LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO QUINTO
 
56
«Oh que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Qu' eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro penedo!

57
«Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
Daqui me parto, irado e quási insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

58
«Eram já neste tempo meus Irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos,
E, por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos.
E, como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do Fado imigo,
Por meus atrevimentos, o castigo:

59
«Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros que vês, e esta figura,
Por estas longas águas se estenderam.
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.»

60
«Assi contava; e, cum medonho choro,
Súbito d' ante os olhos se apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.

61
«Já Flégon e Piróis vinham tirando,
Cos outros dous, o carro radiante,
Quando a terra alta se nos foi mostrando
Em que foi convertido o grão Gigante.
Ao longo desta costa, começando
Já de cortar as ondas do Levante,
Por ela abaixo um pouco navegámos,
Onde segunda vez terra tomámos.

62
«A gente que esta terra possuía,
Posto que todos Etiopes eram,
Mais humana no trato parecia
Que os outros que tão mal nos receberam.
Com bailos e com festas de alegria
Pela praia arenosa a nós vieram,
As mulheres consigo e o manso gado
Que apacentavam, gordo e bem criado.

63
«As mulheres, queimadas, vêm em cima
Dos vagarosos bois, ali sentadas,
Animais que eles têm em mais estima
Que todo o outro gado das manadas.
Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,
Na sua língua cantam, concertadas
Co doce som das rústicas avenas
Imitando de Títiro as Camenas.

64
«Estes, como na vista prazenteiros
Fossem, humanamente nos trataram,
Trazendo-nos galinhas e carneiros
A troco doutras peças que levaram;
Mas como nunca, enfim, meus companheiros
Palavra sua algũa lhe alcançaram
Que desse algum sinal do que buscamos,
As velas dando, as âncoras levamos.

65
«Já aqui tínhamos dado um grão rodeio
À costa negra de África, e tornava
A proa a demandar o ardente meio
Do Céu, e o Pólo Antártico ficava.
Aquele ilhéu deixámos onde veio
Outra armada primeira, que buscava
O Tormentório Cabo e, descoberto,
Naquele ilhéu fez seu limite certo.

66
«Daqui fomos cortando muitos dias,
Entre tormentas tristes e bonanças,
No largo mar fazendo novas vias,
Só conduzidos de árduas esperanças.
Co mar um tempo andámos em porfias,
Que, como tudo nele são mudanças,
Corrente nele achámos tão possante,
Que passar não deixava por diante: