Maria Coroada e o cisma da Granja do Tedo

MANUEL RODRIGUES VAZ


Comunicação lida na Tertúlia à Margem, no Restaurante Pessoa, Lisboa, em 21 de Março de 2012 e na Casa das Monjas Dominicanas (Lumiar), no dia 4 de Novembro de 2017, integrado no IV Encontro Triplov da Quinta dos Frades.


O Jornal O Comércio do Porto, que se publicava na capital nortenha, abriu o noticiário no dia 6 de Março de 1879, com uma notícia verdadeiramente bombástica: tinha sido presa no dia anterior a cidadã Antónia Custódio das Neves, que até àquele momento se tinha apresentado sempre como António e sempre tinha sido conhecida como tal, pois vestiu-se sempre como homem e assim era conhecida.

Porque não tinha cometido nenhum crime e toda a gente testemunhava o seu bom comportamento, foi libertada no dia seguinte, tendo acabado por casar com o filho do patrão. Só tornaria a ouvir-se falar dela porque foi uma das vítimas do incêndio que em 20 de Março de 1988 deflagrou no Teatro Baquet, situado na que é hoje Rua 31 de Janeiro, no Porto, onde pereceram cerca de 120 pessoas, das 600 que enchiam a mesma sala.

De certo modo foi esta história, que ficou conhecida com a história da mulher-homem, que fez vir ao de cimo outra história que viria a ser divulgada como “Maria Coroada ou o Cisma da Granja do Tedo”, uma ridente aldeia do concelho de Tabuaço, em pleno Alto Douro, cujos arredores são um oásis de sossego e beleza e que continua a ostentar uma das pontes romanas mais importantes da península Ibérica, continuando em estado impecável.

Efetivamente, a Antónia Custódia das Neves, que era natural de Quintela da Lapa (Sernancelhe), foi criada como rapaz na Granja do Tedo, onde sua mãe, Maria das Neves, tinha fundado uma seita que em meados do século XIX deu muitas preocupações às autoridades da região.

Maria das Neves, que ficou conhecida como Maria Coroada, era analfabeta, mas soube aproveitar os ensinamentos de um manuscrito do livro dos Mórmons que o irmão Basílio tinha trazido depois de cumprir tropa no Regimento de Lanceiros, Lisboa, no ano de 1840, e em breve lideraria uma seita, que congregava algumas centenas de seguidores que participavam, muito à maneira dos hippies, mas mais de cem anos antes, em missas celebradas na sua casa, que denominava como Arca da Aliança, em que se apresentavam despidos e engrinaldados de flores, sob a regência do seu irmão António Custódio, também conhecido como Sacramento, que se autodenominava Galo-Galarim e, todo nu, aparelhava-se com asas brancas, que utilizava para dar o sinal para os fiéis se reunirem ou dispersarem, bastava batê-las.

Segundo a socióloga Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, «apesar de não constituir certamente um exemplo estatisticamente significativo da evolução da consciência popular da época, e representando muito provavelmente um caso limite, o movimento da Granja do Tedo revela-se um terreno particularmente fecundo para a análise dos mecanismos que presidem à sua formação, permitindo destacar o dinamismo dos processos de circulação ideológica e cultural entre grupos sociais diversos e entre distintos níveis de cultura.

Nesta medida, o problema da influência do livro trazido da cidade para a aldeia revela-se central. Não na perspetiva mais positivista que conduziria a uma impossível tentativa de identificação a todo o preço da obra em questão, mas na perspetiva do realce do impacto da cultura letrada e urbana sobre um universo predominantemente iletrado e camponês. «Funcionando como mediadores privilegiados, os membros da família de José Custódio, – que era mestre-régio, portanto letrado – teriam sem dúvida desempenhado o papel de intermediários culturais neste intercâmbio.»

A Maria das Neves, auto-intitulada gran-sacerdotiza deste grupo, pelo que ficou conhecida como Maria Coroada, era, antes de mais, uma feminista avant-la-letrre, razão porque vestiu as suas filhas sempre como homens, para que não padecessem os descalabros das mulheres na época.

Efetivamente, a preconização do ensino feminino gratuito constitui um dos múltiplos aspetos em que no discurso do movimento se valoriza a imagem da mulher.

As pregações de Maria Coroada revelam ainda uma preocupação fundamental com os desvalidos da sociedade, os pobres, os inválidos, os velhos, os órfãos e as viúvas.

O relevo que é dado a esta questão parece indicar a crise de assistência pública resultante da extinção recente das ordens religiosas. À sua resolução se liga o essencial das propostas utópicas do movimento.

