JOSÉ ROBERTO BAPTISTA
Artigo originalmente publicado na revista Educação, Espiritualidade e Cotidiano, revisto e ampliado pelo autor.
Podemos ter nossa opinião, sustentá-la, discuti-la; mas o meio de nos esclarecermos não é nos estraçalhando, procedimento sempre pouco digno de homens sérios e que se torna ignóbil se o interesse pessoal está em jogo.
Allan Kardec in Revista Espírita, mar., 1858
Abordar-se questões referentes à Parapsicologia, tenho insistido, não é tarefa simples. Há uma longa tradição de discussões, muitas delas estéreis, sobre a natureza dos fenômenos parapsicológicos. A maioria ganhou status espiritualista, cujos postulantes defendem um princípio independente – e inteligente – que transcende a morte física: o espírito.
Defenderemos neste artigo, respeitando as bases estabelecidas na epígrafe, que há, desde o início das primeiras pesquisas psíquicas, um conflito de ideias, dificilmente superável, entre Parapsicologia e Espiritismo. O fato: a Parapsicologia nada tem a ver com religião ou crenças. A Parapsicologia não tem como ponto de partida, em suas pesquisas, a influência de personalidades incorpóreas e inteligentes. Tais afirmações embora tragicômicas, não são incomuns.
Encontramos, ao acaso, na Internet, sob o título Fenômenos Mediúnicos, Metapsíquicos e Parapsicológicos, artigo assinado por Marta Antunes Moura, coordenadora das Comissões Regionais na área da Mediunidade da Federação Espírita Brasileira (FEB) e Vice-Presidente da FEB (1):
Os fenômenos psíquicos (do grego psyché: alma, espírito) são estudados pelo Espiritismo, pela Metapsíquica e pela Parapsicologia, tendo em comum as ações do agente ou Espírito, ser humano sensível e inteligente (sic), autor das manifestações.” […]
A Metapsíquica ou Metapsiquismo indica, segundo interpretação da Psicologia, “um corpo de doutrinas, sem base no método científico, que se funda na aceitação da realidade dos espíritos (2) (sic), fenômenos espiritistas, criptestesia, etc.
O que dizer? Creio, nada. Lamentar é o suficiente.
Apesar do explícito equívoco das fronteiras entre uma abordagem parapsicológica e uma abordagem espírita, sobre a mesma e única fenomenologia, vemos ainda uma separação entre Metapsíquica e Parapsicologia como sendo duas áreas distintas, nada evocando o essencial: o método de investigação. Diga-se, mesmo assim, merecedor de algumas ponderações.
Neste ponto, talvez seja esclarecedor dizer que termos designativos como Pesquisas Psíquicas, Metapsíquica e Parapsicologia e também Pesquisas Psi ou do Psi, como querem alguns estudiosos, indicam, cada um a seu tempo, o estudo de uma fenomenologia hoje conhecida como paranormal (3). Não diferem, portanto, em essência, e podem ser considerados como sinônimos.
A esse respeito diz Rhine:
O termo Parapsicologia, foi adotado do vocábulo alemão Parapsychologie, o mais empregado dos termos europeus que identificam o setor. Significa o mesmo que a expressão inglesa, mais antiga, psychical research e do que a francesa metapsychique. (RHINE, 1966, p. 10)
Ainda a título de esclarecimento, talvez seja importante uma breve regressão.
O termo Pesquisas Psíquicas, foi o primeiro que os estudiosos usaram para indicar a investigação de fenômenos incomuns que vinham exigindo uma explicação mais racional. Com efeito, em 1882, em Londres, foi fundada a primeira sociedade voltada ao estudo sistemático desses fenômenos: a Society for Psychical Research – (SPR), seguida de sua coirmã a American Society for Psychical Research – (ASPR).
Em 1889, Max Dessoir introduziu, pela primeira vez, o termo Parapsicologia, para definir os estudos que o professor Emile Boirac denominara de psicologia estranha ou desconhecida, referindo-se a uma série de fenômenos da área psíquica, que fugiam ao conjunto dos estudos psicológicos. O termo, contudo, não teve boa ressonância.
Em 1905, já no começo do século XX, Charles Robert Richet, primeiro tratadista sobre a matéria, propõe o termo Metapsíquica, com grande aceitação pelos estudiosos de toda parte, excluindo-se os dos países anglo-saxões, que continuaram a usar Pesquisas Psíquicas, segundo Inardi (1977, p.17), por razões de ordem sentimental.
