Inês,
por seu lado, desconhecia o que fosse um homem. Era uma aia da
princesa, igual às outras, que não se atrevia a dirigir a palavra a qualquer homem. Fora criada em Albuquerque, no gineceu uterino do
castelo, ao lado da família de Teresa de Albuquerque. Lidou aí com
mulheres viris, mas muito reservadas, que lhe deram recato total e sensibilidade espiritual. Vira o pai de passagem nessa época e depois, aos
13 ou 14 anos, fora entregue ao círculo de Constança. Era uma roda de
meninas, que vivia em permanente lazer e satisfação.
A filha de João Manuel afeiçoou-se-lhe. Viu nela uma flor da
época, ainda que bravia. Deu-lhe alguma instrução e escolheu-a para
vir para Lisboa. Constança era uma mulher castigada e a circunspecção de Inês pareceu-lhe um dos poucos valores que lhe podiam oferecer uma alegria sã. Era uma aquisição recente no círculo, onde a princesa tinha amigas de infância, mas com ascendente íntimo. Constança
gostava de tomar o pequeno-almoço com ela e recolher-se depois à cama, enquanto Inês lhe lia ao lado romances manuscritos. Gostava dela
também para passear debaixo das alamedas do convento, contemplando os astros à noite ou falando da vida do céu. O mundo de Inês era
quase só feito de luzes e de mulheres.
Nesse dia, Pedro chegou escalorado a Alenquer. Era um dia
quente de Março, com Sol curto, mas escaldante. Costumava sair da
Atouguia ainda de noite e chegar muito antes do meio-dia ao largo da
vila. A viagem não lhe custava e, precisando, mudava de montada no
Cadaval, a duas horas e meia da Atouguia. Evitava as subidas do Montejunto e descia pela Ota. Nesse dia, arejou no Cadaval, mas mesmo
assim a sede apertou com ele depois da Ota. Chegou suado e seco ao
largo do castelo de Alenquer, onde entregou a montada e se sacudiu do
pó dos caminhos. Tinha as botas e o balão das calças sujos de lama.
Despira num povoado conhecido a jaleca de pele com três botões de
osso e vinha em colete escuro, de cabedal grosso, com as mangas suadas da camisa arregaçadas. Vestia um calção de pano leve, acastanhado, e calçava sapatos de cano, salto de prateleira, com esporas simples.
Dirigiu-se para o átrio de Constança, como sempre fazia, e quando lá chegou, deu com Inês. Vestia uma blusa justa ao corpo, apertada
em colete, saia de cinta alta e muito rodada, sapatos de presilha de
cabedal. Acabara de vir dos jardins, que estavam um bom degrau de
terra abaixo dos aposentos de Constança, e levava rosmaninho para a sala. Sabia que, nessa manhã, Pedro devia visitar Constança, mas não
se lembrara que o podia encontrar no regresso. Olhou para ele e viu-o
enlameado, barba emaranhada, lábios secos. Hesitou entre o dever de
o servir e o recato absoluto que lhe haviam ensinado. Pensou que se
tratava do príncipe e era sua obrigação recebê-lo. Dirigiu-se-lhe como
antes se habituara a servir o pai.
- Meu senhor, sou Inês, filha de Pedro Femandes de Castro, visita de vosso tio Afonso Sanches, em Albuquerque. Perdoai-me, mas
gostaria de vos trazer de beber.
Pedro não soube responder. Sentia-se ofegante da viagem, esquecido de linguagem, incomodado pela alegria quente que havia nos
aposentos de Constança e do seu séquito. Sabia, por Diogo Lopes Pacheco, quem era Afonso Sanches, do seu parentesco com o pai e a família, mas nunca o havia visto, nada podia dizer dele; morrera quando ele era criança e pouco ou nada se falava agora dele. De Pedro Fernandes de Castro tinha a ideia muito vaga dum fidalgo galego que em
tempos privara com seu avô Dinis; no fundo, se não era a primeira
vez que ouvia falar dele, era como se fosse. Assentiu desajeitadamente com a cabeça à sugestão da aia. Inês foi para dentro preparar a
bebida. Pediu ajuda à sua criada de quarto, uma menina galega da sua
idade, que viera com ela de Albuquerque, chamada Teresa, mas foi
Inês que preparou a bebida na copa. Escolheu na cave um vinho transparente, aromatizou-o, misturou-lhe, com jeito mourisco, água fresca,
frutas e hortelã. Levou para cima, numa bandeja de prata, um jarro
com a bebida, um pratinho de figos, um copo alto, esguio e polido,
um guardanapo de linho.
- Meu senhor, a vossa bebida está pronta.
Pedro estava encostado ao umbral de pedra da varanda. Mirava
com curiosidade a parte baixa da vila, numa manhã de Sol. Em frente,
no desvão, estavam as vinhas, com as cepas retorcidas, onde despontavam as primeiras verduras. Descera as mangas e passara a jaleca pelos
ombros. Tinha a boca seca e vontade de beber, mas mais uma vez não
foi capaz de falar. Tudo o que conseguiu foi um sinal de agradecimento com a cabeça.
Inês estava diante dele com a bandeja. Serviu-se e bebeu tragos
longos. Quando poisou o copo e ergueu a cabeça para agradecer de novo, viu os cabelos de Inês em fogo. Ficou alarmado e fascinado ao
mesmo tempo. Era um lume que crepitava em silêncio; o rosto tinha uma luminosidade anormal. A pele acetinada e branca iluminava-se
por dentro, libertando uma luz intensa; os cabelos continuavam a crepitar, soltando faúlhas e labaredas. A coisa mais estranha que lhe podia
acontecer, numa manhã de Março, era ver assim uma mulher com a cabeça em fogo. Deu-lhe a impressão que Inês levantava os braços e os
agitava no ar, no meio das labaredas, como duas serpentes finas e claras, chocalhando no calor da areia. Depois, por fim, percebeu que o fogo recolhia ao corpo e os cabelos voltavam ao normal. Foi um momento de inocência e terror, ao qual Pedro ficou para sempre ligado. Viu a
essência astral da mulher, a mulher desencarnada, feita de gás e fogo,
e não fechou para sempre os olhos. Não cegou, mas ficou ainda mais
tímido de voz. O amor foi nele o terror fulminante duma revelação
cósmica, mas a célebre gaguez funda de Pedro, referida por Fernão
Lopes, só chegou depois, com a revelação da morte.
|