Jack Kerouac, o anarquismo místico e a densidade da análise de Claudio Willer

 

CLAUDIO WILLER
Tributo


Por Adelto Gonçalves

 

O livro “Os Rebeldes: Geração Beat e Anarquismo Místico”
contém uma história imperdível e definidora do que foi a
contracultura no século 20

O poeta, ensaísta, crítico e tradutor Claudio Willer (1940), reconhecidamente o mais importante estudioso brasileiro da literatura beat e um dos mais finos representantes da atual geração de poetas, lançou em 2019 “Dias Ácidos, Noites Lisérgicas” (Editora Córrego), coletânea de crônicas, mas o que traz este articulista até aqui é o seu livro “Os Rebeldes: Geração Beat e Anarquismo Místico (Editora L&PM), uma história imperdível e definidora do que foi a contracultura no século 20. E que é de uma profundidade que nem mesmo os críticos e ensaístas americanos alcançaram, embora não tenham sido poucos os daquele país que examinaram a religiosidade e misticismo no âmbito da geração beat.

Escrita em português apurado e em estilo leve, de quem dedicou toda a vida a atividades culturais e chegou a pós-doutor já com os cabelos encanecidos, esta obra não só conta a história de cada um dos principais representantes daquele movimento como mergulha nas experiências artísticas de seus personagens para desvendar as influências que marcaram esse movimento que se iniciou a partir de 1943/1944.

Detém-se, porém, especialmente sobre a obra de Jack Kerouac (1922-1969), escritor de ascendência franco-canadense, autor de On the Road (1957), obra considerada a bíblia do movimento hippie, sem deixar de focalizar suas afinidades e relações com outros expoentes do movimento, como William Burroughs (1914-1997), Allen Ginsberg (1926-1997), Gregory Corso (1930-2001), Michael McClure (1932-2020), Diana Di Prima (1934), Gary Snyder (1930) e Lawrence Ferlinghetti (1919).

Definida a filosofia da geração como produto de um anarquismo místico, Willer procura recuperar a história de Jack Kerouac, que seria o porta-voz daquele movimento, “um rebelde que nunca pactuou com a exploração e a injustiça”, além de ter sempre abominado todo tipo de elite e autoridade.  Mas adverte que a cosmovisão tradicionalista de Kerouac se traduz em reverência diante dos vagabundos errantes, e de índios, negros e integrantes de culturas arcaicas, como os esquimós, aos quais visitou na Groenlândia em sua primeira viagem de navio.

Segundo Willer, qualquer um desses marginais com relação à civilização ocidental equivalia, para Kerouac, aos felás ou fellaheen do alemão Oswald Spengler (1880-1936), mas com uma exceção: a visão que este filósofo tinha das culturas arcaicas seria elitista, pois dotada de um profundo desprezo pelas “massas”, enquanto a do escritor americano reverenciava a plebe, ou seja, aqueles que pertencem à base da pirâmide social.

Firmado em extensa base teórica, Willer, familiarizado com a geração beat há décadas, pôde dedicar-se a estudar a obra de Jack Kerouac, que ocupa a maior parte deste ensaio. Tanto que, na bibliografia, constam 25 livros de Kerouac publicados em inglês ou em português, além de uma entrevista dada para a Paris Review nº 41, em 1968, que está na Internet. Ao mesmo tempo, o ensaísta analisa a pluralidade religiosa, política e literária que uniu os autores ligados ao movimento, observando que, pela primeira vez, aquela rebelião artística não teria sido comandada por burgueses dissidentes ou aristocratas excêntricos, mas por proletários e lumpens, ou seja, mendigos, marginais, subempregados, artistas boêmios e outros representantes do estrato inferior da sociedade.

Como mostra Willer, embora não possa ser considerado um movimento religioso, a geração beat foi influenciada pelo budismo, hinduísmo, taoísmo e outras correntes, pois fundamentada em poetas que se relacionaram com tradições místicas, esotéricas e ocultistas, em especial o inglês William Blake (1757-1827), o francês Arthur Rimbaud  (1854-1891) e o irlandês William Butler Yeats (1865-1939). Outra influência veio do anarquismo como contraponto aos dois blocos que sustentavam a Guerra Fria (1947-1991), o monoteísmo institucional e o materialismo ortodoxo, ou seja, o capitalismo representado pelos Estados Unidos e o comunismo pela União Soviética.

Esse anarquismo, porém, pouco tinha a ver com aquele que teve forte influência na Espanha, até a chegada do general Francisco Franco (1892-1975) ao poder em 1936, e que propunha uma sociedade de liberdades individuais, sem autoridade ou poder estatal, baseada na ajuda mútua e voluntária. Para Willer, o anarquismo beat seria uma terceira via, “aquela da religião pessoal, do sincretismo, pluralismo e heterodoxia; da liberdade, inclusive no modo de relacionar-se com a esfera transcendental ou com camadas mais profundas do próprio ser”.

Como lembra o autor em nota introdutória, este denso ensaio foi preparado durante seu pós-doutoramento em Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), sobre o tema “Religiões estranhas, misticismo e poesia”, concluído em 2011. Em 2008, já havia obtido o título de doutor em Letras na mesma instituição, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, com a tese “Um Obscuro Encanto: Gnose, Gnosticismo e a Poesia Moderna”, publicada pelas Editora Civilização Brasileira em 2010. Aproveitando sua passagem pela USP, como professor convidado, deu curso de pós-graduação sobre surrealismo e outro de extensão cultural sobre a geração beat.


Jornal Opção, Goiânia, domingo 25 outubro 2020


C.W.: Biobibliografia


revista triplov

SÉRIE VIRIDAE . NÚMERO  04: CLAUDIO WILLER

portugal . fevereiro . 2022