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José Augusto Mourão (UNL-DCC)
EM TORNO DE UM TEXTO TEÓRICO DE
A. RAMOS ROSA

A noção de autonomia

 

O que ligava os futuristas aos teóricos da linguagem poética era a presença do inimigo comum: os simbolistas. Tratava-se de "libertar as palavras", seja dos entraves do pensamento filosófico ou religioso, seja dos antolhos da sintaxe e do uso habitual da língua. Esta atitude formalista mostra que expressões como "nova visão", "actualização", "alienação", são aspectos diferentes do conceito de autonomia: referem-se todas à autonomia da palavra (e da escrita) relativamente ao culto e à ideologia. A noção de autonomia ocupa o centro da teoria formalista. Para Mukarovsky por exemplo, os signos verbais poéticos contêm em si mesmos a sua própria finalidade (são autónomos), portanto incomensuráveis com os signos da linguagem lógica (da linguagem da comunicação) em que as palavras são meios de troca: A autonomia estética da expressão, que não caracteriza apenas a expressão linguística ou poética mas todas as artes e todo os produtos estéticos, é um fenómeno qualitativamente diferente do esforço lógico formal (1). Julia Kristeva, na Revolução da linguagem poética , desenvolve as teorias que têm que ver com o carácter não-lógico da escrita ficcional, chegando à conclusão que toda a poesia moderna obedece a um princípio mimético que resiste à denotação comunicativa e ao sentido: Nisto, a linguagem poética moderna vai mais longe do que toda a mimese clássica (teatral ou romanesca): ataca não somente a denotação (posição de objecto) como o sentido (posição do sujeito que enuncia (2).

Para R. Jakobson, é o papel constringente, determinante que desempenha em poesia o seu fito autotélico, que a diferencia dos enunciados em que os procedientos de similaridade são inconscientes ou utilizados para apoiar uma outra função do discurso. O que é outra maneira de falar da função poética da linguagem (literaridade): o objecto da ciência da literatura não é a literatura mas a literaridade, quer dizer, o que faz de uma determinada obra uma obra literária (3). Opacidade, automorfismo e autotelicidade, são os caracteres estruturais peculiares ao discurso literário. O conflito que o discurso da poesia instaura pode encenar-se como isto: ou ouvir as palavras literalmente em todos os sentidos, ou ouvi-las simbolicamente, como ecoa ainda no discurso de Ramos Rosa:

Tentemos agora a nossa leitura literal apoiando-nos na própria dinâmica materializadora dos significantes...e afastando-nos da leitura simbólica dos significados (p. 49 e p. 50).

É inegável a sua referência ao formalismo russo e à fórmula que há cinquenta anos assinalou a primeira tendência moderna nos estudos literários: estudar a literaridade e não a literatura. De par com a noção de autonomia anda ligada a contrariedade da expressão, da genealidade romântica ou da expressão da personalidade do autor. É a estrutura da obra e a distanciação que a escrita cria, que nos dão o mundo do texto. A questão é então a seguinte: que acontece à referência quando o discurso se torna texto? Não é de facto ler os versos de Pedro Tamen fora da da produção autónoma do texto:

O verso não exprime nada, surge do nada, da suspensão até de todo o real, realiza essa mesma suspensão de que partiu, vai ao extremo de si, figura o seu próprio movimento que é o da sua temporalização, não é nada do mundo nem diz nada do mundo, mas na sua inanidade e ausência de significação, que é o seu vazio, abre o mundo e produz o sentido, cria a criação (p. 49).

O gesto husserliano da épochè tem a vantagem de ser um significante que resiste na sua obscuridade àquilo que uma consciência demasiado ciosa de claridade quizesse fazer-lhe dizer na tradução do seu significado. A époché é um procedimento que obriga a respeitar a manifestação da consciência na sua imanência. Para Husserl, todo o objeto do mundo é transcendente no sentido em que o seu mistério permanece, mesmo no interior da experiência que dele fazemos. Em si próprio subsiste, independentemente da atenção que lhe prestemos. Aquilo a que se chamou "a redução fenomenológica" é um idealismo, na medida em que Husserl nos propõe começar por "reduzir" os objectos do mundo "natural". Mas se a époché é necessária, não são os objectos do mundo natural que é preciso colocar entre parêntesis. Os parêntesis não resguardam objectos, mas a "atitude natural" que pretende tomar estes objetos pelo que de imediato nos é dado (o realismo). As coisas do mundo são para Husserl "a tese do mundo", que distingue deste modo o valor transcendente destes objectos da função transcendental da consciência que faz a sua experiência. A redução fenomenológica é menos um parti pris idealista do que uma recusa da "atitude natural", dmasiado objectivista. Este procedimento é um ponto prévio necessário à questão de saber qual é o estatuto autónomo do objecto sobre o qual incide a operação de conhecimento (a tese do mundo). A redução suprime uma limitação da consciência libertando a sua envergadura absoluta, como Ricoeur sublinha (4).

