LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO OITAVO
 

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Entretanto, os arúspices famosos
Na falsa opinião, que em sacrifícios
Antevêm sempre os casos duvidosos
Por sinais diabólicos e indícios,
Mandados do Rei próprio, estudiosos,
Exercitavam a arte e seus ofícios,
Sobre esta vinda desta gente estranha,
Que às suas terras vem da ignota Espanha.

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Sinal lhe mostra o Demo, verdadeiro,
De como a nova gente lhe seria
Jugo perpétuo, eterno cativeiro,
Destruição de gente e de valia.
Vai-se espantado o atónito agoureiro
Dizer ao Rei (segundo o que entendia)
Os sinais temerosos que alcançara
Nas entranhas das vítimas que oulhara.

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A isto mais se ajunta que um devoto
Sacerdote da lei de Mafamede,
Dos ódios concebidos não remoto
Contra a divina Fé, que tudo excede,
Em forma do Profeta falso e noto
Que do filho da escrava Agar procede,
Baco odioso em sonhos lhe aparece,
Que de seus ódios inda se não dece.

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E diz-lhe assi: – «Guardai-vos, gente minha,
Do mal que se aparelha pelo imigo
Que pelas águas húmidas caminha,
Antes que esteis mais perto do perigo!»
Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,
Espantado do sonho; mas consigo
Cuida que não é mais que sonho usado;
Torna a dormir, quieto e sossegado.

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Torna Baco dizendo: – «Não conheces
O grão legislador que a teus passados
Tem mostrado o preceito a que obedeces,
Sem o qual fôreis muitos baptizados?
Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces?
Pois saberás que aqueles que chegados
De novo são, serão mui grande dano
Da Lei que eu dei ao néscio povo humano.

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«Enquanto é fraca a força desta gente,
Ordena como em tudo se resista;
Porque, quando o Sol sai, fàcilmente
Se pode nele pôr a aguda vista;
Porém, despois que sobe claro e ardente,
Se agudeza dos olhos o conquista,
Tão cega fica, quanto ficareis
Se raízes criar lhe não tolheis.»

51
Isto dito, ele e o sono se despede.
Tremendo fica o atónito Agareno;
Salta da cama, lume aos servos pede,
Lavrando nele o férvido veneno.
Tanto que a nova luz que ao Sol precede
Mostrara rosto angélico e sereno,
Convoca os principais da torpe seita,
Aos quais do que sonhou dá conta estreita.

52
Diversos pareceres e contrários
Ali se dão, segundo o que entendiam;
Astutas traïções, enganos vários,
Perfídias, inventavam e teciam;
Mas, deixando conselhos temerários,
Destruição da gente pretendiam,
Por manhas mais sutis e ardis milhores,
Com peitas adquirindo os regedores.

53
Com peitas, ouro e dádivas secretas
Conciliam da terra os principais;
E com razões notáveis e discretas
Mostram ser perdição dos naturais,
Dizendo que são gentes inquietas,
Que, os mares discorrendo Ocidentais,
Vivem só de piráticas rapinas,
Sem Rei, sem leis humanas ou divinas.

54
Oh, quanto deve o Rei que bem governa
De olhar que os conselheiros ou privados
De consciência e de virtude interna
E de sincero amor sejam dotados!
Porque, como estê posto na superna
Cadeira, pode mal dos apartados
Negócios ter noticia mais inteira
Do que lhe der a língua conselheira.

55
Nem tão-pouco direi que tome tanto
Em grosso a consciência limpa e certa,
Que se enleve num pobre e humilde manto,
Onde ambição acaso ande encoberta.
E, quando um bom em tudo é justo e santo,
E em negócios do mundo pouco acerta;
Que mal co eles poderá ter conta
A quieta inocência, em só Deus pronta.