Hoje sabe-se que, além do manuscrito dos Mórmons, o irmão tinha trazido de Lisboa também alguns dos folhetos que naquela altura eram ali distribuídos por organizações que mais tarde haveriam de ser conhecidas com ligações à Maçonaria e possivelmente à Carbonária.

Só assim se compreende que, numa altura daquelas, a líder analfabeta desta seita preconizasse a edificação duma espécie de asilos, primeiro custeados pelos membros de direito da Comunidade que são os lavradores e, mais tarde, autossubsistentes. A fundação destes estabelecimentos iria permitir ainda aos lavradores expiarem o único crime que lhes era atribuível; o crime de “tirar marcos”:

“Se fizestes algum roubo ou tirastes marcos de noite restituí e ponde os marcos no seu lugar. E medi e avaliai o rendimento da terra que não era vossa e, com esse dinheiro, fundai um asilo para homens inválidos e pobres o outro para mulheres igualmente inválidas e pobres. Será esse o novo mundo e o verdadeiro paraíso terreal.”

Tinha também opiniões muito definidas sobre Deus e o cristianismo. Do ponto de vista das crenças, há que destacar em primeiro lugar o modo como a empresa messiânica da profetiza era apresentada nos seus sermões:

“O primeiro paraíso foi o do nosso pai Adão e da Primeira Eva mas durou pouco tempo. Estando muito estragada a humanidade, Deus a sepultou nas águas do diluvio deixando apenas o varão justo, Noé, para a continuar; mas continuando as prevaricações mandou Deus a Cristo com a Virgem que foi a Segunda Eva e muito fizeram para converter a humanidade pecadora mas deixaram a obra por acabar e por isso Deus me escolheu para Terceira Eva a fim de completar a obra da redempção e fazer voltar a humanidade à pureza e inocência de Adão antes da culpa.”

A esta dimensão milenarista e messiânica, junta-se a formulação de uma estranha cosmogonia inspirada, é certo, na cosmogonia católica, mas mantendo em relação a ela consideráveis distâncias. Vejamos alguns exemplos:

“Deus fez o mundo do nada e primeiramente fez o nada. Do nada formou a fala – da fala fez a ciência – da ciência fez a sabedoria – da sabedoria fez a doçura com que ela se havia de sustentar e a Virgem, – e da doçura fez o maná de que se sustentam os anjos no céu.

Depois formou a fé porque sem ela não podia formar o céu. Depois formou a esperança porque também sem a esperança não podia formar o céu.

E depois formou a caridade que vale tanto como a fé e a esperança reunidas.

Depois formou a concha que abriu em duas; – a do lado direito tinha o amor-perfeito, – e do lado esquerdo uma açucena que era a Virgem.

Eis aqui os dous grandes mistérios.

O amor-perfeito cresceu e botou uma lágrima que caiu como o orvalho e formou o olho da Divina Providência.

E o olho da Divina Providência formou o Espírito Santo.

E o Espírito Santo com o seu Divino Poder formou o Divino Padre Eterno.

E o divino Padre Eterno com ò seu poder formou o mundo com tudo o que nele se vê, – em seis dias, mas seis da divindade que são seis anos dos nossos.

E Deus formou Adão do coração da terra e lhe deu espírito, anjo e alma – o Espírito é o bafo, a alma é a saliva – e o anjo é a cruz que recebe com o batismo” (…) .

Tal como a cosmogonia pregada pela profetiza, nos rituais do movimento conjugam-se influências cristãs e católicas com práticas de difícil identificação. Aliás, mais do que na cosmogonia, essas práticas parecem ser muitas vezes uma paródia dos rituais católicos.

De facto, a crítica às hierarquias sociais tradicionais e à própria monarquia são contundentes:

“A raiz vale mais do que o tronco e do que os ramos da árvore. E o ramo da árvore é o rei, – o tronco são os fidalgos e a raiz é o povo. Logo o povo é mais que o rei”.

A crítica do poder monárquico atingirá aspetos mais radicais ao admitir-se que o rei podia ser substituído por um rei saído do povo.

“Os filhos dos reis são filhos de árvores venenosas” – pregava Maria Coroada, acrescentando ainda: “o rei que seja despótico e indolente é mau rei será tido e castigado como ladrão porque não custou mais a Deus o rei que outro qualquer ladrão.

E será despedido do trono para nunca mais poder sentar-se nele nem ele nem pessoa alguma da sua família.

E será escolhido novo rei tirado do povo e deverá ser artista”.

