BLANCA VARELA (1926-2009 PERU)
TRÊS POEMAS EM TRADUÇÃO DE FLORIANO MARTINS
NO ESPELHO
Exploro a chama e não a extingo porque amo seu calor doloroso,
suas angustiadas línguas sem som,
sua pele redonda que atravesso com meus dedos
para chegar à água solitária de tão leves pálpebras.
E sinto a asa nos espelhos que me devolvem sempre,
como se colhesse as violentas cinzas que jogaram aos peixes,
como se uma ave morta pesasse entre meu sangue
e a estancasse ali,
próxima ao fogo vivo dos próprios insetos,
a seus pequenos corpos,
belos sob escuros e apodrecidos licores,
íntimos e nervosos nos gozos profundos.
Raízes de pesadas colunas de sonho entre a fronte,
gotas áridas nos frutos caídos
que transbordam azeites agudos, insondáveis.
MÁSCARA DE ALGUM DEUS
Diante de mim este rosto lunar.
Nariz de prata, pássaros na fronte.
Pássaros na fronte?
E logo há vermelho
e tudo o que a terra esquece.
Umidade com poderes de fogo
florescendo após os negros cílios.
Um rosto na parede.
Detrás do muro, além de toda vontade,
mais longe ainda que olhar e calar:
o que?
Sempre algo que romper, abolir ou temer?
E pelo outro lado? Ao revés?
Voa a mão, nasce a linha,
vibrante destino, negro destino.
Por um instante a melodia é clara,
a tarde parece eterna,
puríssima a sombra do céu.
Volto outra vez. Pergunto.
Talvez diga algo este silêncio,
é uma imensa letra que nos nomeia e contém
em seu ar profundo.
Talvez a morte detrás deste sorriso
seja amor, um gigantesco amor
em cujo centro ardemos.
Talvez o outro lado exista
e seja também o olhar
e tudo isto é o outro
e aquele este
e sejamos uma forma que muda com a luz
até ser apenas luz, apenas sombra.
É MAIS VELOZ O TEMPO
estar em algo
alguma vez ou sempre
pedra animal homem
história de uma cor
sombra veloz em meu peito
o tempo
o tempo me persegue e me desdiz
pergunto
escrevo no ar
com a minha língua escrevo
com minhas mãos e pés escrevo
com meus olhos
o amor
uma onda inimiga me derruba
junto palavras contra palavras
não creio em nada desta história
e no entanto a cada manhã
invento o absurdo fulgor que me desperta
o limite de sombra
a consciência
o ardil original
o sol acima
a terra abaixo
ao centro o velho gesto
de uma árvore que me agride
com a inocência das árvores
a canção
que atravessa a nuvem
as coisas
caminham lindamente até a morte
a hora se desfaz sozinha
longe de tudo
fulgor e destruição
ar na greta
ou greta no ar
nem pedra nem animal nem homem
a flor aponta o crime
com silencioso rubor
ninguém no próprio tempo
se atreve a interromper o tempo
revista triplov . série gótica . outono 2019
parceria tripLOVAGUlha
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
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