LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO OITAVO
 
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Mas aqueles avaros Catuais
Que o Gentílico povo governavam,
Induzidos das gentes infernais,
O Português despacho dilatavam.
Mas o Gama, que não pretende mais,
De tudo quanto os Mouros ordenavam,
Que levar a seu Rei um sinal certo
Do mundo que deixava descoberto,

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Nisto trabalha só; que bem sabia
Que despois, que levasse esta certeza,
Armas e naus e gentes mandaria
Manuel, que exercita a suma alteza,
Com que a seu jugo e Lei someteria
Das terras e do mar a redondeza;
Que ele não era mais que um diligente
Descobridor das terras do Oriente.

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Falar ao Rei gentio determina,
Por que com seu despacho se tornasse,
Que já sentia em tudo da malina
Gente impedir-se quanto desejasse.
O Rei, que da notícia falsa e indina
Não era de espantar se s' espantasse,
Que tão crédulo era em seus agouros,
E mais sendo afirmados pelos Mouros,

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Este temor lhe esfria o baixo peito.
Por outra parte, a força da cobiça,
A quem por natureza está sujeito,
Um desejo imortal lhe acende e atiça:
Que bem vê que grandíssimo proveito
Fará, se, com verdade e com justiça,
O contrato fizer, por longos anos,
Que lhe comete o Rei dos Lusitanos.

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Sobre isto, nos conselhos que tomava,
Achava mui contrários pareceres;
Que naqueles com quem se aconselhava
Executa o dinheiro seus poderes.
O grande Capitão chamar mandava,
A quem chegado disse: – «Se quiseres
Confessar-me a verdade limpa e nua,
Perdão alcançarás da culpa tua.

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«Eu sou bem informado que a embaxada
Que de teu Rei me deste, que é fingida;
Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,
Mas vagabundo vás passando a vida.
Que quem da Hespéria última alongada,
Rei ou senhor de insânia desmedida,
Há-de vir cometer, com naus e frotas,
Tão incertas viagens e remotas?

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«E se de grandes Reinos poderosos
O teu Rei tem a Régia majestade,
Que presentes me trazes valerosos,
Sinais de tua incógnita verdade?
Com peças e dões altos, sumptuosos,
Se lia dos Reis altos a amizade;
Que sinal nem penhor não é bastante
As palavras dum vago navegante.

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«Se porventura vindes desterrados,
Como já foram homens d' alta sorte,
Em meu Reino sereis agasalhados,
Que toda a terra é pátria pera o forte;
Ou se piratas sois, ao mar usados,
Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte,
Que, por se sustentar, em toda idade
Tudo faz a vital necessidade.»

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Isto assi dito, o Gama, que já tinha
Suspeitas das insídias que ordenava
O Mahomético ódio, donde vinha
Aquilo que tão mal o Rei cuidava,
Cũa alta confiança, que convinha,
Com que seguro crédito alcançava,
Que Vénus Acidália lhe influía,
Tais palavras do sábio peito abria:

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– «Se os antigos delitos que a malícia
Humana cometeu na prisca idade
Não causaram que o vaso da nequícia,
Açoute tão cruel da Cristandade,
Viera pôr perpétua inimicícia
Na geração de Adão, co a falsidade,
Ó poderoso Rei, da torpe seita,
Não conceberas tu tão má suspeita.

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«Mas, porque nenhum grande bem se alcança
Sem grandes opressões, e em todo o feito
Segue o temor os passos da esperança,
Que em suor vive sempre de seu peito,
Me mostras tu tão pouca confiança
Desta minha verdade, sem respeito
Das razões em contrário que acharias
Se não cresses a quem não crer devias.