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José Augusto Mourão (UNL-DCC)
EM TORNO DE UM TEXTO TEÓRICO DE
A. RAMOS ROSA

A palavra e o silêncio (a estratégia do signo)

 

La parole vraie, celle qui signifie, qui rend enfin présente "l´absence de tout bouquet" et délivre le sens captif dans la chose, elle n´est, au regard de l´usage empirique, que silence, puisqu´elle ne va pas jusqu´au nom commun. Merleau-Ponty

O desvendamento e a aletheia. Esta e o logos são uma
e a mesma coisa.
Heidegger

À l´ensemencement de la vague et de l´onde, comme au commencement du monde, est l´écho du tohu-bohu. M. Serres

 

No princípio não existe o silêncio, não existe a palavra: é o tohu wabohu tehom que é tumulto e vazio, abismo e trevas. A natureza não canta, a noite não se cala. Do começo que o homem forja a sua linguagem. Vitória do homem sobre as coisas, nomeação do real, e a seguir apelo, ex-posição e posicionamento do outro. Daí começou o homem a aprender a conjugar as palavras: combate como o de dois corpos que se procuram, de duas vozes alternadas que se chamam. A palavra tornou-se diálogo. E é então que a palavra ensina o silêncio.

É verdade que o pensamento ocidental não suporta, não suportou nunca o vazio da significação, o não-lugar e o não-valor. Falta-lhe uma tópica e uma económica (1). Ora é daí que Ramos Rosa fala: do vazio, como condição do acontecimento da palavra poética.

"...movimento criador...turbilhonante negatividade, ou seja, ao vazio da criação".

" A palavra nasceu do adensar-se do silêncio, dele e contra ele...".

A palavra é então um animal vivo (ciclo do cavalo), um lugar de combate contra si mesma - do silêncio e contra ele. Encenação de um gesto, um acto (ins-crever) e virtualização do seu objecto: o corpo. A escrita transporta os traços de morte da sua efectuação como um nascituro. Donde o falar-se de "turbilhonante negatividade". Do negativo duma diferença, como diria P. Beauchamp: o escrito, letra estreita e vazia, define-se como o continente que não contém nada (2).

No princípio não existe o silêncio, não existe a palavra. Não, no princípio não era o verbo: o verbo vem onde é esperado. Escreve-se antes de mais através de uma vaga de música, uma vaga de fundo que vem do barulho de fundo, que vem de todo o corpo talvez, e talvez do fundo da alma ou da porta da sala, ou dos últimos amores, portadora do seu ritmo complicado, do seu tempo simples, das suas linhas melódicas, flutuação doce, queda partida. Não se pode apertar a sua pena sem que isso, que não tem verbo ainda, voe. No começo é o canto (3). O que quer também dizer que não se entra no mundo da significância senão através da escuta dessa "turbilhonante negatividade". Significar é obedecer (de ob-audire ). O funcionamento da escrita ilumina simultaneamente a relação nocturna do espírito com o invisível: o vazio é uma plenitude porque o múltiplo ilude o desejo, escapa e é substituído por uma totalidade que promete o repouso (4) e com o visível, a concreção duma forma: Esta escrita dita "representativa" pareceu-me pertencer não à criação dum pensamento, mas à de um acto, de um trabalho realizado por um gesto da mão. Este gesto permite não dissolver, cair no estupor ou na loucura, criar uma actividade de representação e estabelecer um espaço em que, por pouco que seja, "eu" pode acontecer. Trata-se portanto do recurso a um movimento do corpo, que "faz entrar" no psíquico, ou ainda da impressão, de um traço graças ao qual se inscreve num objecto terceiro, (uma superfície), uma representação (5).

No começo, a tábua rasa é o momento em que somos confrontados com uma textura de vida, com um texto: nesse momento, um princípio organiza o impacte daquilo que me acontece, daquilo que se me oferece ou me acontece. Um princípio organiza o ompacte daquilo que me acontece sobre aquilo que recebi de conhecimento por herança. É isso o trabalho do originário. Liberta-nos do fascínio do original, do fascínio da "cena primitiva", dessa tentação sempre prestes a enganar-nos de procurar naquilo que se passou antes a explicação daquilo que agora é. Estudar e escrutar os actos do passado é descobrir sabedorias antigas em que se praticou já o trabalho do originário. São essas sabedorias que nos salvam dos tradicionalismos em voga.