É evidente a conivência existente entre a semiótica literária e Husserl, no que concerne ao "parti pris" da regra da imanência. Trata-se de libertar o texto, nos dois casos. Esta leitura fracassa cada vez que se tenta uma explicação do texto referindo-se expressões do texto a coisas no mundo: é uma atitude natural votada ao fracasso. Os conhecimentos adquiridos dos objectos ou dos estados do mundo natural não são dados imediatos que se imponham á cosnciência, mesmo se tentam impor-se a ela para "fazer verdade". A exploração da materialidade do significante para assinalar a verdade do significado e o exaurimento da referencialidade do texto literário ao mundo empírico são poderosos meios da conotação veridictória. Greimas considerava o conceito de conotação uma etiqueta cómoda: esquece-se que uma conotação não é um simples efeito de sentido secundário, mas que ela possui a sua estrutura de signo e integra-se por isso numa "linguagem" conotativa. A linguagem de conotação é um meta-semiótica oblíqua, desviante em relação à semiótica (5).

Com a escrita, não há mais situação comum ao escritor e ao leitor; logo, as condições concretas do acto de mostrar já não existem. É a abolição do carácter mostrativo ou ostensivo da referência que torna possível o fenómeno "literatura", onde toda a referência à realidade pode ser abolida. É a glorificação da própria linguagem, contrariamente à função referencial do discurso ordinário. A escrita torna-se espectáculo. Ou como diz P. Macherey, a obra literária é produto de uma ruptura: com ela nasce algo de novo. A especificidade da obra é também a sua autonomia. Dizer autonomia contudo, não é dizer independência absoluta, epifania radical. A poética de Ramos Rosa, ligada ao milagre de fazer surgir a partir do nada ("surge do nada" -p 49) a obra literária, não deixa de pôr alguns problemas: o da autonomia da obra de arte e a sua função social, o da relação entre literatura e ideologia em particular.

A indiferença em relação aos múltiplos vínculos da arte com a cultura e a sociedade - ainda que se fale de "materialização linguística do texto", enquanto emancipação da palavra da denotação, evidenciação do corpo da mensagem verbal - é falar ainda em termos de "objectividade", em contraponto com a subjectivação própria do lirismo. Matéria-prima ou objecto (criação da criação ou metalinguagem), o fenómeno literário é um sistema semântico minimamente conotativo, e indissociável do ângulo soiológico, nunca redutível ao linguístico de que ela é apenas um uso num determinado campo social. Numa palavra, a mensagem literária segrega uma significação que é sempre sintomatológica. Barthes dizia: O artista não tem moral, mas tem uma moralidade. Na sua obra, há essas questões: que são os outros para mim? Como devo eu desejá-los? Como devo eu prestar-me ao seu desejo? Como se comportar diante deles? Ao enunciar cada vez uma "visão subtil do mundo" (Tao), o artista compõe o que é alegado (ou recusado) pela sua cultura, e oq ue insiste a partir do seu próprio corpo; o que é evitado, o que é evocado, o que repetido, ou ainda: proibido/desejado: eis o paradigma que, como duas pernas, faz andar o artista, enquanto produtor (6).

(1) Carnap, in Pour une sociologie du texte littéraire, p. 259; cf. P. Dumouchel, "Mimétisme et autonomie", in L´auto-régulation. De la physique au politique , dir. P. Dumouchel et J.P. Dupuy, paris, Seuil, 1983, pp. 353-371.

(2) Julia Kristeva, La révolution du langage poétique, Paris, Seuil, 1977, p. 58.

(3) R. Jakobson, Huits questions de poétique , Paris, Seuil, col. Points. 1977, p. 16.

(4) P. Ricoeur, Introduction, Idées directrices pour une phénoménologie , Paris, Gallimard 1950, p. XVIII.

(5) A. J. Greimas, Du Sens II, Paris, Seuil, 1983, p. 106.

(6) Roland Barthes, L´obvie et l´obtus, Paris, Seuil, p. 159.