O termo Parapsicologia, hoje o mais popularizado (o que não significa o mais adequado), voltará à cena pelas mãos de Joseph Banks Rhine, por ocasião de seus trabalhos, no laboratório de Psicologia da Duke University, em Durham, Carolina do Norte.
Contudo, a consagração do termo Parapsicologia deveu-se à orientação dada pelo Congresso Internacional de Parapsicologia, realizado em Utrecht, no ano de 1953, que deu preferência ao termo, em substituição ao nome de Metapsíquica. A esse respeito vale a pena relembrarmos as palavras de René Sudre:
Já que o Congresso de Utrecht o sugeriu, adotemos a maneira alemã e substituamos o nome de ‘Parapsicologia’ ao nome de Metapsíquica proposto há meio século por Charles Richet. Isto não nos impedirá, em respeito a esse grande e intrépido pesquisador, de empregar indiferentemente a palavra que designou, na França, tantos trabalhos sólidos e que foi muito bem forjada. O prefixo meta tinha má reputação; no dizer de alguns, evocava um pouco demasiadamente as especulações temerárias da metafísica. Contudo, em grego, meta tem dois sentidos principais, que não são tão comprometedores: o de ‘transformação’, como em ‘metamorfose’, pela qual Aristóteles designava a sequência de suas histórias naturais e “junto de”. [Contudo], Para que dizer ‘junto de’, o que suprime toda precedência e, ao mesmo tempo, toda anterioridade. Mas que importam essas chicanas de etimologia? O uso faz tudo. E nós não somos responsáveis pelo mau uso que fizeram da palavra de Richet tantas pessoas ignorantes ou malevolentes. Sua garantia é suficiente. (SUDRE, 1966, p. 15, g.n.)
Assim, esclarecida a questão, voltemos à proposta deste artigo.
No caso abordado, como já apontamos, vemos um flagrante desconhecimento, até mesmo em relação à “evolução” da terminologia empregada para exame dos fenômenos que, como dissemos, vinham exigindo uma explicação mais racional.
Queremos separar, contudo, desconhecimento de tendenciosidade.
Quando Oscar González-Quevedo defende que a Parapsicologia deve estudar os milagres (para comprová-los) e, sem maiores razões, diz que os milagres só se dão em ambiente religioso católico, é criticado severamente. Antecipo-me dizendo que, apesar do respeito que tenho por González-Quevedo, meu antigo, e destacado professor, no Centro Latino Americano de Parapsicologia – CLAP, concordo com tais críticas; todavia, com algumas reservas.
Mas, passa despercebido (ou não, pelos espíritas) que afirmação semelhante, embora “do outro lado da fronteira” faz o não menos respeitado Hernâni Guimarães Andrade, em seu Parapsicologia Experimental, quando afirma que
Não será exagero acrescentar que o futuro da Parapsicologia é tão promissor quanto o da Eletrônica e da Física Atômica, pois os problemas que ela enfoca relacionam-se com possibilidades verdadeiramente fascinantes.
É provável que, através da Parapsicologia, possamos dar uma resposta à velha e angustiante indagação da humanidade acerca da sobrevivência ‘post-mortem’. (ANDRADE, 1976, p. 20-21, g.n.)
Ora, dizia minha mãe: “pau que bate em Chico bate em Francisco”.
Também diz González-Quevedo, sem maiores detalhes, que
estudando o homem, que se acreditava ser somente matéria, a Parapsicologia se encontrou com o espírito, que não intencionava estudar, inclusive com a metodologia ‘materialista’, à base da estatística matemática, encontrou e demonstrou (sic) as manifestações do espírito […] O método estatístico é característico da chamada escola norte-americana ou espiritualista. (GONZÁLEZ-QUEVEDO, 2000, p. 24)
Ora, dizer-se que a Parapsicologia “se encontrou com o espírito, que não intencionava estudar” e, em seguida, apontar para a escola norte-americana asseverando que ela, utilizando-se de uma metodologia materialista, “encontrou” e “demonstrou” as manifestações do espírito, parece-nos uma afirmação perigosa e tão tendenciosa quanto às afirmações que, fulano ou sicrano, no seu momento final, antes do último suspiro, converteu-se ao Cristianismo. Não duvido que um ou outro caso possa ter existido. Mas, devemos considerar também que muitos cristãos quando se aproximavam do fim, também tornaram-se descrentes, por não terem suas preces respondidas.
