LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO PRIMEIRO
 

78
E, entrando assi a falar-lhe, a tempo e horas,
A sua falsidade acomodadas,
Lhe diz como eram gentes roubadoras
Estas que ora de novo são chegadas;
Que das nações na costa moradoras,
Correndo a fama veio que roubadas
Foram por estes homens que passavam,
Que com pactos de paz sempre ancoravam.

79
– «E sabe mais (lhe diz), como entendido
Tenho destes Cristãos sanguinolentos,
Que quási todo o mar têm destruído
Com roubos, com incêndios violentos;
E trazem já de longe engano urdido
Contra nós; e que todos seus intentos
São pera nos matarem e roubarem,
E mulheres e filhos cativarem.

80
«E também sei que tem determinado
De vir por água a terra, muito cedo,
O Capitão, dos seus acompanhado,
Que da tenção danada nasce o medo.
Tu deves de ir também cos teus armado
Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;
Porque, saindo a gente descuidada,
Caïrão facilmente na cilada.

81
«E se inda não ficarem deste jeito
Destruídos ou mortos totalmente,
Eu tenho imaginada no conceito
Outra manha e ardil que te contente:
Manda-lhe dar piloto que de jeito
Seja astuto no engano, e tão prudente
Que os leve aonde sejam destruídos,
Desbaratados, mortos ou perdidos.»

82
Tanto que estas palavras acabou
O Mouro, nos tais casos sábio e velho,
Os braços pelo colo lhe lançou,
Agradecendo muito o tal conselho;
E logo nesse instante concertou
Pera a guerra o belígero aparelho,
Pera que ao Português se lhe tornasse
Em roxo sangue a água que buscasse.

83
E busca mais, pera o cuidado engano,
Mouro que por piloto à nau lhe mande,
Sagaz, astuto e sábio em todo o dano,
De quem fiar se possa um feito grande.
Diz-lhe que, acompanhando o Lusitano,
Por tais costas e mares co ele ande,
Que, se daqui escapar, que lá diante
Vá cair onde nunca se alevante.

84
Já o raio Apolíneo visitava
Os Montes Nabateios acendido,
Quando Gama cos seus determinava
De vir por água a terra apercebido.
A gente nos batéis se concertava
Como se fosse o engano já sabido;
Mas pôde suspeitar-se fàcilmente,
Que o coração pres[s]ago nunca mente.

85
E mais também mandado tinha a terra,
De antes, pelo piloto necessário,
E foi-lhe respondido em som de guerra,
Caso do que cuidava mui contrário.
Por isto, e porque sabe quanto erra
Quem se crê de seu pérfido adversário,
Apercebido vai como podia
Em três batéis sòmente que trazia.

86
Mas os Mouros, que andavam pela praia
Por lhe defender a água desejada,
Um de escudo embraçado e de azagaia,
Outro de arco encurvado e seta ervada,
Esperam que a guerreira gente saia,
Outros muitos já postos em cilada;
E, por que o caso leve se lhe faça,
Põem uns poucos diante por negaça.

87
Andam pela ribeira alva, arenosa,
Os belicosos Mouros acenando
Com a adarga e co a hástea perigosa,
Os fortes Portugueses incitando.
Não sofre muito a gente generosa
Andar-lhe os Cães os dentes amostrando;
Qualquer em terra salta, tão ligeiro,
Que nenhum dizer pode que é primeiro:

88
Qual no corro sanguino o ledo amante,
Vendo a fermosa dama desejada,
O touro busca e, pondo-se diante,
Salta, corre, sibila, acena e brada,
Mas o animal atroce, nesse instante,
Com a fronte cornígera inclinada,
Bramando, duro corre e os olhos cerra,
Derriba, fere e mata e põe por terra.