LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO QUINTO
 
78
«Mui grandemente aqui nos alegrámos
Co a gente, e com as novas muito mais.
Pelos sinais que neste rio achámos
O nome lhe ficou dos Bons Sinais.
Um padrão nesta terra alevantámos,
Que, pera assinalar lugares tais,
Trazia alguns; o nome tem do belo
Guiador de Tobias a Gabelo.

79
«Aqui de limos, cascas e d' ostrinhos,
Nojosa criação das águas fundas,
Alimpámos as naus, que dos caminhos
Longos do mar vêm sórdidas e imundas.
Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,
Com mostras aprazíveis e jocundas,
Houvemos sempre o usado mantimento,
Limpos de todo o falso pensamento.

80
«Mas não foi, da esperança grande e imensa
Que nesta terra houvemos, limpa e pura
A alegria; mas logo a recompensa
A Ramnúsia com nova desventura.
Assi no Céu sereno se dispensa;
Co esta condição, pesada e dura,
Nacemos: o pesar terá firmeza,
Mas o bem logo muda a natureza.

81
«E foi que, de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos pera sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gingivas na boca, que crecia
A carne e juntamente apodrecia?

82
«Apodrecia cum fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião sutil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela carne já podre assi cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.

83
«Enfim que nesta incógnita espessura
Deixámos pera sempre os companheiros
Que em tal caminho e em tanta desventura
Foram sempre connosco aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos, assi mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos.

84
«Assi que deste porto nos partimos
Com maior esperança e mor tristeza,
E pela costa abaixo o mar abrimos,
Buscando algum sinal de mais firmeza.
Na dura Moçambique, enfim, surgimos,
De cuja falsidade e má vileza
Já serás sabedor, e dos enganos
Dos povos de Mombaça, pouco humanos.

85
«Até que aqui, no teu seguro porto,
Cuja brandura e doce tratamento
Dará saúde a um vivo e vida a um morto,
Nos trouxe a piedade do alto Assento.
Aqui repouso, aqui doce conforto,
Nova quietação do pensamento,
Nos deste. E vês aqui, se atento ouviste,
Te contei tudo quanto me pediste.

86
«Julgas agora, Rei, se houve no mundo
Gentes que tais caminhos cometessem?
Crês tu que tanto Eneias e o facundo
Ulisses pelo mundo se estendessem?
Ousou algum a ver do mar profundo,
Por mais versos que dele se escrevessem,
Do que eu vi, a poder d' esforço e de arte,
E do que inda hei-de ver, a oitava parte?

87
«Esse que bebeu tanto da água Aónia,
Sobre quem têm contenda peregrina,
Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia,
Atenas, Ios, Argo e Salamina;
Essoutro que esclarece toda Ausónia,
A cuja voz, altíssona e divina,
Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece,
Mas o Tibre co som se ensoberbece:

88
«Cantem, louvem e escrevam sempre extremos
Desses seus Semideuses e encareçam,
Fingindo magas Circes, Polifemos,
Sirenas que co canto os adormeçam;
Dêm-lhe mais navegar à vela e remos
Os Cícones e a terra onde se esqueçam
Os companheiros, em gostando o loto;
Dêm-lhe perder nas águas o piloto;