Muitos espíritas e também não espíritas, mas certamente espiritualistas, não podem ver a palavra espírito sem ligá-la às entidades incorpóreas que habitam espaços pouco conhecidos (ou muito conhecidos) por nós. Contudo, a palavra espírito não está restrita, em grande parte da literatura especializada, ao flagrante reducionismo que a submete, sempre, a realidades religiosas. Pode referir-se também à mente, intelecto, pensamento e não só a alma e espírito, como admitidos nas crenças e doutrinas religiosas. Devemos tomar alguns cuidados ao usar tais termos. Vejamos o que Rhine, líder da escola norte-americana diz, especificamente, sobre os espíritos dos mortos, em relação aos estudos parapsicológicos:
Como em todos os sistemas religiosos de crença, há certas doutrinas no espiritualismo que se baseiam na presunção de certas capacidades, que não têm sido verificadas por método científico em Parapsicologia. […] Certos termos mais comumente associados ao espiritualismo têm chegado a espalhar-se largamente no uso popular; por exemplo, os termos médium e mediunidade. Falando estritamente, o termo médium implica uma teoria da sobrevivência do espírito e da comunicação de personalidades desencarnadas com as vivas por intermédio de pessoas conhecidas como médiuns. Esta é uma doutrina de fé espiritualista e não um fato estabelecido cientificamente em Parapsicologia. (RHINE; PRATT, 1966, p. 12-13)
Aqui, Rhine refere-se claramente aos espíritos dos mortos, negando sua participação nos experimentos controlados em Parapsicologia. Contudo, adiante, veremos que Rhine usa o mesmo termo referindo-se à mente. Devemos separar o joio do trigo. A palavra, em si, não pode vir coroada, sempre, de uma indesejável sobrenaturalidade.
Essa tendenciosidade, que denuncio há algum tempo, é responsável pelos inúmeros equívocos em relação à Parapsicologia. Dispensável dizer que não estamos desconsiderando o fato de os fenômenos estudados pela Parapsicologia terem implicações diretas com crenças, além de sistemas religiosos predominantes.
Exemplo claro dessa tendenciosidade, não menos flagrante, encontramos na leitura de Vida depois da vida, de Raymond Moody Jr. (1975), livro que popularizou o interesse pelas Experiências de Quase-Morte (EQM), em inglês Near-Death Experiences (NDE). O livro foi apontado (e continua nos dias atuais) como uma investigação que atesta, de maneira irrefutável, que “algo” em nós sobrevive à morte física. Os excessos dessa interpretação foi objeto de um artigo que escrevi para esta mesma revista (4) e que tomarei por base para os próximos comentários. Vejamos:
Logo na contracapa do citado livro lemos:
Em Vida depois da Vida, Raymond Moody Jr. investiga mais de cem casos de pessoas que tiveram experiências de quase-morte e analisa os testemunhos daqueles que voltaram do ‘Outro Lado’. Publicado pela primeira vez em 1975, este clássico de referência provocou uma mudança radical da perspectiva (tanto de profissionais de saúde como do público em geral) sobre a morte, e fez de Raymond Moody Jr. uma autoridade mundial no campo das experiências de quase-morte. Os relatos extraordinários que aqui são apresentados, acompanhados da análise rigorosa e acessível de Raymond Moody Jr., constituem uma prova irrefutável da vida após a morte física e permitem ao leitor comum ter um relance da paz e do amor incondicional que nos esperam do ‘Outro Lado” (sic). (MOODY JR., 2008, CC, g.n.)
Além das dispensáveis palavras de ordem, assemelhadas a um romantismo piegas, como relance de paz, amor incondicional, ainda nos deparamos com uma infidelidade ao texto, acima do bem e do mal.
Vale a pena reproduzir parte da Introdução feita por Moody Jr., no livro:
Escrito por um ser humano, este livro, naturalmente, reflecte a vivência, as opiniões e os preconceitos do seu autor. Deste modo, ainda que tenha tentado ser o mais objectivo e directo possível, alguns factos sobre a minha pessoa podem ser úteis para a avaliação de certas declarações extraordinárias, feitas no decorrer da obra.
Antes de mais, nunca me encontrei perto da morte e, por isso, não vou oferecer um relato na primeira pessoa de experiências pelas quais não passei. Ao mesmo tempo, não posso falar com total objectividade destas experiências, pelo facto de as minhas emoções terem estado envolvidas no processo. Ao escutar os relatos fascinantes de tantas pessoas, relatos incluídos neste livro, comecei quase a sentir como se eu próprio os tivesse vivenciado. Espero apenas que esta atitude não tenha comprometido a racionalidade e o equilíbrio da minha abordagem.
