LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO TERCEIRO
 

84
«Os altos promontórios o choraram,
E dos rios as águas saüdosas
Os semeados campos alagaram,
Com lágrimas correndo piadosas;
Mas tanto pelo mundo se alargaram,
Com fama suas obras valerosas,
Que sempre no seu reino chamarão
«Afonso! Afonso!» os ecos; mas em vão.

85
«Sancho, forte mancebo, que ficara
Imitando seu pai na valentia,
E que em sua vida já se exprimentara
Quando o Bétis de sangue se tingia
E o bárbaro poder desbaratara
Do Ismaelita Rei de Andaluzia,
E mais quando os que Beja em vão cercaram
Os golpes de seu braço em si provaram;

86
«Despois que foi por Rei alevantado,
Havendo poucos anos que reinava,
A cidade de Silves tem cercado,
Cujos campos o Bárbaro lavrava.
Foi das valentes gentes ajudado
Da Germânica armada que passava,
De armas fortes e gente apercebida,
A recobrar Judeia já perdida.

87
«Passavam a ajudar na santa empresa
O roxo Federico, que moveu
O poderoso exército, em defesa
Da cidade onde Cristo padeceu,
Quando Guido, co a gente em sede acesa,
Ao grande Saladino se rendeu,
No lugar onde aos Mouros sobejavam
As águas que os de Guido desejavam.

88
«Mas a fermosa armada, que viera
Por contraste de vento àquela parte,
Sancho quis ajudar na guerra fera,
Já que em serviço vai do santo Marte.
Assi como a seu pai acontecera
Quando tomou Lisboa, da mesma arte
Do Germano ajudado, Silves toma
E o bravo morador destrui e doma.

89
«E se tantos troféus do Mahometa
Alevantando vai, também do forte
Lionês não consente estar quieta
A terra, usada aos casos de Mavorte,
Até que na cerviz seu jugo meta
Da soberba Tuí, que a mesma sorte
Viu ter a muitas vilas suas vizinhas,
Que por armas tu, Sancho, humildes tinhas.

90
«Mas, entre tantas palmas salteado
Da temerosa morte, fica herdeiro
Um filho seu, de todos estimado,
Que foi segundo Afonso e Rei terceiro.
No tempo deste, aos Mauros foi tomado
Alcáçare do Sal, por derradeiro;
Porque dantes os Mouros o tomaram,
Mas agora estruídos o pagaram.

91
«Morto despois Afonso, lhe sucede
Sancho segundo, manso e descuidado;
Que tanto em seus descuidos se desmede
Que de outrem quem mandava era mandado.
De governar o Reino, que outro pede,
Por causa dos privados foi privado,
Porque, como por eles se regia,
Em todos os seus vícios consentia.

92
«Não era Sancho, não, tão desonesto
Como Nero, que um moço recebia
Por mulher e, despois, horrendo incesto
Com a mãe Agripina cometia;
Nem tão cruel às gentes e molesto
Que a cidade queimasse onde vivia;
Nem tão mau como foi Heliogabalo,
Nem como o mole Rei Sardanapalo.

93
«Nem era o povo seu tiranizado,
Como Sicília foi de seus tiranos;
Nem tinha, como Fálaris, achado
Género de tormentos inumanos;
Mas o Reino, de altivo e costumado
A senhores em tudo soberanos,
A Rei não obedece nem consente
Que não for mais que todos excelente.

94
«Por esta causa, o Reino governou
O Conde Bolonhês, despois alçado
Por Rei, quando da vida se apartou
Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado.
Este, que Afonso o Bravo se chamou,
Despois de ter o Reino segurado,
Em dilatá-lo cuida, que em terreno
Não cabe o altivo peito, tão pequeno.