LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO QUINTO
 

67
«Era maior a força em demasia,
Segundo pera trás nos obrigava,
Do mar, que contra nós ali corria,
Que por nós a do vento que assoprava.
Injuriado Noto da porfia
Em que co mar (parece) tanto estava,
Os assopros esforça iradamente,
Com que nos fez vencer a grão corrente.

68
«Trazia o Sol o dia celebrado
Em que três Reis das partes do Oriente
Foram buscar um Rei, de pouco nado,
No qual Rei outros três há juntamente;
Neste dia outro porto foi tomado
Por nós, da mesma já contada gente,
Num largo rio, ao qual o nome demos
Do dia em que por ele nos metemos.

69
«Desta gente refresco algum tomámos
E do rio fresca água; mas contudo
Nenhum sinal aqui da Índia achámos
No povo, com nós outros cási mudo.
Ora vê, Rei, quamanha terra andámos,
Sem sair nunca deste povo rudo,
Sem vermos nunca nova nem sinal
Da desejada parte Oriental.

70
«Ora imagina agora quão coitados
Andaríamos todos, quão perdidos
De fomes, de tormentas quebrantados,
Por climas e por mares não sabidos,
E do esperar comprido tão cansados
Quanto a desesperar já compelidos,
Por céus não naturais, de qualidade
Inimiga de nossa humanidade!

71
«Corrupto já e danado o mantimento,
Danoso e mau ao fraco corpo humano;
E, além disso, nenhum contentamento,
Que sequer da esperança fosse engano.
Crês tu que, se este nosso ajuntamento
De soldados não fora Lusitano,
Que durara ele tanto obediente,
Porventura, a seu Rei e a seu regente?

72
«Crês tu que já não foram levantados
Contra seu Capitão, se os resistira,
Fazendo-se piratas, obrigados
De desesperação, de fome, de ira?
Grandemente, por certo, estão provados,
Pois que nenhum trabalho grande os tira
Daquela Portuguesa alta excelência
De lealdade firme e obediência.

73
«Deixando o porto, enfim, do doce rio
E tornando a cortar a água salgada,
Fizemos desta costa algum desvio,
Deitando pera o pego toda a armada;
Porque, ventando Noto, manso e frio,
Não nos apanhasse a água da enseada
Que a costa faz ali, daquela banda
Donde a rica Sofala o ouro manda.

74
«Esta passada, logo o leve leme
Encomendado ao sacro Nicolau,
Pera onde o mar na costa brada e geme,
A proa inclina dũa e doutra nau;
Quando, indo o coração que espera e teme
E que tanto fiou dum fraco pau,
Do que esperava já desesperado,
Foi dũa novidade alvoroçado.

75
«E foi que, estando já da costa perto,
Onde as praias e vales bem se viam,
Num rio, que ali sai ao mar aberto,
Batéis à vela entravam e saíam.
Alegria mui grande foi, por certo,
Acharmos já pessoas que sabiam
Navegar, porque entre elas esperámos
De achar novas algũas, como achámos.

76
«Etíopes são todos, mas parece
Que com gente milhor comunicavam;
Palavra algũa Arábia se conhece
Entre a linguagem sua que falavam;
E com pano delgado, que se tece
De algodão, as cabeças apertavam;
Com outro, que de tinta azul se tinge,
Cada um as vergonhosas partes cinge.

77
«Pela Arábica língua que mal falam
E que Fernão Martins mui bem entende,
Dizem que, por naus que em grandeza igualam
As nossas, o seu mar se corta e fende;
Mas que, lá donde sai o Sol, se abalam
Pera onde a costa ao Sul se alarga e estende,
E do Sul pera o Sol, terra onde havia
Gente, assi como nós, da cor do dia.