MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO
este é um tempo de terror
este é um tempo de terror
um tempo de máscaras
um tempo de príncipes sem coroa
os navios partiram
nunca mais regressaram
hoje
ao som de guerras
os homens
alimentam-se do deserto
de que valeram
todas estas gerações angélicas
para a construção da alma?
vivemos sem dúvida
um tempo de horror
um tempo de máscaras
um tempo de bolor
A Terra,
um lugar desformatado,
feio
esférico,
sem pessoas,
nem jardins para o Amor
isto de ser poeta
hoje em dia um poeta
vale menos do que um cão
isto de deixar fugir os versos
pela internet dentro
causa-me uma grande aflição
e se amanhã eles não estiverem lá
que posso eu fazer
é muito perigoso escrever livros
hoje em dia hoje
vêm os vírus e apagam tudo
afectam as paredes do pc
não fica mesmo nada
é como se fosse tudo cego
o écran esconde as letras todas
ai senhor doutor ai senhor
doutor tenho uma dor de versos
tenho muito medo
preciso que me valha
sofro com isto tudo
é como se o meu sangue
fugisse todo pelo écran dentro
acordar de manhã ir ao sítio certo
e não ver lá nada
isto de ser poeta é uma grande aflição
ai senhor doutor ai senhor
doutor se calhar o melhor é ficar quieta
não escrever nada ficar muito quieta
ficar tudo na cabeça
não usar shampoo
porque os versos podem apagar-se
fugir todos do écran
ai senhor doutor o remédio é ficar quieta
escrever coisas sem importância
pode alguém espreitar e apagar tudo
que é pior do que roubar alguém
pois não fica nada
e amanhã senhor doutor os poetas
escreverão poemas
só com uma simples troca de olhares
e os versos voltarão a ver-se
ai senhor doutor ai senhor doutor
isto de ser poeta
Maria Azenha, Nossa Senhora de Burka.
Edição Alma Azul, 2002
Repórter
Nunca encarei a Poesia como uma epístola aos pobres.
Nem como um espelho de paz.
Nem como um passatempo literário
para entreter académicos.
Vejo-a como um trabalho moderno de Hércules
através de um específico repórter local que se chama Poeta.
Ele não faz outra coisa senão
deixar bilhetes ao acaso
numa gare qualquer com o aviso “Perigo de morte!”.
*
Maria vai fazer oitenta anos e vive em tempo real.
No último aniversário foi engolida por um bolo.
As velas foram guardadas para memória futura.
Está nas mãos da bela adormecida e do pai natal
que é o bombista de Estocolmo, cidadão sueco.
− é o que faz fazer anos sem razão alguma.
Como se uma abelha pousasse no coração
e a picasse com números –
A cadeira de Maria ficou sentada no lugar do
[WikilLeaks.
Quem publica este poema é o açucareiro.
Maria nada tem a ver com o ministro dos negócios
[estrangeiros,
quer acreditem ou não.
*
Amanhã envio-te um poema.
Hoje, não.
Amanhã,
sem que o percebas,
recebê-lo-ás na caixa de correio.
As rãs vão no selo.
In: Maria Azenha, As mãos no fogo.
Escrituras Editora, 2017, São Paulo, Brasil
alta-costura
um poeta não precisa de versos.
com duas colheres e um lápis
abre o poema a meio
mete lá dentro o alegre
o napoleão e a santa teresinha
um alfinete e uma pomba também fazem falta
para suplentes a florista edite
que vende rosas com música
na igreja de Santa Isabel ao Rato
julgava eu que um poeta
precisava de números nos livros
mas não é verdade. um poeta
passa o dia inteiro com uma faca.
se for bipolar ainda melhor
uns dias corta a preto e branco
outros joga xadrez com o infinito.
com a pá do lixo junta os papelotes
dos restos de poemas escabrosos
num quadrado
em braille escreve ao saramago.
mete o teorema de Gödel lá dentro
mas o que me preocupa é o meu colar de pérolas
que não tem correspondência
com as antinomias de bertrand russel
é por isso que hoje somos o que somos
e o que sobretudo não somos
fora isso,
as crianças e os pomares
trazem já cabeças de navegadores!
qualquer dia
levantei-me cedo como é meu hábito.
abri as janelas de par em par e dei comigo a cogitar:
“o céu está um pouco nublado. talvez lá para a tarde
o sol traga uma melhor iluminação à casa. “
entretanto continuarei a pintar os armários da cozinha
até à hora de almoço.
– odeio que a morte me apanhe de surpresa
sem algum efeito luminoso.-
eram já duas horas da tarde. fechei a porta e saí.
o rapaz que costuma arrumar os carros nas traseiras da casa
pediu-me um café como é seu uso.
depois demos dois dedos de conversa até que nos despedimos.
hoje tinha-lhe morrido um bebé de seis meses.
ficámos ali especados a olhar um para o outro.
qualquer dia vamos jogar no euro-milhões
e tomar um café a dois
na aldeia de george orwell
as casas acordam manhã cedo
pontuando o início dos trabalhos.
ouvem-se ao lado os passos de uma criança
dando as últimas pancadas no sobrado.
nas paredes
um coração de oráculos
bate desordenadamente as horas.
a cada sinal emitido pela rádio
as marcas de novo século
com as recentes novidades biológicas.
as nuvens não carecem de torneiras abertas
e o céu desaba nos seus últimos farrapos.
Maria Azenha, Num sapato de Dante
Escrituras Editora,2012, São Paulo, Brasil
(Semifinalista ao Prémio Portugal Telecom de Literatura)