Não te conhecerá a víbora ou as oliveiras
nem os cães e os escorpiões da tua carne
nem as renovadas crias ou a sílaba álgida.
Não te conhecerá a fêmea nem a aurora
porque como cometa fulminante já só és pó.
Não te conhecerá o dorso da argila viva
nem o linho onde assentou o sangue aceso
nem a memória mutilada da primeira labareda.
A memória é espessa de sangue nas arestas
e até ao gume só homens da torre de Babel.
As trovoadas em breve cantarão as chuvas
o pó subirá às árvores abrigar-se-á nos lúzios
a noite onde te habituarás a fruir a única noite.
O espaço em que se finge ter tido um destino
as constelações palpáveis dos dias dos animais.
Não te recordará ninguém nas pérfidas vozes
como todos os mortos que se olvidam perdoados
entre as têmporas orgulhosas de abutres apagados.
Em ti começa o descanso dos odoríficos pomares
onde a candeias resguardam o silêncio indecifrável.
Minha ânsia de voz está diante de tua voz possessa
mesmo que não trespasse as lascas da minha garganta
a nua saliva sobre a terra dos inundáveis actos de deus.
Está diante de ti no esquecimento que embevece o sonho
de que as palavras vivas ainda bordam um coração outro.
Os poetas dormem, o esquecimento é um bálsamo sagrado,
e toda a ilusão é cruel porque se dilui por entre as têmporas.
João Rasteiro
2007
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