LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO PRIMEIRO
 


100
Pera lá se inclinava a leda frota;
Mas a Deusa em Citere celebrada,
Vendo como deixava a certa rota
Por ir buscar a morte não cuidada,
Não consente que em terra tão remota
Se perca a gente dela tanto amada,
E com ventos contrairos a desvia
Donde o piloto falso a leva e guia.

101
Mas o malvado Mouro, não podendo
Tal determinação levar avante,
Outra maldade inica cometendo,
Ainda em seu propósito constante,
Lhe diz que, pois as águas, discorrendo,
Os levaram por força por diante,
Que outra Ilha tem perto, cuja gente
Eram Cristãos com Mouros juntamente.

102
Também nestas palavras lhe mentia,
Como por regimento, enfim, levava;
Que aqui gente de Cristo não havia,
Mas a que a Mahamede celebrava.
O Capitão, que em tudo o Mouro cria,
Virando as velas, a Ilha demandava;
Mas, não querendo a Deusa guardadora,
Não entra pela barra, e surge fora.

103
Estava a Ilha à terra tão chegada
Que um estreito pequeno a dividia;
Ũa cidade nela situada,
Que na fronte do mar aparecia,
De nobres edifícios fabricada,
Como por fora, ao longe, descobria,
Regida por um Rei de antiga idade:
Mombaça é o nome da Ilha e da cidade.

104
E sendo a ela o Capitão chegado,
Estranhamente ledo, porque espera
De poder ver o povo baptizado,
Como o falso piloto lhe dissera,
Eis vêm batéis da terra com recado
Do Rei, que já sabia a gente que era;
Que Baco muito de antes o avisara,
Na forma doutro Mouro, que tomara.

105
O recado que trazem é de amigos,
Mas debaxo o veneno vem coberto,
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos,
Ó caminho de vida nunca certo,
Que aonde a gente põe sua esperança
Tenha a vida tão pouca segurança!

106
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?