LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO TERCEIRO
 

73
«E posto, enfim, que desd' o mar de Atlante
Até o Cítico Tauro, monte erguido,
Já vencedor te vissem, não te espante
Se o campo Emátio só te viu vencido;
Porque Afonso verás, soberbo e ovante,
Tudo render e ser despois rendido.
Assi o quis o Conselho alto, celeste,
Que vença o sogro a ti e o genro a este!

74
«Tornado o Rei sublime, finalmente,
Do divino Juízo castigado,
Despois que em Santarém soberbamente,
Em vão, dos Sarracenos foi cercado,
E despois que do mártire Vicente
O santíssimo corpo venerado
Do Sacro Promontório conhecido
À cidade Ulisseia foi trazido;

75
«Por que levasse avante seu desejo,
Ao forte filho manda o lasso velho
Que às terras se passasse d' Alentejo,
Com gente e co belígero aparelho.
Sancho, d' esforço e d' ânimo sobejo,
Avante passa e faz correr vermelho
O rio que Sevilha vai regando,
Co sangue Mauro, bárbaro e nefando.

76
«E, com esta vitória cobiçoso,
Já não descansa o moço, até que veja
Outro estrago como este, temeroso,
No Bárbaro que tem cercado Beja.
Não tarda muito o Príncipe ditoso
Sem ver o fim daquilo que deseja.
Assi estragado, o Mouro na vingança
De tantas perdas põe sua esperança.

77
«Já se ajuntam do monte a quem Medusa
O corpo fez perder que teve o Céu;
Já vêm do promontório de Ampelusa
E do Tinge, que assento foi de Anteu.
O morador de Abila não se escusa,
Que também com suas armas se moveu,
Ao som da Mauritana e ronca tuba,
Todo o Reino que foi do nobre Juba.

78
«Entrava, com toda esta companhia,
O Miralmomini em Portugal;
Treze Reis mouros leva de valia,
Entre os quais tem o ceptro Imperial.
E assi, fazendo quanto mal podia,
O que em partes podia fazer mal,
Dom Sancho vai cercar em Santarém;
Porém não lhe sucede muito bem.

79
«Dá-lhe combates ásperos, fazendo
Ardis de guerra mil, o Mouro iroso;
Não lhe aproveita já trabuco horrendo,
Mina secreta, aríete forçoso;
Porque o filho de Afonso, não perdendo
Nada do esforço e acordo generoso,
Tudo provê com ânimo e prudência,
Que em toda a parte há esforço e resistência.

80
«Mas o velho, a quem tinham já obrigado
Os trabalhosos anos ao sossego,
Estando na cidade cujo prado
Enverdecem as águas do Mondego,
Sabendo como o filho está cercado,
Em Santarém, do Mauro povo cego,
Se parte diligente da cidade;
Que não perde a presteza co a idade.

81
«E co a famosa gente, à guerra usada,
Vai socorrer o filho; e assi ajuntados,
A Portuguesa fúria costumada
Em breve os Mouros tem desbaratados.
A campina, que toda está coalhada
De marlotas, capuzes variados,
De cavalos, jaezes, presa rica,
De seus senhores mortos cheia fica.

82
«Logo todo o restante se partiu
De Lusitânia, postos em fugida;
O Miralmomini só não fugiu,
Porque, antes de fugir, lhe foge a vida.
A Quem lhe esta vitória permitiu
Dão louvores e graças sem medida;
Que, em casos tão estranhos, claramente
Mais peleja o favor de Deus que a gente.

83
«De tamanhas vitórias triunfava
O velho Afonso, Príncipe subido,
Quando quem tudo enfim vencendo andava,
Da larga e muita idade foi vencido.
A pálida doença lhe tocava,
Com fria mão, o corpo enfraquecido;
E pagaram seus anos, deste jeito,
À triste Libitina seu direito.