Os párocos escapam curiosamente às vivas críticas de que são alvo outros grupos de religiosos e nomeadamente as freiras. Destas dizia a profetiza:

“As freiras já não se lembram que disseram adeus ao imundo quando professaram e se meteram em um esquife. Não querem saber de sua regra nem dos seus votos, cometem muitos erros e muitos pecados (…). Sairão pois as freiras dos conventos e irão como mestras-régias ensinar de graça meninas de 3 até 9 anos.”

A Coroada explicava aos seus, em forma de sermão, o que era o céu, o inferno, e o purgatório, e o que lá tinha visto, nas diferentes viagens que dizia ter feito por aqueles mundos desconhecidos.

Para estas sermoas, lhe construíram seus irmãos, um púlpito, muito asseado. Arranjou um Padre-nosso, uma ave-maria, uma ladainha, e diferentes orações, e também inventou um modo particular de cada um se benzer.

Todos os participantes faziam prolongadas romarias, mesmo a localidades muito distantes, como, ao Senhor da Serra, junto de Coimbra, à Senhora dos Remédios, de Lamego, ao Bom Jesus do Monte, em Braga, assim como ao Senhor de Matosinhos, á Rainha Santa Isabel, de Coimbra, ao Senhor do Calvário, em Rezende e a outros santuários, e nisto gastavam muito dinheiro.

Quando ele se lhe acabava, pediam esmola, ao som de vários instrumentos (rabecas, violas e violões) todos feitos por eles, e cantando certas modinhas, e prelengas.

Duma vez, decidiram ir ao templo de Nossa Senhora da Conceição da Rocha, da freguesia de Carnaxide, próximo de Lisboa, e ali se demoraram sessenta dias!

Quando foram ao Senhor do Calvário de Resende, quiseram tirar a cruz ao Senhor, dizendo que tinham sido mandados ali, por Deus, para o aliviar daquele peso; o que não puderam conseguir, porque a isso se opuseram o sacristão e o pároco. Algumas destas romarias duravam 8, 10, e 12 meses.

Conforme referem Pinho Leal e o Abade de Miragaia no livro Maria Coroada ou o cisma da Granja do Tedo, que foi publicado no Porto, em 1879, com os pseudónimos de Patrício Lusitano e Pantaleão Froilaz, era então administrador do concelho de São Cosmado, José Correia da Costa Sampaio, da Vila de Goujoim, quando um belo dia, em 1847, este, à frente de uma guerrilha, foi a casa de José Custódio, na Granja do Tedo, e os seus apaniguados moeram com pauladas e pontapés todos os homens que puderam agarrar, e, levantando as saias às mulheres deram-lhes uma boa dúzia de açoites com bacalhaus e tenazes, ameaçando aquela pandilha, de lhes acabarem com a fadário e incendiar-lhe a casa, se continuassem com as suas actividades.

Foram-se ao trono e à dorna, ao púlpito, à roda dos quadros-vivos, ao rio Jordão, e a toda a mais trapalhada, e fizeram tudo em hastilhas! e levaram-lhes as bandeiras e  os livros da seita, que continham a sua doutrina e orações próprias.

Teria sido assim que terminou esta seita, e o ensinamento da força policial foi tão eficaz que os seus membros,tomaram tão grande medo, que cada um fugiu para a sua terra.

Nitidamente, esta história não tem sido muito bem contada até agora, porque a única fonte é o livro de Pinho Leal, e a sanha deste contra os membros desta seita era demasiado pessoal, na medida em que, além de ser um Militante Miguelista, que teve o seu pai assassinado em 1834, percebe-se que coloca o seu ódio pessoal numa versão sarcástica sobre factos que arruinaram a vida de uma família, pelo que ao ler o seu volume, um bom entendedor apercebe-se que se tratou de uma publicação para justificar atos tão cruéis de abuso de poder sem direito a julgamento nas leis que já vigoravam no país. Mesmo em tempos mais difíceis a inquisição dava ao réu algum direito de defesa.

Esclareça-se, por último, que Maria das Neves, a Coroada, depois da repressão de que foi vítima, regressou à Granja do Tedo, onde continuou a sua atividade de benta da aldeia, que já tinha antes, pois ainda muito nova tinha sido iniciada pela benta de Lumiares, aldeia próxima, do concelho de Armamar, agora muito em voga por causa de ser a pátria da única região de denominação de origem de cabrito em Portugal, o famoso cabritinho de Armamar.


Manuel Rodrigues Vaz (Portugal). Escritor e jornalista. Historiador de artes plásticas.


© Revista Triplov  .  Série Gótica .  Inverno 2017