TENHO BARCOS TENHO REMOS
O barco aludido pertencia a uma pequena sociedade constituída por Manuel Pité, António Barahona, António Bronze & José Afonso. Situações vividas pelos quatro, em comunidade perfeita com o mar algarvio, agrupando-se numa espécie de ciclo fraterno, representativo de uma das fases mais felizes da vida do autor.
ALTOS CASTELOS
Para ser executada à viola por Rui Pato; obedecia mais às exigências duma instrumentação de tipo clássico, ao gosto dos tocadores de alaúde do século XVI. Limitei-me depois a reajustar uma letra, ou melhor, um conjunto de sons que não ultrapassasse na divisão silábica a divisão musical. A ingenuidade de certas canções de roda e a gratuidade der alguns poemas surrealistas (lembrei-me duma canção de António Barahona) indicaram-me o sentido do conjunto apropriado ao canto.
O TECTO DO MENDIGO
Letra concebida em estado de penúria física e mental. O franciscanismo aparece no texto musicado como uma doutrina de compensação sem qualquer relação directa com a camisa lavada do autor.
MARIA
O conhecimento da Zélia, num lugar do Algarve, reconciliou-me com a água fresca e com os tons maiores. Passei a fazer canções maiores.
POR AQUELE CAMINHO
Lourenço Marques, 1965. Versos destinados à página literária de «Voz de Moçambique». A música peca por manifesta ausência de identificação com o espírito dos ritmos e dos temas africanos.
O CAVALEIRO E O ANJO
Nasceu a bordo do «Angola», num estado de espírito que excluía qualquer veleidade criadora. O personagem aparece de relance, indeciso entre ficar na hospedaria e partir a coberto da noite, mas em segurança. O mais difícil é ficar. É no interior da hospedaria, guardada à vista pelos «Botas Cardadas», que o espectro decide permanecer e readquirir as suas humanas e verdadeiras dimensões.
CANÇÃO DEO DESTERRO
(Emigrantes)
Sugerida em Lourenço Marques, pela leitura dum artigo da Seara Nova sobre as causas da emigração portuguesa. Tenta-se evocar a odisseia dos forçados actuais, partindo em modernas naus catrinetas, como os Mendes Pintos de outras épocas, a caminho dum destino que na História se repete como um dobre de finados.
RONDA DOS PAISANOS
A música ocorreu-me no WC do rápido Faro-Lisboa, depois da estação da Funchaleira. Lembrei-me de algumas, semelhantes na forma e diferentes no seu conteúdo picaresco: D. Miquelina tinha uma sobrinha, Conheci uma francesa, Ó moleiro guarda a filha (esta última, minhota), cantadas em coro nos grandes festins coimbrões. Em Lisboa, inteirei-me dos postos do exército, que são muitos e soantes. Rimados às parelhas dariam uma canção popular, capaz de ser entendida por soldados e generais.
NA FONTE ESTÁ LIANOR
O arcaísmo repetitivo da melodia coadunava-se, a meu ver, com o espírito de uma redondilha do cancioneiro de Garcia de Resende, mas a métrica depurada da «medida nova» raramente se adaptava à chateza vagamente afadistada da composição. «Cantiga partindo-se» e a redondilha dentro da música não seriam uma ofensa à lírica camoniana, mas pequena e despretensiosa homenagem prestada, a séculos de distância, ao génio do seu autor.
VAMPIROS
Numa viagem que fiz a Coimbra, apercebi-me da inutilidade de se cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso music-hall de exportação. Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção, cuja actualidade poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez do distrair. Foi essa a intenção que orientou a génese de «Vampiros», entidades destinadas ao desempenho duma função essencialmente laxante ao contrário do que poderá supor o ouvinte menos atento. A fauna hiper-nutrida de alguns parasitas do sangue alheio serviu de bode espiatório. Descarreguei a bílis e fiz uma canção para servir de pasto às aranhas e às moscas. Casualmente acabou-se-me o dinheiro e fiquei em Pombal com um amigo chamado Pité. A noite apanhou-nos desprevenidos e enregelados num pinhal que me lembrou o do rei e outros ambientes brr herdados do velho testamento.
AVENIDA DE ANGOLA
(Lourenço Marques)
Adaptação de um antigo poema.
VEJAM BEM
Música do filme «O Anúncio», a apresentar no Festival de Cinema Amador, pelo Cineclube da Beira. O filme foi projectado,em sessão privada, ainda incompleto, e sem diálogos. Um homem procura emprego num escritório, dirige-se ao gerente de uma firma conceituada, a capatazes e mestres-de-obras. Em vão! Privado de fundos, vê-se obrigado a dormir ao relento e a roubar para comer. Na retrete de um restaurante, único lugar onde não é visto, devora apressadamente dois ovos que metera no bolso, aproveitando-se da algazarra geral. É à luz deste contexto dramático que poderão entender-se a linha melódica e o texto rimado, apensos às sequências julgadas mais expressiva.
In: Cantares