Rotxa scribida

NUNO REBOCHO


O GRILO FALA DA NOITE

esta é a circunstância: o grilo é a fala da noite

enquanto tece a minha solidão tamanha

como um piku antónia de esperanças.

o grilo anima a sua fêmea e eu olho para lá da bruma seca

até ao mar adivinhado e só a noite ocorre e me afaga

com as mãos calejadas. virá a chuva eu sei

mas não sei o quando das ribeiras engrandecerem

nem o tempo do milho nem o dos calhaus rolados

se recordarem do caminho do oceano: oiço

o grilo e espero esperando-me. e nem falo.

 

esta é a circunstância: há alhures um dragão

cujo bafo aquece a história

nunca a friagem da noite.

alhures há um grito ou uma pistola, um sexo

ou uma adaga ou um balaio levando a tristeza

até monte sossego: é preciso esperar que a noite

acorde e o feijão arregace entre as pedras e os cães

sacudam as suas pulgas. é preciso esperar a chuva

e os ribeiros como a malagueta espera os lábios

e cardar a paciência para a lonjura da caminhada

até à lambidela do dragão. até ao tempo: até quando

 

a circunstância da noite embranquecer a sua cor

e os olhos forem flores (acácias nunca). também

as pedras param e para isso esperam a espada do tempo.

também as moreias raivam nas tocas e os gaviões

se esquecem do voo na circunstância da noite

– essa a ocasião dos ladrões e dos sobressaltos.

por isso eu espero: confio na chuva e à espreita do dragão

escuto o grilo e solfejo a memória das fêmeas

que me vestiram de carícias e adivinho o mar

e as âncoras dos ribeiros que a chuva há-de regar.


RONDA EQUINOCIAL 

a Olinda Beja 

no átrio sul da infância havia o paquete ao largo

e a memória do tubarão: a ilha dos olhos grudava

a gaivota na paisagem.

de quanto mudava a geração e os lugares navegavam a regra

crer para ver, para existir.

 

ah ilhas deste mar de mim no rubicão das metástases do onde

onde larvam istmos e o indivíduo cresce como vinho das palmeiras

e buganvílias aquecem chamas e chuvas e ventos e faróis

e o mar é o mar do mar: equinocial ronda

sobre o hemisfério da vida.

 

no átrio sul da inocência a norte de uma boa esperança

havia o mar da infância e uma ilha de tão verde

a enxotar o oceano para dentro da distância

. havia sede de caju e o bambu era cerco

das cobras do crescimento.

 

ah ilhas deste mar de mim, que anémonas mordem e lavram praias

de mortes despejadas no desperdiçar das vagas

onde conchas guardam passados e livros

e águas e livros e momentos futuros de lugares futuros,

olhos e ouvidos que o sul moldava no rumo da eterna idade

sempre molhando a doença da vida.

 

no átrio sul da saudade guardo a sombra da memória

: dá licença que entre? – tenha a bondade,

não faça cerimónia. e traga vida

e traga gente.


O MAR DA IDADE

tu sabes (ilha) o som do meu silêncio,

das palavras dentro das cores, dentro das músicas, dos sabores.

tu sabes o peso das pedras, a candura

dos ventos, a sabideza dos corvos, a quentura do milho,

o amargo da purga, a agilidade das cabras.

sabes o mar da idade,

o tropeço das lavras

 

ilha carne de chuvas contida

na lixívia das vidas, contida

no fervor das acácias, contida

 

contudo

onde os tunídeos rondam

e a mancarra grita sobre as achadas,

tu feres-me com a seiva das areias

e adivinho os rumores vizinhos:

leva-me, lava-me, livra-me

que eu lavro-te de louvores

 

na cova que for minha

tu saberás as dores


Nuno Rebocho nasceu em Queluz, em 1945, português, com algumas raízes moçambicanas: cresceu e estudou em Moçambique (Lourenço Marques, actual Maputo, e Beira). Foi jornalista, exercendo actividade na imprensa regional e nacional em Portugal e Cabo Verde, na imprensa especializada e na rádio: foi chefe de serviços da Informação Especial da RDP – Antena 1 e chefe de redação da RDP – Antena 2 (Rádio Cultura). Animador cultural (com intervenções na Bienal das Culturas Lusófonas, em Odivelas, nas Correntes de Escrita da Póvoa do Varzim, no VI e VII Encontros de Escritores da Língua Portuguesa, realizados na cidade da Praia, nos Encontros de Poetas Portugueses tidos na Figueira da Foz), aprendiz de político e de sindicalista, tendo sido assessor de vários sindicatos e da Fundação Oliveira Martins. Empenhou-se na luta anticolonial e pela democracia durante a ditadura salazarista, tendo passado cinco anos nas masmorras da PIDE. Depois do 25 de abril, foi adjunto do Ministro das Obras Públicas, Habitação e Transportes no VI e VII Governos Constitucionais. Membro do conselho consultivo do MIL – Movimento Internacional Lusófono, da comissão consultiva da Fundação António Prates, adjunto cultural lusófono nomeado pela Korsang di Melaka, consultor da Fundação João Lopes. Depois de reformado em Portugal, decidiu regressar às suas raízes africanas, tendo fixado residência em Cabo Verde, onde desempenhou funções de assessor da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago. Como poeta e escritor tem 40 livros publicados: poesia (entre outros, Nau da Índia, Arte de Matar, Manual de Boas Maneiras, Canto Cantábrico, Discurso do Método, Canções Peripatéticas, Canto Finissecular e A Papaia), romance (A segunda vida de Djon de Nha Bia), crónica (Estórias de Gente), ensaios (entre outros, A Companhia dos Braçais do Bacalhau e Histórias da História de Santiago, no prelo). Presente em diferentes antologias poéticas editadas em Portugal, Brasil, Espanha e Argentina. Cidadão Honorário de Cidade Velha, apresentará este ano mais um livro de poesia, Rotxa Skribida, em louvor de Cabo Verde.

HOMENAGEM A VICENTE HUIDOBRO
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