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PAULO MENDES PINTO |
A RELIGIÃO NA ESCOLA |
2. Os irrevogáveis antecedentes Históricos |
A nossa argumentação parte de um ponto base: queiramos ou não, gostemos ou não, Portugal é um país de base cultural católica. Sejamos, de facto, católicos, ou então evangélicos, protestantes, budistas, judeus, ateus ou laicos, etc, não nos podemos esquecer que a nossa cultura nasceu e se desenvolver num contexto que privilegiou secularmente um credo. Desse factor somos inconscientemente herdeiros e através dele nos apresentamos profundamente marcados na nossa forma de estar e de viver o mundo e os seus problemas. Não me estou a referir a um horizonte de falha; não se pode dizer que o decorrer da História é um erro, possivelmente nem poderia ter sido de forma diferente. O que quero afirmar é que, neste momento, início do terceiro milénio, temos uma bagagem de quase mil anos de cristianismo romano assumido pelas entidades de poder central enquanto a religião do colectivo. Não está certo nem está errado: é um facto histórico com o qual temos de conviver e que devemos ter presente sempre que pensamos em cultura em Portugal. A grande parte das vezes trata-se de uma mensagem pela qual não damos. As freguesias das nossas cidades e vilas têm nomes de santos, de marcos da organização eclesiástica; ruas e largos mostram muitas vezes o mesmo; paramos a jornada de trabalho no domingo, o dia do Senhor; fazemos férias pelo Natal e pela Páscoa; os bairros das cidades estão muitas vezes regrados urbanisticamente com base na localização das igrejas, etc. Neste capítulo, iremos fazer uma breve resenha de alguns dos principais momentos dessa relação constante entre o catolicismo romano e o decorre da História de Portugal. Por opção, vamos centrar o nosso discurso nos momentos delimitadores da nossa História: a fundação do reino e os séculos mais próximos de nós. Tentaremos perceber como a essencialidade e omnipresença do catolicismo na vida do Estado e das populações conduziu os tempos a situações de amor / ódio, de extremos, de expulsões e de regressos, mas nunca criando uma situação contínua e sustentada de afronta e afastamento ao universo católico, apostólico, romano. |
2.1. A identidade antiga do colectivo |
A nossa história mais recuada enquanto reino, enquanto unidade geopolítica coesa e com estabilidade de fronteiras, está fortemente marcada por uma dupla força centrada no universo religioso: a) tal como todo o restante Ocidente medieval, mais que reinos, para lá da ideia de Portugal, havia a grande mole que identificava o todo colectivo, a «cristandade». b) a viabilidade do reino de D. Afonso Henriques teve um forte apoio, se não se tratou mesmo do garante essencial, na relação que então se estabeleceu com o papado, e que culminaria na bula manifestis probatum (1179) em que o já auto denominado monarca foi tido como tal pela cabeça máxima da cristandade, o Papa. De facto, e debruçando-nos sobre o primeiro caso, podemos afirmar que é toda a noção de organização do mundo que tem em dados imaginários e simbólicos os principais referentes da construção geográfica. Mais que identidades políticas autónomas, a cultura medieval, onde Portugal logicamente se inclui, tinha como fundamentais referentes do espaço categorias simbólicas e espirituais. Como afirma Jacques Le Goff numa das suas obras mais marcantes, l’horizon géographique est un horizon spirituel, celui de la Chrétienté (Le Goff, 1965.). A identidade vigente era, essencialmente, religioso-simbólica e não integrava a dimensão da nacionalidade. O centro do mundo era, obviamente, a cidade de Jerusalém onde Cristo havia tido o seu martírio e onde se tinha dado a sua ressurreição. As restantes tradições religiosas monoteístas do Médio Oriente, judaísmo e islamismo, também herdaram a centralidade simbólica da cidade de David. As cartas de descrição do terreno, tomando como centro essa cidade, marcavam esta ordenação do mundo de forma explícita (deste facto derivam os nossos vocábulos da família de «orientar» = procurar, identificar o oriente, isto é, Jerusalém). Paralelamente, a identidade colectiva tinha na mítica Roma, tomada como cabeça da cristandade, a constante chama de um império cristão. Ideia algumas vezes buscada e acentuada pelo constante referente ao outro, ao árabe, ao islâmico que