LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO PRIMEIRO
 

89
Eis nos batéis o fogo se levanta
Na furiosa e dura artelharia;
A plúmbea péla mata, o brado espanta;
Ferido, o ar retumba e assovia.
O coração dos Mouros se quebranta,
O temor grande o sangue lhe resfria.
Já foge o escondido, de medroso,
E morre o descoberto aventuroso.

90
Não se contenta a gente Portuguesa,
Mas, seguindo a vitória, estrui e mata;
A povoação sem muro e sem defesa
Esbombardeia, acende e desbarata.
Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,
Que bem cuidou comprá-la mais barata;
Já blasfema da guerra, e maldizia,
O velho inerte e a mãe que o filho cria.

91
Fugindo, a seta o Mouro vai tirando
Sem força, de covarde e de apressado,
A pedra, o pau e o canto arremessando;
Dá-lhe armas o furor desatinado.
Já a Ilha, e todo o mais, desamparando,
À terra firme foge amedrontado;
Passa e corta do mar o estreito braço
Que a Ilha em torno cerca em pouco espaço.

92
Uns vão nas almadias carregadas,
Um corta o mar a nado, diligente;
Quem se afoga nas ondas encurvadas,
Quem bebe o mar e o deita juntamente.
Arrombam as miúdas bombardadas
Os pangaios sutis da bruta gente.
Destarte o Português, enfim, castiga
A vil malícia, pérfida, inimiga.

93
Tornam vitoriosos pera a armada,
Co despojo da guerra e rica presa,
E vão a seu prazer fazer aguada,
Sem achar resistência nem defesa.
Ficava a Maura gente magoada,
No ódio antigo mais que nunca acesa;
E, vendo sem vingança tanto dano,
Sòmente estriba no segundo engano.

94
Pazes cometer manda, arrependido,
O Regedor daquela inica terra,
Sem ser dos Lusitanos entendido
Que em figura de paz lhe manda guerra;
Porque o piloto falso prometido,
Que toda a má tenção no peito encerra,
Pera os guiar à morte lhe mandava,
Como em sinal das pazes que tratava.

95
O Capitão, que já lhe então convinha
Tornar a seu caminho acostumado,
Que tempo concertado e ventos tinha
Pera ir buscar o Indo desejado,
Recebendo o piloto que lhe vinha,
Foi dele alegremente agasalhado,
E respondendo ao mensageiro, a tento,
As velas manda dar ao largo vento.

96
Destarte despedida, a forte armada
As ondas de Anfitrite dividia,
Das filhas de Nereu acompanhada,
Fiel, alegre e doce companhia.
O Capitão, que não cala em nada
Do enganoso ardil que o Mouro urdia,
Dele mui largamente se informava
Da Índia toda e costas que passava.

97
Mas o Mouro, instruído nos enganos
Que o malévolo Baco lhe ensinara,
De morte ou cativeiro novos danos,
Antes que à Índia chegue, lhe prepara.
Dando razão dos portos Indianos,
Também tudo o que pede lhe declara,
Que, havendo por verdade o que dizia,
De nada a forte gente se temia.

98
E diz-lhe mais, co falso pensamento
Com que Sínon os Frígios enganou,
Que perto está ũa Ilha, cujo assento
Povo antigo Cristão sempre habitou.
O Capitão, que a tudo estava atento,
Tanto co estas novas se alegrou
Que com dádivas grandes lhe rogava
Que o leve à terra onde esta gente estava.

99
O mesmo o falso Mouro determina
Que o seguro Cristão lhe manda e pede;
Que a Ilha é possuída da malina
Gente que segue o torpe Mahamede.
Aqui o engano e morte lhe imagina,
Porque em poder e forças muito excede
À Moçambique esta Ilha, que se chama
Quíloa, mui conhecida pola fama.