Em segundo lugar, devo dizer que não estou muito familiarizado com a vasta literatura dos fenômenos paranormais e ocultos. Não digo isso por menosprezar o assunto e, com certeza, um maior conhecimento do assunto teria ampliado a minha compreensão dos eventos que estudei. De facto, agora tenciono estudar mais de perto alguns desses livros, para ver até que ponto as investigações dos outros são confirmadas pelas minhas descobertas. (MOODY JR., 2008, p. 21, g.n.)
Ora, é esse tipo de procedimento que julgo inaceitável. Essa desprezível tendência, consciente ou não, de colocar palavras na boca do autor, com o flagrante objetivo de defender crenças particulares. O autor não diz, absolutamente nada, sobre tais certezas ou provas irrefutáveis. Contrariamente a isso, Moody Jr. diz, em seguida: “Deixem-me dizer logo de início que, tal como explicarei mais tarde, não estou a tentar provar que existe vida depois da morte. Nem acredito que seja possível dar uma ‘prova’ disso.” (MOODY JR., 2007, p. 22, g.n.)
Dispensável dizer, novamente, que esse livro continua sendo citado como “prova irrefutável da sobrevivência” por uma infinidade de espíritas e também por não espíritas, mas simpatizantes.
Tentar defender a sobrevivência com base no trabalho de Moody Jr., parece-me uma desnecessária e reprovável caricatura que em nada contribui para o avanço do conhecimento, além, claro, de ser uma abordagem desqualificadora do texto.
Mas, a coisa não para por aí. Mais um passo e lemos no prefácio, escrito pelo médico americano Melvin Morse: “Quando morremos, as nossas vidas são avaliadas e interpretadas tendo por base não o dinheiro que ganhámos ou o estatuto e prestígio que conquistamos, mas tendo por base o amor que partilhamos com os outros ao longo da vida.”
– Ora o que dizer de tão sublime, encantadora e – ridícula – afirmação? Convenhamos. Até para a insanidade deve existir um limite. Em nenhuma das experiências relatadas por Moody Jr., podemos apreender que “do outro lado” (qual exatamente é esse “outro lado”?) não seremos avaliados com base no dinheiro que ganhamos ou o estatuto e prestígio que conquistamos. Parece-nos algo fora de questão. Pelo menos para pessoas ditas normais. Desnecessário, injustificável e, mais que isso, um tributo à infidelidade na leitura do texto.
Que não levamos dinheiro para o caixão, ou para ou “outro lado”, todos sabemos, mesmo sem saber de fato se existe o “outro lado”. Revelações religiosas não são verdades científicas. Por quem nos toma o Dr. Melvin Morse? Por retardados mentais?
Ora, Moody Jr., salvo erro grosseiro de leitura de minha parte, trata sua pesquisa com uma disposição infinitamente mais digna. Deixemos claro que a alegação shakespeariana de que há mais mistério entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã filosofia, não é um passaporte seguro para afirmações com base na fé.
O que se constata é que esse tipo de intencionalidade injustificada e injustificável não é incomum.
Numa leitura quase descompromissada do Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, publicado pelo site autores espíritas clássicos (5), que reconheço como uma grande e meritória prestação de serviço, vemos as seguintes afirmações, numa apresentação, sem autoria, da Metapsíquica:
Metapsíquica – (do gr. meta – além + psikê – alma + suf.).
A Metapsíquica foi à precursora da Parapsicologia.
Ciência estabelecida e estruturada por Charles Richet, destinada a estudar os fenômenos que transcendiam à Psicologia e que fugiam ao domínio físico da ciência dita materialista.
A Ciência Oficial não admitiu de pronto as verdades reveladas pelos espíritos. [Hoje já admite?] Formaram-se inúmeras associações, sociedades e comissões com o ideal de desmascará-las, porém, quanto mais se estudava, mais aumentava o número de adeptos. [que acreditavam na ação dos espíritos]
Muitos homens de ciência se convenceram a respeito da autenticidade dos fenômenos, [espíritas] entre eles o fisiologista francês Charles Richet. Em conjunto com o Dr. Geley e o professor Friedrich Myers, Richet fundou o Instituto Metapsíquico Internacional em Paris, sendo designado como presidente da entidade (6).
