FLORIANO MARTINS
O compositor brasileiro Petrúcio Maia (1947-1994) deixou uma obra que, a exemplo de muitas outras no Brasil, se vê forçada a percorrer a trilha do esquecimento. Em um país cuja memória se desfaz a olhos nus e vestidos, o esquecimento é a porta de entrada no desconhecimento. Segundo consta no Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira, Petrúcio Maia compôs músicas de sucesso em parceria com compositores como José Carlos Capinam, Clodo Ferreira, Belchior, Fausto Nilo, Climério e Augusto Pontes. Em 1977, a música “Cebola Cortada”, parceria sua com Clodo, fez sucesso na voz de Fagner. A música posteriormente foi regravada por vários nomes da MPB, como Milton Nascimento e MPB4. Em 1980, gravou o disco “Melhor que mato verde”. Em entrevista que ele deu ao jornalista Francis Vale, observa: As canções que escrevo utilizam ritmos e estruturas melódicas que viajam por lugares e etnias. E os textos contêm símbolos étnicos, que às vezes formam uma estrutura até certo ponto épica. Outro elemento a destacar é a ocupação com os temas ecológicos, sem necessariamente partir para o protesto explícito, mas simplesmente cantando a natureza. É uma geopoética política. Como um atlas musical.
Acerca de sua importância para o cancioneiro popular, reproduzo aqui trecho de uma matéria assinada pelo jornalista Flávio Paiva, ele que também participa do presente dossiê. O texto, intitulado “De Belchior para Petrúcio Maia”, teve publicação recente no jornal O Povo, de 21/08/2018, e reflete sobre uma carta do compositor Belchior enviada a Petrúcio Maia em julho de 1972. Lemos ali:
Procurei apreciar as palavras de Belchior nas suas expressões literárias, mesmo sabendo do caráter afetivo e pessoal desprendido a um destinatário de tão íntima amizade. Li cada pensamento, cada raciocínio e cada sentimento exposto como substrato autobiográfico de uma verdade essencial.
A carta de Belchior para Petrúcio Maia fala de acontecimentos e impressões no momento em que o remetente está grávido da nova experiência de viver em São Paulo, de ter lançado o single de Na Hora do Almoço, de estar no Disco de Bolso do Pasquim e de ter sido gravado por Elis Regina (1945-1982).
Há certo misto de ironia e agradecimento na solidão das palavras de Belchior. Quando ele realça para o “bom amigo Pete” que ninguém escreve para ele, está revelando a felicidade de responder a uma correspondência que abordara inclusive temas como o do “embelezamento” e o do “progresso” de Fortaleza.
Ele trata a cidade como “ponto de saudade” e “porto de alegria”. Diz que sente um “cheiro de cultura, de literatura, de delirium-liricum-tremens” nos “poetas loucos e lúcidos” da vida urbana fortalezense. Ressalta, porém, que se refere a “uma loucura divina, épica, trágica, lírica” da beleza humana e do sangue novo de uma cidade que vive abafada em seu potencial.
“Não há dúvida de que são milhares de personagens camuseanos em Fortaleza”, resume, fazendo alusão ao romance A Peste, do escritor argelino Albert Camus (1913-1960), ambientado em Orã, no litoral do seu país, cujo protagonista é um médico que luta contra uma epidemia, ao tempo em que amarga uma dilemática solidão.
Compartilha com o amigo que as coisas estão indo bem, que ele, o Rodger, o Ednardo e a Téti (que chama carinhosamente de Tetinha) estão com contrato na TV Cultura, para a parte musical de um programa de entrevistas, e que a casa onde mora vive cheia das mais diversas pessoas. Confessa, todavia, que sente muita saudade e que pensa em um regresso definitivo.
Revela uma expectativa da ida de Petrúcio para o Sudeste. “Pete, saiba que você é muitíssimo lembrado […] Temos lembrado muito do teu talento, amizade e lealdade. Você é uma grande falta aqui”. E, para deixar clara a admiração pelo amigo, esclarece que ele está permanentemente na “turma dos bons”.
Dalwton Moura, jornalista, ao preparar umas notas biográficas de Petrúcio Maia, menciona declarações da mãe do compositor, Vanda Maia, ao falar de intérpretes que gravaram canções de seu filho:
Vanda lembra que certa vez perguntou a Petrúcio quantas músicas ele escrevera. “Eu nem me lembro como foi que ele arrumou essas músicas. Sei que a gente soube logo. Tem Cebola Cortada, tem muitas. Que eu conheça, tem 50. Agora, uma vez eu perguntei a ele, e ele me disse que já tinha feito 300. Agora, onde andam essas músicas eu não sei.” […] Fagner, por sua vez, se refere a Petrúcio como “o nosso compositor mais importante, mais criativo”. “Tocou demais comigo, foi meu grande parceiro. Era o mais puro e o mais estimulante.” Elogios retribuídos por Vanda ao falar com carinho dos intérpretes que registraram obras de Petrúcio, como o próprio autor de Mucuripe. “O Fagner gravou muita música dele, o Ednardo cantou Dorothy L’amour, foi o primeiro… E tem disco dele (Petrúcio) cantando”.
