasileira em Portugal?

NS – Régio era um poeta que, apesar do que certos sectores ainda pretendem, prezava os encontros além de ser dotado de um espírito curioso e interessado. Tinha muito razoáveis contactos no Brasil. A talhe de foice: Ribeiro Couto (que ele recebeu em Portalegre numa noite memorável de que há registros), Cecília Meireles, Dante Milano, Manuel Bandeira, Herberto Sales, José Paulo Moreira da Fonseca, Mauro Mota, Domingos Carvalho da Silva… Trocavam os livros, exprimiam-se mutuamente apreço e admiração – e como se diz passavam palavra, procediam a cooptações. Logo que cheguei ao Centro – e já lá vão 13 anos – comecei imediatamente a ler tudo o que ele tinha em acervo, não só por brio profissional e necessidade decorrente da minha função, mas por gosto e vontade. Aliás, há lá livros que se calhar já só se encontram nas bibliotecas nacionais… Em certos casos foi um deslumbramento. Autores de que só tinha ouvido falar, nalguns casos e, noutros, lera de raspão na, à altura, mal fornecida Biblioteca da cidade, estavam à minha disposição! É claro que depois passei as minhas leituras, entre outros elementos que lhes fornecia, aos visitantes. Não é para me gabar, mas muitas pessoas em Portugal passaram a ler autores brasileiros com renovado interesse depois da minha “evangelização”… E não só visitantes, mas confrades e amigos. E, muitas vezes, quando ia ou vou à Rádio, frequentemente leio poemas dos teus compatriotas. Porque tenho prazer nisso, porque eles merecem – mas também porque acredito que é importante difundir a literatura brasileira. E tenho sido “recompensado”: tempos atrás, por exemplo, foime solicitado por uma senhora de Almada que lhe enviasse fotocópias de poemas de Moreira da Fonseca e de uma escola do Baixo Alentejo fui solicitado a proferir uma palestra sobre Régio e os escritores brasileiros, o que fiz, tendo depois escrito um pequenino ensaio. Não me parece que se conheça muito da vossa poesia cá no país. Em geral fala-se em Bandeira, Murillo Mendes, Jorge Amado, Lêdo Ivo, outros como Rubem Fonseca – mas é nas correntes intelectuais que o conhecimento pode ser mais fundo. Estou a lembrar-me que um poeta de categoria, C. Ronald, eu mesmo só relativamente há pouco tempo o li. E deve haver dezenas de autores de mérito que desconheço, o que diz de imediato que se num leitor tenaz e intemerato como eu isso é assim… como não será noutros um pouco mais distantes da leitura!

FM – Houve um momento em que se entendia em perfeita sintonia o poeta e o revolucionário. Nos anos 40 o Benjamin Péret chegou a dizer que “o poeta actual não tem outro recurso que ser revolucionário ou não ser poeta, pois deve lançar-se sem cessar ao desconhecido”. Depois houve certo apaziguamento dessa ideia de lançar-se ao desconhecido, restringindo-se mais ao âmbito da linguagem e não propriamente de entrega total, a analogia entre vida e obra. Também o termo revolucionário caiu em um desgaste sem fim. Pensando em Péret, qual recurso tem à sua disposição ou imposição o poeta atual?

NS – O que sempre teve: a linguagem e a escrita que ela propicia, se a soubermos merecer. E deste termo, merecer, já decorre que o poeta verdadeiro é sempre um revolucionário: revoluciona os conceitos, as estruturas de comunicação. Revoluciona o real quotidiano e o imaginário das comunidades, inclusivamente. O que acontece é que em determinado período se começou a chamar revolucionário não ao revolucionário mesmo, mas ao tipo que seguia os ditames dum certo partido, duma agremiação de chefes e de apparatchikis que estavam longe de ser novos e propugnadores do novo: eram velhos e relhos, cínicos e até hipócritas. Ao serviço da propaganda elaborava-se versalhada que depois os alto-falantes se encarregavam de promover como o que interessava, estabelecendo o equívoco e fazendo o deserto à volta. Levantando processos de intenção aos que queriam ver bem e ver livremente… (Do outro lado estavam os boas-bocas do hábito e da conversa frascária pseudo-metafísica ou, numa versão muito actual e portuguesinha, os do “regresso ao real” que não passa frequentemente de álibi para semi-fazedores com pouco gás).

Pela minha parte – e fico bem satisfeito com tal fato, tive sorte e felicito-me por isso – senti sempre a ligação entre a renovação da linguagem e da escrita e o apelo do magnífico desconhecido. Creio que pude conservar a disponibilidade para, como dizia o mesmo Péret, “navegar sem norte e sem estrela/através das tempestades/ rumo aos areais refulgentes de ágatas/ onde brilham os olhares provocantes das opalas”. Estou a citar de memória, mas se há diferenças nos versos creio que são talvez mínimas…


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série viridae nr 02

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