O Herberto Helder de Manuel Frias Martins
Foto: M Céu Costa

 

 

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Não é fácil ler o livro de Manuel Frias Martins, Herberto Helder – Um silêncio de bronze (reedição de obra antiga), sem mentalmente estabelecer conexões com o Poeta obscuro e outros escritos meus, por isso  o melhor é interiorizar o facto e atribuir-lhe desde já a correta orientação.

Um dos campos de estudo prezados ainda hoje, apesar de estéril e de assentar quantas vezes no vazio de o  aludido aprendiz não conhecer o seu pretenso mestre, é o das influências e circunstâncias adjacentes. Apesar da modernidade de Herberto Helder, ele não escapou a estas ideias velhas e menores,  manifestas  num dos seus últimos livros, como sabem os mais atentos.  Ora quanto mais fecundo  não é comparar similitudes! Existem semelhanças entre Herberto Helder e António Ramos Rosa que valha a pena comentar?

Entre Manuel Frias Martins e eu existem similitudes, devidas a esta feliz circunstância de  concordarmos quanto aos vetores dominantes na obra herbertiana: o corpo, e com ele tudo, pois é com o corpo que o poeta insiste em escrever, e à esquerda, como declara nos Poemas canhotos . Tudo o que HH escreve é autobiográfico, sim, se bem que todos nós só escrevamos a nossa bio+grafia, ou a nossa psico+grafia, porém nele o facto assume dimensões hiperbólicas, falocêntricas. Por isso foram tão importantes as crónicas póstumas, publicadas com o título Em minúsculas,; elas são o melhor tributo ao conhecimento da sua bio+grafia, escrita da vida. Isto é, a biografia, em HH, não vem dos factos vividos, sociais, sim da sua escrita. Ele  entendeu a sua vida como escrita e esta como obra do corpo, pondo a alma à margem, como observa Manuel Frias Martins. Os episódios mais relevantes da vida de Herberto Helder passam pela escrita.

Quem fala do corpo está naturalmente atento à sensorialidade, na qual é preciso ler o subtítulo de Manuel Frias Martins – Um silêncio de bronze. Esse silêncio não é gritante, sim musical, e para o declarar o o autor escolheu instrumentos de percussão dos mais significativos,  de uma parte pela beleza e por levarem o som a quilómetros de distância, até às mais remotas povoações, como o bombolom africano, de outra parte, distinta do bombolom, por serem indissociáveis da igreja, e por isso de Deus – os sinos. Deus é uma presença constante na obra herbertiana e Manuel Frias Martins chama a atenção para o facto de Herberto ter nascido numa família de judeus. Com efeito, se algum livro glosou mais do que outros, foi a Bíblia, a despeito da sua descrença no Deus dela.  A sacralidade, que para mim define o poeta obscuro e poeta órfico para o autor de Um silencio de bronze, é  um dos eixos em torno dos quais roda a obra herbertiana. Exemplo é«Cobra», um poema que logo na abertura se autodefine como rotativo, ao mostrar o eterno retorno das quatro estações.

MFM considera o livro Cobra um modelo na poesia contemporânea,  ele reflete os mitos da época – a época é a imediatamente pós-Revolução.  À sua maneira, HH refletiu as circunstâncias do mundo em que viveu, haja em vista os últimos livros, no oposto da beleza luxuriante de O amor em visita,  e mais próximos de uma literatura tão minimal, sarcástica e isenta de flores de retórica ornamentais que vai ao ponto de se construir com algarismos. Estou a pensar nos «33 poemas», seu último livro, intitulado Poemas canhotos. Realmente, a esquerda vai perdendo uma batalha de que já só restam ideais comuns a outras bandeiras, se quisermos ler canhoto como esquerdino, sem perda para a também presente simbólica do sinistro e diabólico.

Em relação ainda ao livro Cobra, MFM compara-o com Finisterra, de Carlos de Oliveira, quanto a ambos espelharem esses mitos contemporâneos. Os dois poetas assemelham-se, desde sempre, no imaginário do fogo, por exemplo. Manuel Gusmão apontou em tempos essa coincidência, e até deixou expressa a afirmação de que o vermelho, em Carlos de Oliveira, apontava o comunismo.  O fogo, em ambos, é fundo e amplo, por isso também pode apontar bandeiras, sobretudo tendo em conta a tão próxima censura, de que ambos sofreram consequências.

Não coincidimos, Manuel Frias Martins e eu, na interpretação e explicação da obra herbertiana, o que é bem natural, pois a nossa informação e mesmo formação divergem, apesar de ambos termos cursado na mesma Faculdade de Letras e ambos termos desempenhado as nossas funções profissionais na Universidade de Lisboa; acontece que ele, como professor, dispõe de uma preparação teórica que em mim escasseia; depois,  vindo a minha formação profissional do Museu de História Natural , tenho-me ocupado de aspetos relativos às Ciências Naturais e à Antropologia nos livros de Herberto Helder, o que julgo inédito e até fonte de desagrado para aqueles que acham pedras, lagartixas e similares habitantes da crusta terrestre incompatíveis com a Poesia.

As ciências ocupam lugar na sua obra, basta mencionar as versões de poemas étnicos,  que constituem quatro ou cinco livros, desde O bebedor nocturno –  o seu conteúdo envolve a Antropologia. Múltiplas questões científicas  ocorrem mais dispersamente, decerto relacionadas com as funções de jornalista, obrigado à investigação para se preparar, e estou a recordar-me de que uma reportagem de Herberto Helder sobre as missões de Francisco Reiner o levaram a informar-se sobre alguma coisa da oceanografia e dos animais marinhos. Todos os herbertianos têm em mente a história  do Celacanto, das lagartixas madeirenses e afinal de tudo o que fez parte do lugar onde nasceu o poeta, e onde viveu na   infância e adolescência, as fases da vida mais ávidas e recetivas ao conhecimento.  As ilhas do Atlântico não são terras neutras, elas constituem algo de tão apetecível e sacral para a ciência, que lhes foi conferido o estatuto  muito especial de unidade biogeográfica,  sob a obscura designação de «Macaronésia».

Finalizemos. Foi muito gratificante ver-me ao espelho na obra de Manuel Frias Martins, pois o reflexo corresponde, de uma parte a outra, espero, a  comprovações  de boas análises da obra herbertiana.  É correta a imagem que transmitimos do rosto oculto sob o véu da obscuridade, obscuridade relativa ao mistério próprio do poeta órfico, aquele que encanta e por isso transforma quem ouve o seu canto – e quem ouve o seu silêncio. MFM religa o silêncio ao enigma, próprio da “matéria negra” desta poesia, e eu acrescento que o silêncio de Herberto Helder também apresenta aspetos terríficos –  é um silêncio povoado por vozes. Termino com a menção de MFM à  Carta do silêncio de Hoffmansthal, em Photomaton & Vox:  HH cita poetas  que renunciaram ao mundo.  Suicidas, eremitas de outra estirpe, anjos e demónios que se calam, num gesto de repúdio e revolta. Ou alquimistas, que ocultam a sua oficina, para mergulharmos no interior do trabalho de transmutação.

 

MANUEL FRIAS MARTINS
Herberto Helder – Um silêncio de bronze
Lisboa, Nova Vega,  Col. Passagens
2019


REVISTA TRIPLOV . SÉRIE GÓTICA . PRIMAVERA 2019