Em 2017 a cantora Mona Gadelha publicou uma biografia de Petrúcio Maia, disponível na Amazon. O presente dossiê surgiu de uma conversa com Zaqueu Leite Araujo – que me ajudou na busca de amigos que pudesse escrever sobre Petrúcio – e o cantor e compositor Ednardo, sobre o imperativo na recuperação da obra desse importante compositor. Ednardo me enviou então aquele que seria o texto-matriz desta nossa homenagem a Petrúcio Maia. Finalizo esta apresentação reproduzindo-o na íntegra:
Petrúcio Salvino Mesquita Maia filho mais novo de uma família de intelectuais, nasceu quase na beira da praia de Meireles em Fortaleza/Ceará em 1947. Nos conhecemos nas cenas musicais de Fortaleza, festivais de músicas, programas musicais da TV Ceará, bares e pontos de reuniões e encontros artísticos, de teatro (G.R.U.T.A.) na efervescência inicial do Pessoal do Ceará. Bar do Anísio, (Beira Mar) Gerbô (ao lado da TV Ceará). Chamou atenção de todos a sua dedicação à música, exímio pianista e também violonista para mostrar suas recentes parcerias musicais. Artista talentoso, informado e culto nas Ciências Sociais, e também reservado e calado, preferia se expressar pela música, e com senso de humor bem sutil. Nos tempos do Bar do Anísio, quando a ditadura estabeleceu o AI-5 , vários artistas e artífices do Pessoal do Ceará foram presos, uns rapidamente outros mais demoradamente. Do que lembro: Augusto Pontes; Rodger Rogério; Claudio Pereira, Petrúcio Maia e tantos outros… Era comum, nos bares, a presença de “olheiros” para “registrar” o posicionamento político de cada pessoa. Quando um camarada de teatro no bar do Anísio se levantou e fez discurso flamejante, o Petrúcio pega o violão e canta pequeno trecho de música de carnaval – “A Fredegunda fala demais, Fredegunda isto não se faz”… Ele sabia que ali, de alguma forma estávamos sendo observados. Algum tempo depois vieram as prisões.
Todos nós do Pessoal do Ceará, temos carinho especial por Petrúcio, por sua vasta obra musical e de seus parceiros com abrangência nacional. Nosso parceiro Brandão, diz que “Mais dias, menos dias, cada um enfrenta suas poesias e escritos e músicas”. Lembrei de imediato a canção “Além do Cansaço” (Petrúcio e Brandão): “Quando não houver mais música no ar… Quando a rua, a casa e a porta não mais falem de ir ou chegar. Quando não mais houver poesia na triste canção de uma mesa de bar”… Canção emblemática, premonitória talvez, nestes tempos em que suas obras e de seus parceiros são proibidos de circular pela própria ex-companheira e viúva, que deveria preservá-las e divulgá-las.
É difícil para qualquer artista vivo ver suas obras cerceadas desta forma. Imaginem aqueles que já se foram e não podem mais lutar por elas… Nosso brado como colegas de profissão, amigos e parceiros é que isto se resolva logo, que a força de todos nós faça ver a fragilidade sem argumentos de quem detém atualmente o poder de novas gravações, das divulgações em shows, em todos os meios disponíveis, desta obra que não pertence apenas ao autor das músicas, mas também aos seus parceiros e intérpretes e de forma geral à todos nós que gostamos de boas músicas.
Esta é, portanto, a razão central do presente dossiê. E para que nossa iniciativa não se limite ao ambiente da escrita, indicamos abaixo uma série de enlaces de vídeos e áudios para que o leitor atento desfrute e divulgue entre amigos:
https://www.youtube.com/watch?v=aS58la3AvA8
Petrúcio Maia – Melhor que Mato Verde / 1980 (disco completo)
https://www.youtube.com/watch?v=ZmfrEyzWlSc
MPB4 e Milton Nascimento
Cebola Cortada (Petrúcio Maia e Clodo)
MPB4 Ao Vivo 40 Anos
https://www.youtube.com/watch?v=O3VAnPUuV_w
Calé Alencar e Petrúcio Maia / Além do Cansaço (Petrúcio Maia e Brandão)
Pirata Bar / 29.03.1990.
https://www.youtube.com/watch?v=0BNdak0mbKs
Calé Alencar / Acorda e Sorri (Petrúcio Maia e Brandão)
Estoril – 4 de outubro de 2013.
https://www.youtube.com/watch?v=6d6jrWeu1UQ
Ednardo na Tenda / Centro Dragão do Mar – 2014
Dorothy Lamour (Petrúcio Maia e Fausto Nilo)
https://www.youtube.com/watch?v=inIcJjjnWuY
Clodo, Climério e Clésio / Conflito
São Piauí – 1977
https://www.youtube.com/watch?v=u37TRdjWKZc
Amelinha / Incêndio
De Primeira Grandeza – As Canções de Belchior 2017
https://www.youtube.com/watch?v=P-nsncVjWI8
Raimundo Fagner / Beco dos Baleiros (Papéis de Chocolate)
Ave Noturna 1975
https://www.youtube.com/watch?v=uqX4Y45wMrk
Khalil Goch | MORENA PENHA (Petrucio Maia/Manassés)
Os Cearenses – Canto de Um Povo, 2018
Dados sobre os colaboradores
ANTONIO JOSÉ SOARES BRANDÃO. Poeta. Parceiro valioso de Petrúcio Maia.
DANIEL PERRONI RATTO. Poeta, jornalista, músico. Dirige a Editora Algaroba.
EDNARDO. Cantor e compositor.
FLÁVIO PAIVA. Jornalista, colunista semanal do caderno Vida & Arte do jornal O Povo.
FLORIANO MARTINS. Poeta, ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura.
IEDA ESTERGILDA DE ABREU. Poeta e jornalista.
JORGE MELLO. Compositor.