Fica claro que o texto afirma que Charles Richet, assim como outros homens de ciência, convenceram-se da ação dos desencarnados. Contudo, ao acessarmos a obra, nos deparamos, como uma espécie de abertura, com uma mensagem ditada pelo espírito de Humberto de Campos e psicografada por Francisco Cândido Xavier, no dia 21 de janeiro de 1936, em Pedro Leopoldo, referente decisão, por parte de Deus, sobre a “passagem” de Richet, onde se lê:
Nos meados do século findo [séc. XX] partiram daqui diversos servidores da Ciência que prometeram trabalhar em meu nome, no orbe terráqueo levantando a moral dos homens e suavizando-lhes as lutas. Alguns já regressaram, enobrecidos nas ações dignificadoras, desse mundo longínquo. Outros, porém, desviaram-se dos seus deveres e outros ainda lá permanecem no turbilhão das dúvidas e das descrenças, laborando no estudo.
Lembraste daquele que era aqui um inquieto investigador, com suas análises incessantes, e que se comprometeu a servir os ideais da Imortalidade, adquirindo a fé que sempre lhe faltou?
Senhor, aludis a Charles Richet, reencarnado em Paris, em 1850, e que escolheu uma notabilidade da medicina para lhe servir de pai.
– Justamente. Pelas notícias dos meus emissários, apesar da sua sinceridade e da sua nobreza, Richet não conseguiu adquirir os elementos de religiosidade que fora buscar em favor do seu próximo. Tens conhecimento dos favores que o Céu lhe tem adjudicado no transcurso da sua existência?
– Tenho Senhor. Todos os vossos mensageiros lhe cercaram a inteligência e a honestidade com o halo da vossa sabedoria. Desde os primórdios das suas lutas na Terra, os gênios da imensidade o rodeiam com o sopro divino de Tuas inspirações. Dessa assistência constante lhe nasceram os poderes intelectuais, tão cedo revelados no mundo. […]
– E em matéria de espiritualidade – replicou austeramente o Senhor – que lhe deram os meus emissários e de que forma retribuiu o seu espírito a essas dádivas?
– Nesse particular – exclamou solícito o Anjo – muito lhe foi dado. Quando deixastes cair mais imensamente a Vossa luz sobre os mistérios que lhe envolviam, ele foi dos primeiros a receber os raios fulgurantes. Em Carqueiranne, em Milão e na Ilha Roubaud, muitas claridades o bafejaram junto de Eusápia Paladino, quando o seu gênio se entregava a observações positivas; com os seus colegas Lodge, Myer e Sidwick. De outras vezes, com Delanne, analisou as célebres experiências de Alger, que revolucionaram os ambientes intelectuais e materialistas da França, que então representava o cérebro da civilização ocidental.
Todos os portadores das Vossas graças levaram as sementes da Verdade à sua poderosa organização psíquica, apelando para o seu coração, a fim de que ele afirmasse as realidades da sobrevivência; povoaram-lhe as noites de severas meditações, com as imagens maravilhosas das Vossas verdades, porém apenas conseguiram que ele escrevesse o ‘Tratado de Metapsíquica’, um estudo proveitoso a favor da concórdia humana e [recebeu também] o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1913.
Os mestres espirituais não desanimaram nem descansaram nunca em torno da sua individualidade; mas apesar de todos os esforços despendidos, Richet viu, nas expressões fenomenológicas de que foi atento observador, apenas a exteriorização das possibilidades de um sexto sentido nos organismos humanos. Ele que fora o primeiro organizador de um dicionário de fisiologia, não se resignou a ir além das demonstrações histológicas. Dentro da espiritualidade, todos os seus trabalhos de investigador se caracterizam pela dúvida que lhe martiriza a personalidade. Nunca pôde, Senhor, encarar as verdades imortalistas, senão como hipóteses, mas o seu coração é generoso e sincero. Os vossos mensageiros conseguiram inspirar-lhe um trabalho profundo, que apareceu no planeta como “A Grande Esperança” e, nestes últimos dias, a sua formosa inteligência realizou para o mundo uma mensagem entusiástica em prol dos estudos espiritualistas.
Pois bem – exclamou o Senhor – Richet terá de voltar agora a penates. Traze de novo aqui a sua individualidade para as necessárias interpelações.
– Senhor, assim tão depressa? – retomou o Anjo a causa do grande cientista. – O mundo vê em Richet um dos seus gênios mais poderosos, guardando nele a esperança. Não conviria protelar a sua permanência na Terra, a fim de que ele vos servisse, servindo à Humanidade?
