A MÃO SOBRE O MÁRMORE / CÂNTICO PARA HERBERTO HELDER José António Gonçalves 04-04-2005 www.triplov.org |
Sei que viajaste por alguns continentes de areia e de bruma. Visitaste ilhas de sal e de miragem, sem que ninguém te esperasse ou te recebesse. Por aí foste colhendo ossos para leres de madrugada, pesquisando a dor e as alegrias que um dia lhes vestiram a pele. Cantaste e assobiaste muitas vezes. De frio e de medo. A solidão conduz à música, aos sons que fazem dançar as palavras. Poderias ter guardado energias para as manhãs seguintes, mas esgotavas tudo numa noite, insistentemente, apaixonado pelo fogo fátuo do encantamento. Desenterraste fantasmas e dormiste em cemitérios, esgotaste bares, gargalhaste em silêncio. As mãos ocupaste-as em mil funções, todas diferentes, muito próximas do amor. Incendiaste cidades e vestiste a farda de bombeiro, reclamaste da bebida e serviste-a ao balcão. Vendeste mulheres e esperaste pela vez de cliente. Oraste, mas conduziste os puros aos infernos dos condenados. Os céus fecharam-te as portas, mas também lá estiveste, vestido de anjo. E ninguém sabia. Não dizias nada. Nem era segredo. Só que não te faziam perguntas, para esperarem por respostas. Passaste a responder-te. Tornaste-te autor dos teus próprios inquéritos. E riste-te muito. Poucos adivinham onde fica o lugar em que pescas a poesia. Duvidam que é de madeira a ilha que te sangra o coração e remenda a alma. Pensam nas casas e hesitam sobre o que moraria dentro delas. Alcançam montanhas e olham para a paisagem, esquecidos do calor da terra que pisam. Tocam nas escarpas sem escutarem os gritos dos náufragos, mergulham no mar e não se prendem aos cordames das caravelas afundadas. Ali está tudo, as balas, os canhões, os mastros, os cascos, as âncoras, o drama. Como peixes nadam nas avenidas, com as luzes dos semáforos a servirem de anémonas. As ruas desconexas buscam tresloucadamente o homem que as criou, mas só encontram o poeta, ocupado a adubar jardins, a colher flores. E todos perguntam sobre o que o inspira, o que o leva a galgar distâncias, a atormentar as páginas brancas dos seus livros. E ele nada lhes diz, prisioneiro infante da palavra mãe. |
José António Gonçalves (inédito 23.11.04) |