JÚLIO CONRADO
Foto: Valter Vinagre
O Jorge Miranda historiador nada tem a ver com o Jorge Miranda constitucionalista. Nem faria sentido que este se dispusesse agora a produzir textos de historiografia em que aquele é, na sua área, uma referência. Mas enfim, usando eles o mesmo nome público, não será de todo inútil separar as águas para evitar confusões entre os mais distraídos. Aos oitenta e dois anos, o primeiro Jorge, em condições físicas nem sempre ideais, cuja fibra de resistente à doença tem sido posta à prova em variadíssimas ocasiões, faz jus ao seu prestígio de investigador publicando volumosa colectânea de pequenos estudos – Pombal e Oeiras – que abre perspectivas verdadeiramente entusiasmantes para quem acompanhe de perto, quer o percurso do autor, quer a temática sempre envolvente de quanto respeite à controversa figura do déspota esclarecido mais uma vez chamada a escrutínio pela comunidade, através desta obra.
Jorge Miranda, natural de Cascais, é um caso de “dois amores” posto ser no concelho confinante com o da sua naturalidade (Oeiras, neste caso) que tem encontrado os estímulos mais consentâneos com as apetências de pesquisa, não obstante lhe dever o concelho natal alguns textos indispensáveis, ainda que muitos deles inclinados na direcção da fronteira oriental. Ex-professor da Escola de Hotelaria do Estoril, morador em Oeiras, distinguido com as medalhas de mérito cultural nos dois concelhos atribuídas pelos respectivos municípios, profundo conhecedor dos recantos mágicos, no terreno, é um fiel companheiro de três outras individualidades ligadas à mesma actividade: Guilherme Cardoso, José d´Encarnação e Joaquim Boiça, que podem ser considerados um núcleo duro de entre os historiadores locais mais importante numa zona do país onde a monografia e as memórias não são propriamente géneros literários (há quem lhes chame subgéneros) muito cultivados, o que não quer dizer que as obras existentes nesse domínio não tenham apreciadores.
O historiador coloca-nos, em todo o caso, perante um conjunto de fragmentos que é resultado de uma porfia cujo começo remonta a 1971. Então “o meu conhecimento de Oeiras era extremamente limitado e superficial”. Em artigos publicados na imprensa local desde a referida data, não larga o homem objecto do seu compromisso biografista a fim de “ superar essa lacuna”.
Evoca-se hoje, por dá cá aquela palha, o célebre título do livro do escritor francês Michel Butor – O Espírito do Lugar – a propósito de tudo quanto vise encontrar em espólio monumental, iconográfico, artístico, etc. os contornos de uma linguagem da qual se retenha como que uma consciência de pertença evocada desde o olhar crítico sobre esses destroços sublimes que fazem as delícias de quantos se dedicam a interpretar as falas de outrora através do que delas haja de residual no presente. O caso Butor, todavia, não encaixa bem aqui. Jorge Miranda está “em casa” e o património edificado espera por ele a escassas dezenas/centenas de metros de distância, ou mesmo ao virar da esquina, para dialogarem quando é preciso, mas com a demora que o amadurecimento caso-a-caso exige. Butor atravessava o Mediterrâneo com um alvo definido: atingir o Egipto, onde já estivera, depois de ter produzido em França um dos romances nucleares do nouveau roman, a “escola do olhar”, La Modification, movimento literário que visava dar à “coisa” uma “vontade”própria, forçando o receptor a “escutar a coisa como uma pessoa”. De certa maneira, Butor foi em busca desses murmúrios da pedra que no Egipto, como sabemos, se expressam numa linguagem visual, se quisermos, pessoalizada, intelectualizando o ensaio como uma peça ajustável ao programa por si abraçado como escritor.
Jorge Miranda não está interessado em interrogar as pedras como coisas inteligentes mas também não pretende conviver com inertes destituídos de história. Quer interpretá-las, às pedras, mas sempre em busca do impulso humano que as tornou parte das nossas vidas, como reflexo utilitário imprescindível e garantia de posteridade mítica. Quer saber que tipo de gente foi responsável por elas e qual o contexto social que forçou ao seu aparecimento. Onde esteve o motor vital que lhes impôs existirem. À cabeça das pessoas responsáveis vem o primeiro-ministro do rei José, Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras. Na imensa versatilidade e tremendas responsabilidades reservadas pelos tempos ao ministro encontrou Jorge Miranda, ao inventariar os pequenos achados e consequente valia significante, o seu “Egipto”. Empenhou-se o conde no desenvolvimento de Oeiras ao lançar as bases de uma economia agressiva, multiplicando os meios de produção e distribuição da riqueza com o desenvolvimento agrícola e industrial, geradores de postos de trabalho e de expansão internacional de produtos como o vinho de Carcavelos; mais os lagares, os portos, os fornos da cal, a fundição de ferro, as feiras, palácios e arte de azulejaria que criaram um modelo arquitectónico conhecido por estilo pombalino que alastrou ao território nacional; arte pública; o magnífico retrato a óleo do marquês; – Oeiras foi local de repouso régio, o rei José adorava descansar no palácio; e o governante seu braço direito talhava não poucas vezes a partir da sede do condado as linhas mestras da governação do país.Todos estes itens, a par de muitos outros, sinalizam um tremendo esforço de modernização a ímpar visão estratégica do extraordinário Donatário não só para Portugal em geral como para esta Vila em particular. Na presente nota de leitura sobre Pombal e Oeiras muito fica por dizer, o melhor mesmo é lê-lo. Nas páginas finais Jorge Miranda elabora uma excelente síntese dos materiais reunidos da qual ressalta a memória de alguém que muito prezava “o retemperador refúgio de Oeiras” principalmente quando a reconstituição de Lisboa pós-terramoto impunha “o exaustivo trabalho de reconstrução e os demais exigentes negócios do Estado.”
Júlio Conrado . Dezembro de 2017
Edição: Espaço e Memória
Coordenação: Joaquim Boiça
Apoio: Câmara Municipal de Oeiras
© Revista Triplov . Série Gótica . Inverno 2017