– Não – disse o Senhor tristemente. – Se, após oitenta e cinco anos de existência sobre a face da Terra, não pôde reconhecer, com a sua ciência, a certeza da imortalidade, é desnecessária a continuação de sua estada nesse mundo. Como recompensa aos seus esforços honestos em benefício dos seus irmãos em humanidade, quero dar-lhe agora, com o poder do meu amor, a centelha divina da crença, que a ciência planetária jamais lhe concedeu [Nem poderia. Ciência e Fé habitam fronteiras distintas.] nos labores ingratos e frios. (g.n.)
Ora, até o último momento, se acreditarmos na Carta psicografada por Chico Xavier, Richet manteve a mesma postura. Não consigo entender a insistência de alguns em dizer que Richet “mudou de lado” no final de sua vida.
Não – disse o Senhor tristemente. Se, após oitenta e cinco anos de existência sobre a face da Terra, [Richet] não pôde reconhecer, com a sua ciência, a certeza da imortalidade, é desnecessária a continuação de sua estada nesse mundo.
Mas, qual a dificuldade quanto à interpretação?
Diga-se, e esta posição venho também repetindo há muito, que nenhum estudioso sério pode, sem mais, apenas pelos seus “belos olhos”, negar a existência de seres incorpóreos, sejam anjos, demônios ou espíritos dos mortos. Contudo, entendo que, no caso de Richet, está valendo o que ele próprio disse na abertura de seu Tratado:
Não verão os seus propósitos realizados aqueles que neste livro esperarem encontrar considerações nebulosas acerca dos destinos do homem, da magia e da teosofia. Tudo fiz por escrever um livro de ciência e não de devaneios. Contento-me, pois, com a exposição dos fatos e com a discussão de sua realidade, não sem pretender colimar uma teoria, se bem que com prejuízo de outras, porque aquelas que, até o presente momento, foram propostas em metapsíquica, me parece serem de uma fragilidade desconsoladora. (RICHET, s.d. Antelóquio, g.n.)
Outras questões ainda poderiam ser apontadas neste artigo. Por exemplo, às que envolvem Espiritismo e o Magnetismo Animal, dentre outras. Contudo, pouco acrescentariam ao já exposto. Devem, portanto, ficar para uma nova oportunidade.
Insisto em dizer, todavia, que tais extrapolações em nada contribuem para a busca da verdade. Não podemos, e não devemos, afirmar verdades ainda desconhecidas por outros. Os
Espíritas podem citar a Bíblia, o cristianismo, os livros de Kardec, Dellane, Chico Xavier, afirmar que se trata de ciência, filosofia e religião, com uma ênfase diferenciada de acordo com o informante. Inexiste um algoritmo hermenêutico que permita compreender e fixar a tradução da ciência em religião e vice-versa para os espíritas, mas uma multiplicidade concreta de pontos de vista que se ancoram na crença, na existência de um cânone ou conjunto de obras e sábios espíritos de luz autorizados a orientar a interpretação da vida cotidiana. (LEWGOY, 2006, p. 155)
As certezas, com base em incertezas, são sempre questionáveis.
Diante disso, tentemos compreender o porquê de asseverarmos, no início, haver um conflito que imputamos como insuperável entre a Parapsicologia, no seu reto entendimento, e o Espiritismo.
Para Charles Richet, a Metapsíquica, hoje, Parapsicologia, limitava-se a estudar três grupos de fenômenos.
1. A criptestesia (a lucidez dos autores antigos), ou seja, a faculdade de conhecimento diferente das faculdades sensoriais normais de conhecimento.
2. A telecinesia, ou seja, uma ação mecânica diferente das forças mecânicas conhecidas, a qual, em determinadas condições; tem, a distância, atuação sem contato sobre objetos ou pessoas.
3. A ectoplasmia (a materialização dos autores antigos), ou seja, formação de objetos diversos, os quais, as mais das vezes, parece saírem do corpo humano e tomam a aparência de uma realidade material (vestuário, véus, corpos vivos)
– Aí está toda a Metapsíquica. Quer-me parecer que ir até lá é já ir muito longe. Ir mais adiante – não o pertence ainda à ciência [da Metapsíquica]. (RICHET, s.d. Antelóquio)
Para Joseph Banks Rhine, o fundador da moderna Parapsicologia acadêmica, não vemos diferenças que possam invalidar as propostas elaboradas por Richet.
