LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO PRIMEIRO
 
67
Isto dizendo, manda os diligentes
Ministros amostrar as armaduras:
Vêm arneses e peitos reluzentes,
Malhas finas e lâminas seguras,
Escudos de pinturas diferentes,
Pelouros, espingardas de aço puras,
Arcos e sagitíferas aljavas,
Partazanas agudas, chuças bravas.

68
As bombas vêm de fogo, e juntamente
As panelas sulfúreas, tão danosas;
Porém aos de Vulcano não consente
Que dêm fogo às bombardas temerosas;
Porque o generoso ânimo e valente,
Entre gentes tão poucas e medrosas,
Não mostra quanto pode; e com razão,
Que é fraqueza entre ovelhas ser lião.

69
Porém disto que o Mouro aqui notou,
E de tudo o que viu com olho atento,
Um ódio certo na alma lhe ficou,
Ũa vontade má de pensamento;
Nas mostras e no gesto o não mostrou,
Mas, com risonho e ledo fingimento,
Tratá-los brandamente determina,
Até que mostrar possa o que imagina.

70
Pilotos lhe pedia o Capitão,
Por quem pudesse à Índia ser levado;
Diz-lhe que o largo prémio levarão
Do trabalho que nisso for tomado.
Promete-lhos o Mouro, com tenção
De peito venenoso e tão danado
Que a morte, se pudesse, neste dia,
Em lugar de pilotos lhe daria.

71
Tamanho o ódio foi e a má vontade
Que aos estrangeiros súpito tomou,
Sabendo ser sequaces da Verdade
Que o filho de David nos ensinou!
Ó segredos daquela Eternidade
A quem juízo algum não alcançou:
Que nunca falte um pérfido inimigo
Àqueles de quem foste tanto amigo!

72
Partiu-se nisto, enfim, co a companhia,
Das naus o falso Mouro despedido,
Com enganosa e grande cortesia,
Com gesto ledo a todos e fingido.
Cortaram os batéis a curta via
Das águas de Neptuno; e, recebido
Na terra do obseqüente ajuntamento,
Se foi o Mouro ao cógnito apousento.

73
Do claro Assento etéreo, o grão Tebano,
Que da paternal coxa foi nascido,
Olhando o ajuntamento Lusitano
Ao Mouro ser molesto e avorrecido,
No pensamento cuida um falso engano,
Com que seja de todo destruído;
E, enquanto isto só na alma imaginava,
Consigo estas palavras praticava:

74
– «Está do Fado já determinado
Que tamanhas vitórias, tão famosas,
Hajam os Portugueses alcançado
Das Indianas gentes belicosas;
E eu só, filho do Padre sublimado,
Com tantas qualidades generosas,
Hei-de sofrer que o Fado favoreça
Outrem, por quem meu nome se escureça?

75
«Já quiseram os Deuses que tivesse
O filho de Filipo nesta parte
Tanto poder que tudo sometesse
Debaixo do seu jugo o fero Marte;
Mas há-se de sofrer que o Fado desse
A tão poucos tamanho esforço e arte,
Qu' eu, co grão Macedónio e Romano,
Dêmos lugar ao nome Lusitano?

76
«Não será assi, porque, antes que chegado
Seja este Capitão, astutamente
Lhe será tanto engano fabricado
Que nunca veja as partes do Oriente.
Eu decerei à Terra e o indignado
Peito revolverei da Maura gente;
Porque sempre por via irá direita
Quem do oportuno tempo se aproveita.»

77
Isto dizendo, irado e quási insano,
Sobre a terra Africana descendeu,
Onde, vestindo a forma e gesto humano,
Pera o Prasso sabido se moveu.
E, por milhor tecer o astuto engano,
No gesto natural se converteu
Dum Mouro, em Moçambique conhecido,
Velho, sábio, e co Xeque mui valido.