Cunha de Leiradella e os seus vírus

CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo


1 Revista Triplov – Série Viridae


Porque quatro saídas por ano da Revista Triplov são insuficientes para corresponder aos desejos dos nossos autores, reformulei-a, de maneira a poder sair quando necessário.  Dou à série o nome de Viridae, nome da família a que pertencem os vírus, numa das tabelas classificatórias, atendendo a este grande drama conjunto, talvez o primeiro facto do género de que toda a Terra tem consciência: a sindemia causada pelo SARS-CoV-2.

Tirando a máscara por instantes, recordemos a teoria de William S. Burroughs, segundo a qual a palavra é um vírus . Não o reconhecemos como tal, porque, atingido o seu último estádio de evolução, fundiu-se perfeitamente com o hospedeiro. Mais adianta o escritor americano, conectado com a beat generation, que a palavra escrita é um vírus que tornou possível a fala -interessante, pois reza a ortodoxia que a fala precede a escrita. Ora tal vírus veio from the outer space,  é alienígena. Laurie Anderson, com quem ele colaborou, assim sucedendo aliás com outros grandes da música da época, a exemplo dos Doors e de Lou Reed, compôs a música do álbum justamente intitulado Language is a virus (Outer space), de que incluo o link, para em seguida passarmos ao escritor luso-brasileiro Cunha de Leiradella, que não deixa de manter com Burroughs alguma relação.

 

 

2 Tributo a Cunha de Leiradella

Cunha de Leiradella é um velho amigo, daqueles raros que saltam dos espaços virtuais para os físicos, e estou a vê-lo, numa pequenina casa em Britiande, com Sônia van Dijck, sentados à minha mesa, a saborearem os meus cozinhados, para o caso uma caldeirada de borrego. Presentes também Maria Adelaide Abreu Lima, e José Pereira de Oliveira, com quem a relação literária teria prolongamentos. Há-de ter sido logo no retorno do escritor à sua terra natal, Póvoa do Lanhoso, após uma vida inteira ou quase no Brasil, escapado decerto às torturas de um regime político intolerável, em Portugal.

Deste rústico encontro resultou a continuidade da colaboração de Cunha de Leiradella com o Triplov, e minha numa obra coletiva sobre ele, organizada por Sônia Maria van Dijck Lima e José Pereira de Oliveira, Cunha de Leiradella – Um autor sob duas bandeiras (Editora da Universidade Federal da Paraíba; e São Paulo, Navegar Editora, 2013).

Cunha de Leiradella não é indiferente ao que se está a passar no Brasil. Hoje, dia 18 de junho de 2021, o número de vítimas da Covid-19 atingiu o meio milhão, e continuará a progredir, devido não tanto ao SARS-CoV-2, antes ao Vírus-Mor do país, Jair Messias Bolsonaro. O que Bolsonaro diz mata. Quando ele rejeita a máscara, rejeita a sindemia, alegando que é só uma gripezinha, ele está a falar, a usar palavras, palavras que contrariam o programa universal de saúde que está a ser seguido em quase todo o mundo.

Sim, a linguagem pode ser encarada como virose na sua capacidade de propagação, nem sempre mortal, e nem sempre maligna. Na cultura, a virose da linguagem é fator de desenvolvimento e de evolução.

Em Cunha de Leiradella, a virose, ou alguns traços preponderantes da personalidade da obra,  exprime-se pela omnipresença de uma personagem, Eduardo da Cunha Júnior, que, com as coadjuvantes, se reparte em centenas de outras num salão de espelhos, dando origem a uma coleção de tipos sociais, em geral representativos de pessoas sob o stress da vida citadina.

Considerado partícipe do teatro do absurdo, Cunha de Leiradella apresenta uma obra vultuosa, celebrada e devidamente premiada, com abundante divulgação, na qual o teatro e o roteiro cinematográfico ocupam posição relevante. Que saiba, das teclas todas do piano, Cunha de Leiradella só não parece ter-se interessado pela poesia, se bem que, de quando em vez, surjam versos na narrativa.

Situações absurdas, sim, como tantas na nossa vida, porém há um outro aspeto na obra deste autor luso-brasileiro que chama iguamente a atenção, o minimalismo. Nem retóricas, nem descrições, nem caracterização de personagens. A bem dizer, só o esqueleto da situação narrativa e a virose do que dizem as personagens. É caso para se ler o que Cunha de Leiradella seleccionou para este número inaugural da reestruturada Revista Triplov: contos, um roteiro, um romance, tudo incisivo, direto e sem derivas retóricas.

É com muita satisfação que incluímos Cunha de Leiradella no número de autores que merecem o nosso tributo na Revista Triplov.

Maria Estela Guedes

 


revista triplov

INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA

Portugal / junho 2021