Rhine vai falar em dois grupos de fenômenos classificados como: 1. fenômenos de natureza subjetiva, tratados no grupo da PES – Percepção Extrassensorial e 2. os fenômenos objetivos, de efeitos físicos observáveis, ou seja, uma “operação mental direta sobre um corpo material ou sistema de energia física. […] psicocinese ou PC (em inglês: PK), isto é, o mesmo que o conceito familiar de espírito sobre a matéria”. (RHINE; PRATT, 1966, p. 6)
Cabe atentar, também aqui, para a denominação de “conceito familiar de espírito sobre a matéria”, utilizado por Rhine. O termo espírito, nesse contexto, nada tem a ver com o conceito de espírito, utilizado pelo Espiritismo. Para Rhine, o termo espírito, refere-se à ação mental que produz certo efeito sobre alguma parte do ambiente físico. Espírito = mente. Nada além.
Mas, o fato de Rhine ter substituído o termo telecinese (ação a distância) por psicocinese (ação direta do espírito sobre a matéria) ou dito de outra maneira, ação direta da mente sobre a matéria, ganhou espaços conflituosos ao se associar a psicocinese, e consequentemente à psicocinesia, à influência de seres desencarnados.
Todavia, para Rhine, a escolha do termo pscocinese, em substituição ao termo telecinese, limitou-se a uma preferência entre os dois, por ser mais adequado aos objetivos que estavam sendo propostos. Nada além disso. Assim, lemos que
Ao tempo em que se introduziu o termo psicocinese, houve uma disputa entre ele e o termo telecinese, principalmente associado com manifestações físicas, ligadas à reivindicação de mediunidade. Telecinese significa ‘ação a certa distância’ e psicocinese, ‘a ação direta do espírito sobre a matéria’. O uso do último termo foi preferido como mais adequado e por não ter, mais claramente, qualquer ação limitativa com ação desencarnada. (IDEM, 1966, p. 12)
Vemos, assim, com clareza, que o termo escolhido (e não necessitamos de grandes especialistas para chegarmos à conclusão) em nada se relaciona às entidades incorpóreas, que sobreviveram à morte física. É, diga-se, exatamente o contrário disso. E esta é a posição da Parapsicologia, desde o início, que, didaticamente, identifica dois grandes grupos de fenômenos: os de natureza subjetiva e os de natureza objetiva.
Todavia, alguns pesquisadores espiritualistas, certamente por entenderem os dois grupo de fenômenos propostos insuficientes, acrescentaram um outro grupo que, ao mesmo tempo, pode enquadrar-se, indiscriminadamente, tanto no grupo dos fenômenos subjetivos, como no grupo dos fenômenos objetivos, um grupo, digamos, “especial” criado por eles: o dos fenômenos cuja ação é devida aos desencarnados. A partir disso a coisa começa a andar de lado.
Para entendermos um pouco essa distorção, convém voltarmos um pouco no tempo.
A falta de uniformidade nos termos empregados para identificar os fenômenos paranormais levou o 1º Congresso Internacional de Parapsicologia, o mesmo que adotou o nome Parapsicologia em substituição à Metapsíquica, já citado anteriormente, a buscar uma forma de minimizar o problema.
Para tal adotou a nomenclatura de Thouless e Wiesner que sugeria reunir todos os fenômenos sob a denominação de Psi. Assim, teríamos: Psi-Gama, fenômenos subjetivos e, Psi-Kapa, fenômenos objetivos. Mas, para sermos justos, isso, na prática, pouco ou nada contribuiu. Embora nada haja de extravagante nessa empreitada.
Assim, se compararmos as categorias de Rhine, veremos que PES – Percepção Extrassensorial acomoda-se em Psi-Gama. e PC – Psicocinese, em Psi-Kapa. Por sua vez, os fenômenos subjetivos e os fenômenos objetivos, na classificação de Richet, também.
Contudo, afirma Guimarães (1976), alguns pesquisadores tendem a admitir, como já destacamos, uma terceira categoria de fenômenos Psi, que seriam oriundos das mentes de seres incorpóreos.
Mais corretamente, admitindo-se que, mesmo sobrevindo a morte do equipamento fisiológico, a mente pudesse permanecer em atividade por algum tempo ou indefinidamente, seria possível registrarmos suas atividades paranormais. Teríamos então, outro grupo de fenômenos subjetivos e objetivos, generalizadamente classificáveis como fenômenos Psi-Theta. A designação ‘theta’ corresponde à primeira letra da palavra ‘thanatos’, que significa morte, em Grego.
Neste caso, certos fenômenos [quais?] da categoria Psi-gama e Psi-kapa iriam enquadrar-se melhor no grupo Psi-theta. (ANDRADE, 1976, p. 52 e segs.)
