A MÃO SOBRE O MÁRMORE / O IBIS DE PESSOA José António Gonçalves 04-04-2005 www.triplov.org |
Fernando Pessoa fixava-se na tarde e perscrutava o céu a calçada os telhados as sombras das paredes nuas de Lisboa e não lhe saía nada do pensamento nem uma palavra o som de um verbo uma ideia senão o eco do esvoaçar rasante do ibis tudo o resto em consciência ali lhe destoa Vestia o fato de Álvaro de Campos sorria para dentro como devem fazê-lo os poetas circunspectos e contemplava os travejamentos das casas da cidade procurava uma mesa na Brasileira e só tinha na mente o vácuo de umas rimas que não chegavam de tão ausentes e focando o olhar no Tejo que lhe estava claro por dentro da cabeça com o seu ruído de rio apenas lhe surgia na visão por sobre os ombros largos de Mário Sá-Carneiro as asas abertas do ibis como se ele fizesse ninho nas chaminés do Chiado. Chegava-lhe Alberto Caeiro ao espírito com os usos do costume e o senão de ainda lhe provocar uma maior dor no lugar mais esconso da memória sempre em busca de um retinir que lhe trouxesse um esgar de sentir poético ou mesmo algo parecido com um espairecer de um poema a ser debitado mais tarde na velha máquina de escrever ou ali mesmo numa folhinha de bloco de apontamentos e nada vinha nem mesmo o seu reverso que posto num verso continua afinal a ser nada mas ficando impresso em papel já é o seu antónimo e torna-se em alguma coisa de útil no mistério da literatura mas não o que somente havia era o ibis o pássaro desengonçado e o seu voo de náufrago irremediavelmente apegado ao fundo dum copo ou na beiça do cigarro ainda fumegante no cinzeiro de vidro transparente. Era o ibis. Somente o ibis. Então decidiu enterrá-lo definitivamente no cerne da sua obra. E baptizou o ibis logo nessa hora iluminada já que não lhe sobressaía em absoluto mais nada no momento sobre o que ainda lhe poderia faltar nomear - e a decisão nasceu-lhe um segundo antes de finalmente querer afogá-lo - como cabeçalho de empresa da sua nova tipografia. |
José António Gonçalves (inédito.21.5.04) |