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::::::::::::JOÃO RASTEIRO
Tríptico da Criação

INDEX
Do extermínio II
O território dos anjos

Elegia do esquecimento

Elegia do esquecimento
Ao Miguel Torga

Não te conhecerá a víbora ou as oliveiras

nem os cães e os escorpiões da tua carne

nem as renovadas crias ou a sílaba álgida.

 

Não te conhecerá a fêmea nem a aurora

porque como cometa fulminante já só és pó.

 

Não te conhecerá o dorso da argila viva

nem o linho onde assentou o sangue aceso

nem a memória mutilada da primeira labareda.

 

A memória é espessa de sangue nas arestas

e até ao gume só homens da torre de Babel.

 

As trovoadas em breve cantarão as chuvas

o pó subirá às árvores abrigar-se-á nos lúzios

a noite onde te habituarás a fruir a única noite.

 

O espaço em que se finge ter tido um destino

as constelações palpáveis dos dias dos animais.

 

Não te recordará ninguém nas pérfidas vozes

como todos os mortos que se olvidam perdoados

entre as têmporas orgulhosas de abutres apagados.

 

Em ti começa o descanso dos odoríficos pomares

onde a candeias resguardam o silêncio indecifrável.

Minha ânsia de voz está diante de tua voz possessa

mesmo que não trespasse as lascas da minha garganta

a nua saliva sobre a terra dos inundáveis actos de deus.

 

Está diante de ti no esquecimento que embevece o sonho

de que as palavras vivas ainda bordam um coração outro.

 

Os poetas dormem, o esquecimento é um bálsamo sagrado,

e toda a ilusão é cruel porque se dilui por entre as têmporas.

 

João Rasteiro
2007