É este vazio da repetição que, segundo Lévy-Strauss significa a significação (6). A repetição pois, como princípio da significação, de que testemunha a rima, a paronomase, a aliteração, etc., justificam o princípio deste texto, entendido como um jogo de significantes que se se cor-respondem. Bloco é uma matriz vazia de onde partem as várias moidelizações e derivações textuais. Forma totalmente vazia (de mensagem), esse primeiro significante poré,, não produz significância senão percorrendo, em zig-zag, é certo, os graus obrigatórios da mimese. A paranomase é um dos jogos de palavras que, operando com a obliquidade, dela extrai a variação significante da própria mimese. Dessa semiose introversiva resultam sentidos não pre-vistos nem sabidos antes, deslocados do sentido, que é a informação fornecida pelo texto ao nível mimético. O uso da paronomase, seja ela fónica ou paradigmática ("bloco, dizia, onde ecoa o eco da defrontação"; "ânsia, opressão, estacada pressa") sustenta-se "de uma lógica que abre para semelhanças e onde, na ruptura aberta pela sua conjunção nada se representa que pudesse passar por um significante" (7).

As palavras como que se chamam umas às outras, repetindo-se, através de afinidades fónicas, semânticas, sintagmáticas sem fim, referidas exclusivamente ao próprio movimento de "rotação dos signos" e ao turbilhão que os aspira. Neste movimento sem fim que leva o texto à deriva, à significância, lê-se, em filigrana, o desespero da cadeia significante que não consegue sedimentar no vazio, é o apelo de novo e em compromisso com a sobredeterminação mimética. Trabalho poético de motivação dos signos, é luta contra o acaso e contra a limitação do arbitrário.

Tirar do esquecimento ( aletheia ), da obscuridade, do silêncio e logo da inexistência as palavras, é isso criar, dar o ser: o logos coloca-se diante da preença e depõe, quer dizer, re-pousa, a coisa presente na presença. (...) Na medida em que o logos deixa estendido diante, como tal, aquilo que se estende-diante, desvela a coisa presente na sua presença. Ora, o desvendamento é a aletheia. Esta e o logos são uma e mesma coisa (8).

Só que na perspectiva de Ramos Rosa ou dos teóricos modernos da literatura, este processo de desvendamento das coisas (criação) deixou de ter uma origem religiosa (o homem é a medida de todas as coisas - Protágoras). Não encontramos aqui a posição mística que é a de saber se se pode nascer da palavra de um Outro: o poema é o que responde a esta questão. Ramos Rosa segue neste seu passo a teoria heideggeriana do "es gibt" (na dupla significação de "existe" e "isto dá"): onde há poema há palavra e isso dá a palavra. A poesia não nasce, gera. Ela é começo, alteridade que se coloca com uma tal necessidade que funda nomeando, sem que nada de exterior a ela a confirme ou autoriza. O poema é uma palavra dada ao homem. Escutando-a, podem-se tirar sentidos diversos, significações múltiplas, mas isso começa por um significante fundador que é o poema: Não há que procurar coisas espirituais, só há estruturas do vazio (9).

Que o texto é um conflito, di-lo de vários modos Ramos Rosa: "defrontação com a brancura da página", "ânsia", "opressão", "violência", como o dissera já Meschonnic: Um texto é um conflito, porque a linguagem (veicular, descontínua) é relação, distância (sempre já começada, mesmo no pictograma, do referente com o signo) e que a escrita é relação com esta relação, distância relativamente a esta distância, para reencontrar a participação com o mundo. Mesmo se este movimento é apenas um texto dentro da intertextualidade, é movimento para um referente através de um significante: em Raymond Russel , ou o H em "Les Travailleurs de la mer". Mas como a escrita é inteiramente interior à própria linguagem, vive de ser uma contradição e que é contradição também para uma posição crítica, instrumentos conceptuais: a forma-sentido, o espaço para-gramático .

O que este conflito denuncia é concretamente o trabalho de formalização de figurabilidade que começa com a negatividade: a simbolicidade é apenas o Ser-simbólico do Simbólico: ela é simultaneamente o começo e o fim da simbolização que nunca acaba e necessita sempre da lei, isto é uma negação como determinação, a negação por excelência: "Não matarás" (10).

Mas, se a negação for, como pretende Chomsky, por exemplo, apenas uma das muitas possíveis transformações de superfície? O Trabalho sobre a estrutura de profundidade da linguagem é "tautológico, simples, separado e repetitivo"? Des-dita, forma de ausência, criação da ausência pela não-afirmação, e por isso mesmo lugar do múltiplo. Lugar da rarefacção do dito (enunciado) da língua, da aparição do dizer (enunciação), vazio criador do possível narrativo: "Entre a indeterminação da possibilidade e a vertigem dela"?

Da lacuna, lugar vago, vazio, se desenha o horizonte da expectativa do leitor, contrariando a conexão ordinária que ele está habituado a estabelecer com as coisas e o mundo. Trabalho de negação também - produção de espaços vazios estimulantes de criação. Entre a palavra e o silêncio, uma poesia concreta? (11) Algo como o trabalho do sonho, composto por condensações e deslocações. A condensação não é uma compressão que seria o modelo reduzido ou a projecção ponto por ponto do pensamento do sonho, mas uma condensação por omissão, uma restituição essencialmente lacunar. Manifesta-se no descentramento do sonho, sobretudo em relação à palavra essencial, como a palavra "botânico", no sonho da monografia botânica: o que opera é a trasnferência das intensidades psíquicas dos diferentes elementos do sonho e a sua deslocação: aquilo que mais fala é a letra do discurso.