Ora, isso trouxe um desserviço à Parapsicologia. Confundem-se aqui fenômenos parapsicológicos com fenômenos de natureza espírita sem, contudo, estabelecer-se um limite claro para a separação entre uns e outros. Em tese, todos os fenômenos parapsicológicos poderiam ser enquadrados dentro da categoria Psi-Theta.
É um comportamento que deve ser denunciado por parte da Parapsicologia. É um jogo que esbarra na má-fé.
Toda essa confusão faz da Parapsicologia uma colcha de retalhos, que muito agrada seus detratores; além, naturalmente, de destruir o conceito de fenômeno parapsicológico à medida que os confundem com fenômenos de natureza espírita, ou como preferem alguns, mediúnicos (7). Daí evocarem as EQMs, como fenômenos parapsicológicos. Ora, a Parapsicologia nada tem a ver com EQMs. Nada tem de parapsicológico alguém dizer que saiu do corpo e encontrou com a vovó, o vovô, viu uma luz no final de um túnel, encontrou com o Papa Gregório XIII ou com o Pica-pau. Isso nada tem a ver com Parapsicologia. Alguns alucinógenos e também alguns estados mórbidos podem provocar os mesmos efeitos. E daí? Colocamos tudo no mesmo pote? Convenhamos! Isso seria puro, e injustificável, reducionismo.
À guisa de conclusão
Parece-me razoável dizer que, ao se escrever um texto, mesmo que seja um breve artigo como este, sempre há uma motivação.
Neste caso específico, afirmei existir um conflito, que adjetivei como “dificilmente superável”, entre Parapsicologia e Espiritismo. O fato transita desde leituras tendenciosas, algumas denunciadas neste artigo, até a inserção de categorias classificatórias, alheias à Parapsicologia, que mais não fizeram do que prestar um desserviço à busca da verdade.
Assim, se é correto afirmar-se que as primeiras investigações sobre uma fenomenologia, hoje denominada parapsicológica, nasceu no seio de uma série de ocorrências atribuídas, à época, à influência de personalidades desencarnadas e que muitos investigadores abraçaram a causa dos espíritos, também é verdade que outros buscaram novas explicações e, com base em investigações metodologicamente controladas, apresentaram novas respostas, que nada têm a ver com os invisíveis. De um lado, a doutrina espíritas. De outro, a Parapsicologia.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Hernâni Guimarães. Parapsicologia Experimental. 2. ed. São Paulo: Livraria Espírita Boa Nova, 1976.
DOYLE, Arthur Conan. História do Espiritismo. [trad. Júlio Abreu Filho] São Paulo: Ed. Pensamento, s.d.
FUSARO, A.C.; FUSARO, M.; Educação, Espiritualidade e Cotidiano. São Paulo: BT Acadêmica, 2016.
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NOTAS
(1) http://www.febnet.org.br/blog/geral/colunistas/fenomenos-mediunicos-metapsiquicos-e-parapsicologicos/ Consulta realizada em 18/03/2016.
(2) Vejamos como Richet (s.d. p. 23) definiu a Metapsíquica em seu Tratado de Metapsíquica: “ uma ciência que tem por objeto a produção de fenômenos mecânicos ou psicológicos devidos a forças que parecem ser inteligentes [há uma intenção] ou a poderes desconhecidos, latentes na inteligência humana”. Diga-se, tomando por base o que foi dito pela autora do texto, que não cabe à Psicologia interpretar a Metapsíquica. No máximo pode opinar.
(3) Observe o leitor, que estamos falando em fenômenos paranormais, jamais em pessoas paranormais.
(4) NDE – Near-Death Experiences e Parapsicologia. in REVISTA TRIPLOV de Artes, Religiões e Ciências. Nova série. n. 45 . abr.-maio, 2014
(5) http://www.autoresespiritasclassicos.com/Pesquisadores%20espiritas/Charles%20Richet/Tratado%20Metapsiquica/Charles%20Richet%20-%20Tratado%20de%20Metaps%C3%ADquica.htm
(6) file:///Users/joseroberto/Desktop/ARQUIVO%20GERAL/Charles%20Robert%20Richet%20-%20Tratado%20de%20Metaps%C3%ADquica.webarchive
(7) Não desconhecemos a diferenciação feita entre fenômenos anímicos e fenômenos mediúnicos. Contudo, tal separação aponta para uma mesma e única problemática: os limites diferenciais claros para a separação de uns e outros.
Revista Triplov, Série Gótica
Outono de 2017