Por um
mecanismo de defesa inconsciente, a
afastar-me da minha própria amargura, a
memória trouxe até mim o pintor. Tinha de o
encontrar, era a ele que buscava e não à
visão da minha íntima ruína. Onde estaria?
Chegam-me aos ouvidos bocados de conversa a
faiscar de referências cultas, eles mesmos
rostos cintilantes, conhecidos do teatro,
cinema, televisão, jornais, música.
Música... Talvez o amor seja um oceano,
cheio de conflitos e sofrimento... Porquê
reter assim no ouvido dois versos, de uma
forma tão obsessiva? Começavam a irritar-me
na sua adocicada insistência. Como se
insinuassem que devia concentrar-me nela, na
morta, morta enquanto ouvia música. Ouviria?
Gravava, ela estava a gravar... Gravava que
música? Tinha de lá voltar, precisava de
descobrir pistas que me levassem até à
cassette. Uma pessoa que morre de
auscultadores na cabeça e microfone na mão
não está só a ouvir música, está a gravar. A
menos que cantasse, gravasse a sua própria
música. Só ouvindo a cassette, para
verificar. Estava cansado, cansado de mim,
de me ouvir intimamente. E os outros,
também. Pareciam todos muito cansados, mal
agitando o pé nos bancos altos ao ritmo do
reggae. Bob Marley a pairar sobre o fumo
denso. No chão, sentado entre um casal de
jovens, um rapazinho de olhos pisados e
muitos anéis no cabelo dá largas à sua sua
emoção:
— Eu sou da
geração pós-moderna... — geme. — Nunca me
senti mais isolado em toda a minha vida!...
— É da
cerveja, pá! — mitiga a moça, sentando-se na
posição do lótus. — Não tens feito outra
coisa a não ser beberl
Junto do bar,
numa clareira aberta sob jorros de luz, há
quem dance. Beatificamente, os pés imóveis,
o corpo mal oscilando numa possível aragem
de agitar um junco. De cabeças tombadas
sobre o ombro, ou deixando cair os cabelos
ao longo dos seios. Ninguém dança com
ninguém, suspendem-se da música, espectrais,
como folhas murchas de begónia. Se
assoprasse, talvez o meu bafo os levasse a
cair, a desmoronar-se na areia, frágeis
castelos de cartas. Como eu. Bob Marley
enche o ar com os sons do seu amor
jamaicano.
Bob Marley,
«One love»
Devia estar
numa fase depressiva, e não era caso para
menos. A noite só me trazia encontros
difíceis, visão de precaridade, infortúnio.
Tudo se me afigurava antiquado, mortiço,
decadente. E o clamor da minha própria
infelicidade, numa torrente de água, a
inundar tudo. Por um tempo julguei ser
possível reconciliar-me com a Xandra... Não,
estás louco, Eduardo? Saiu-me pela boca fora
o desabafo, olham todos para mim. Estou a
confundi-las de novo, como se a Marta, minha
ex-mulher, fosse a pintora morta, como se o
caso criminal a desafiar-me fosse, através
de Xandra, a pintora, o da minha mulher...
Vou sair daqui um pouco, sinto-me atordoado.
Não comi nada hoje, ainda, só bebi umas
cervejas, tenho de ir comer um prego a
qualquer lado ou abato-me aqui diante de
todos.
A minha mulher
deixava-me, sob o abraço de outro. Os meus
projectos de futuro descoloridos, um nó no
peito a apertar, talvez chorar me aliviasse.
Diana Ross, «Pieces
of ice»
Consegui sair
do Fragilidades de ombros direitos, sem desarmar. Isto não é
atitude de polícia, Eduardo! - censurava-me.
Sentia-me num estado deplorável, até as mãos
me tremiam. Fui descendo as ruelas do Bairro
Alto, escolhi as mais escuras. No Chiado,
subi as escadas da Igreja do Loreto. Se
estivesse aberta, teria entrado. Ao fundo
das escadas, mal estacionado, um carro da
campanha Pintasilgo à Presidência, com o
arco-íris iluminado pelo foco da lua. Uma
lua cheia brilhante, desejável como o Graal
a que se acolhia o movimento de mulheres
lideradas pela candidata. Ia
votar nela, sim. Quem, com mais razões do
que eu, podia aliar-se a essa mulher que
falava de sentimentos e de cultura? Mais
sentido e sensível do que eu, não conheço. E
quanto a cultura, estou de acordo com ela em que
é anterior à economia e à política, por isso
deve ser tratada como assunto fundamental.
Isto discorrendo, acolhi-me
ao portal da igreja,
abrigando-me da chuvinha leve e
fina que teimava em cair. Depois, acocorado,
concordando ainda com a ministra que se
propunha elevar-se a presidente da
república, em que o acto político é um acto
de cultura, escondi a cabeça entre os
braços e pus-me a chorar. Chorar também é um
acto de cultura, não será? Do rádio do carro
pintado com o arco-íris saía a bem modulada voz de João
David Nunes, a anunciar a próxima canção: «Pieces
of ice».
Então, ao som das muito sibilantes pedrinhas de gelo
da Diana Ross chorei desabalada e convulsivamente, chorei até
sair a pomba, chorei até o corvo sair da
arca de Noé. Quando acabei, senti a noite muito mais
clara, nítida e desanuviada.
Revista de
Artes, Religiões e Ciências,
nº 03 | Janeiro de 2010
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947) Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com