A estratégia do signo (representação, na tradição logocêntrica ocidental) consiste em instaurar-se como presença de uma ausência.

A escrita desmascara esta estratégia, a operação negadora dos signos, negando-a (representando-a). Efectivamente, a escrita é representação de representação, quer dizer desconstrução activa do signo no que ele tem de ilusão representativa: instaurar-se como presença de uma ausência, significante de um significado. Através desta operação, o signo torna-se apenas em traço significante de um significante. A escrita é entaão um combate contra a ilusão da linguagem: toda a imagem representada no seu papel de imagem (de ídolo), quer dizer, na sua inadequação mais fundamental: Mas o discurso que significa também o impossível do empreendimento linguístico - não é aquilo a que se chama uma escrita (12).

Representar uma forma, encontrar a palavra que nomeia as coisas e afasta delas, é essencialmente uma operação de (de)limitação, logo de ordenação do caos. Astucioso princípio de mimese: a significância imprime-se, exprime-se obliquamente á língua, sempre ameaçada pelo regresso ao sentido: Se a hipótese dum caos primeiro não se deve reter, como não se deve reter a hipótese de uma harmonia preestabelecida, sendo um e outro assintóticos e teóricos, não é menos verdade que o caos e a harmonia constituem dois modos limite de existência para os quais é possível tender (13).

Parece, pois determinante para a sobrevivência psíquica do sujeito esta arrumação do caos, um mínimo de chão a que agarrar-se. A inscrição de uma forma, traça e marca uma diferença que lhe permite resistir à fragmentação insuportável e à morte.

O estilo exprime o protesto, a vinganç, a permanância do Eu ideal confrontado com os constrangimentos que o superego tenta impor ao Eu: O estilo funciona em relação à escrita como a figuração simbólica em relação ao sonho: permite contornar as duas censuras (...) realizar o desejo, inscrever no texto os vividos corporais. Determinadas figuras de estilo retiram a sua força das suas referências a sensações ou a uma simbólica corporal (14).

O estilo reintroduz a mensagem simbólica na língua convencional, através das ténicas que esta fornece. Não admira que os estilistas e os teóricos do estruturalismo da linguística tenham caracterizado a mensagem através da metáfora e da metonímia, que correspondem ma língua convencional à semelhança e à contiguidade, fundamentais na expressão simbólica. O poder do estilo reside naquilo a que D. Anzieu chama a ilusão simbólica. A criança que em cada adulto dorme, aceita mal, depois de ter crescido e ter aprendido a falar segundo o código da linguagem materna, o arbitrário que liga o significado ao significante, conservando a nostalgia dos sistemas de comunicação infra-linguísticos e da relação simbólica entre os signos e os seus referentes. A ilusão simbólica é o sonho de uma língua em que a palavra se assemelhe à coisa ou seja parte constitutiva dela.

(1) J. Baudrillard , L´échange symbolique et la mort . Paris, Gallimard, 1970, p. 337.

(2) Paul Beauchamp. L'Un et l'Autre Testament . Paris, Seuil, 1976, p. 192.

(3) Michel Seres, Genèse, Paris, Grasset/Fasquelle, 1982, p. 221.

(4) P. Beaucahmp, op. cit. , p. 151.

(5) M. Enriquez, "L'indicible et l'écriture", Topique. Revue Freudienne , 21, 1978, p. 53.

(6) Lévy- Strauss, Le cru et le cuit - Mythologiques, Paris, Plon, T. I, 1964, p. 46.

(7) P. Marie, J. M. Prieur, "Freudaineries" in Folle verité. Verité et vraisemblance du texte psychotique, Paris, Seuil, 1978, p. 86.

(8) M. Heidegger, Logos", in Essais et Conférences , Paris, 1968, p. 267.

(9) Michel de Certeau, "La folie de la vision", in Esprit , Junho 1982, p.99.

(10) Krémer-Marietti, op. cit., p. 218.

(11) Ana Hatherly, "Notas para uma teoria do silêncio como negação", in Jornal de Letras , nº 10, p. 12.

(12) Julia Kristeva, in Folle verité, op. cit., p. 119.

(13) M. Enriquez, art. cit., p. 53.

(14) Didier Anzieu, "Les traces du corps dans l´écriture", in D. Anzieu et al., Psychanalyse et langage, pp. 181-184. Cf. Ella Sharp, "Mécanismes du rêve et procédés poétiques", 1937, trad. franc. Nouvelle Revue de Psychanalyse , nº 5, 1972, pp. 101-114.