VI ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar . Lisboa . 14 de Julho de 2018
MANUEL SANTOS
Apanhar figos pela manhã
1.
apanhar figos pela manhã
depenicá-los como os pássaros
2.
não se percebe
o que fazer pelas palavras
desviam-se p’lo abismo delírio ou
numa esplanada sobre o céu patins com asas
há as que dormem sob o travesseiro
estremunhadas acendem o candeeiro
e deitam-se na folha
só então
o sossego de bem com deus e o diabo
3.
lia poesia e a mosca o feio peso do real
pensei platão a impedir a luz
teimei fitar o sol
e a mosca na mesma sombria desatenção
até que zás esborrachei platão e entendi o poema
4.
a celtejo e o Tejo
cínica em ameaças judiciais aos que amam o viveiro das Tágides
carpas lúcio-percas barbos achigãs…
cega na ganância de dupla produção nos mesmos tanques de tratamento
à empresa por ironia ostenta o nome do rio
pedro fartou-se e esfanicou-lhe a máscara em vésperas de carnaval:
águas pretas pestilentas com um metro de espuma de pasta
que os grifos e corvos marinhos convoquem
Camões a escrever um poema novo:
Tejo que lavas as mágoas dos pescadores
e enamorados da clara e límpida bênção…
5.
apetece fim de tarde de sexta
surfar a beleza da gente feliz
olhos naufragados dum par jovem
puto patins abaixo cão acima
troca de smiles no telemóvel
ondas tónicas de sorrisos de cerveja
e azul de mar
terra
que nos intervalos de a fodermos
é bela ainda
des fral da da a bandeira
da nação no forte de são julião
leve ao vento acena
aos navegadores da globalização
nova como diria o Ruy a despedir
se da terra da alegria
6.
pacífica vizinhança pomba e melros
numa poça de água
fábula aos animais racionais
7.
no rasto rosa do jacto de fim de tarde
espiral do cigarro iludido
da libertação do novelo do dia
encosto a cabeça à cabeça da rapariga do lado
a milhas de marte onde minha filha dizem um dia se refugiará
no rasto amarelo do sorriso esquecido
8.
a Inês estendeu as pernas no meu colo.
via o canal disney. eu adormeci a sonhar não sei quê
talvez as noites em que gostava de acordar para a embalar
não me acordou. disse que tinha de ir acabar de arrumar as coisas
e eu arrumei melhor os dias
9.
persona, de ingmar bergman
pessoa. máscara. para o tradutor, máscara.
e para os gregos, que nos interrogaram
(fernando, porventura pessoa, sina de ser fernandos).
desde miúdos representamos o desejo dos outros.
os que crêem em deus, para chegar ao céu.
na reencarnação, para representar outros fernandos.
ou na liberdade. dum pássaro, borboleta, caracol.
máscara. desde as primitivas pinturas, animais e máscaras.
os incivilizados escultores, máscaras. picasso , máscaras,
fascínio do rosto cúbico, máscaras, demoiselles d’avignon, máscaras,
a mim, máscara, máscaras africanas e outras carantonhas, máscaras.
e pássaros, caracóis e borboletas
máscaras
10.
14ª maratona do porto edp
a senhora a quem disse as fitas da mochila no chão podiam pisar-se
lê a arte de arruinar a sua própria vida
o marcador da maratona de lisboa serve de régua aos solavancos do comboio
e confessou que a mochila está no chão porque tou cada vez mais esquecida
a maratonista da vida tem 48 anos e há 10 que corre maratonas
já marquei viagem para a do funchal
mas não sei se corro porque tenho o joelho feito num 8
11.
um amigo enforcou-se.
numa árvore do quintal próximo de casa.
apertara-lhe a mão há uma semana na petanca.
só o achei menos expansivo. sempre teve sangue
na guelra, o que o fez querer gelar o sangue?
não tenho dormido bem,
visita e visita duma visão de miúdo,
um enforcado no guarda-fatos aberto.
nunca sabemos o fato que nos serve,
esconjurar o medo ou não ter medo do fim?
um jovem decidiu o último dia. num ramo onde pousam pássaros
12
último comboio
talvez me leve à estação que busco
não é leve a levitação das inquietações na folha
como vidro fosco do bafo das entrelinhas desen
contradas das linhas conduzem à estação deixada para trás
vazia
questiono o maquinista:
apanhaste o combóio que partiu antes da hora marcada
13.
a sombra deixa pressentir o escondido.
o que adias, fintas, sonegas. a película que
invertes, perfuras. na sombra te disfarças, assassinas.
caronte passa na barca e arrepiaste. não tens
muito tempo para deslindar a alma
14.
a manhã amanheceu
o verde acalmou e os pássaros ensaiam o canto
ao canto do sofá afinou os dedos e orou
abençoado o dia se segue a outro dia
e as mãos se dão a outras mãos
REVISTA TRIPLOV DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS
série gótica. outono . 2018