algumas vezes colocou em perigo os seus limites. A casa real de que Carlos Magno vai ser a figura mais conhecida, consegue a sua grande notoriedade ao travar em Poitiers as tropas islâmicas (732); quase quatro séculos depois, o Ocidente voltava a ter um Imperador (coroado pelo Papa, simbolicamente, na noite de Natal do ano 800) a ideia de cabeça da cristandade era assumida face aos perigos externos, face ao “outro”. Um milénio depois, as palavras da Comissão Europeia em relação à Turquia, e depois as de Valéry Giscard D’Estaing, fazem-nos pensar se a União Europeia não apresenta como que uma “Religião de Estado” que coincide com essa herança antiga mas profunda que é a ideia de cristandade. De facto, a ideia de cristandade forma-se e cimenta-se na afirmação da diferença face aos inimigos do todo cristão: essencialmente, muçulmanos a Sul, mas também ortodoxos a Oriente, e tribos bárbaras ainda não cristianizadas a Nordeste. A identidade em criação acentuava-se e encontrava matéria fortificante na identificação dos outros mediante a sua diferença religiosa. No que diz respeito ao segundo ponto, Portugal foi uma opção do papado no conjunto das reformas e das políticas levadas a cabo no século XII, nomeadamente a chamada Reforma Gregoriana, no sentido de reforçar o seu poder junto das esferas temporais: ao aceitar a vassalagem de D. Afonso Henriques, o papado como que se colocava acima e dominando os poderes reais e a hegemonia de Castela no quadro peninsular. Efectivamente, a viabilidade deste Reino de Portugal em muito passou pela relação simbiótica entre um ambicioso monarca e um papado desejoso de poder; Portugal será, em parte, uma peça no complexo jogo que Roma desenhará nessa época, conduzindo o Ocidente cristão a uma centralidade do poder papal como talvez nunca antes vista: no século seguinte, Roma destituía reis, como no caso do português D. Sancho II. Também no caso nacional, a construção da identidade em muito bebeu dos conflitos com os vizinhos: Castela, é claro, o nosso velho mito de Espanha, mas também o Islão a Sul, sobre quem recaia a Reconquista, como se de uma retoma totalmente legítima se tratasse. Sem descurar a complexidade da questão, a ideia de cruzada, nascida pela mesma época (são os cruzados, em viagem para o Oriente, que ajudam, por exemplo, na conquista de Lisboa em 1147), reside exactamente nesta noção de identidade colectiva, de pertença. Conquistar a Terra Santa é trazer de volta à cristandade um dos seus locais simbolicamente mais importantes, o seu centro do mundo. Por ambos os campos apontados, o que nos interessa é ver como a tal cristandade se encontra bem presente na formulação da identidade e da possibilidade do país. Somos parte da cristandade, tal como o era qualquer região do Ocidente Medieval; somos ainda uma possibilidade real de sobrevivência política devido a uma aliança com a cabeça dessa mesma cristandade. Mas mais, uma certa noção supra identitária centrada numa ideia de pertença religiosa foi comum em Portugal até bastante tarde. Mesmo a nossa modernidade, já em pleno século XVI, está profundamente marcada por essa forma de pertença a um grupo lato e supranacional. Só nesse quadro se pode entender a verdadeira dimensão da luta contra o crescente poder Otomano no Mediterrâneo, quer por parte do Imperador Carlos V, quer por parte de Felipe II de Espanha, quer por parte de D. Sebastião de Portugal. De facto, o episódio que leva ao fim da Dinastia de Avis/Beja e ao lançamento da matéria mítica que mais nos marcará pelos séculos seguintes, o sebastianismo, nasce deste quadro de luta da cristandade contra o inimigo islâmico. De resto, um certo ideal de cruzada, de defesa da cristandade contra os seus inimigos externos, está patente na forma como Afonso V, um século antes, recebera o apelo papal para a luta contra a invasão otomana que destruía o que restava do Império Romano do Oriente (a antiga Constantinopla caia em 1453). O nosso príncipe era, já em plena metade do século XV, em pleno Renascimento, o único eco desse chamamento da cabeça da cristandade. Neste caminho, até a interpretação, o sentido, o motor das chamadas Descobertas necessita de um móbil religioso para ser plenamente entendida. Não é que os Descobrimentos portugueses tenham tido como fundamental princípio a conquista religiosa, mas muitos autores da época apontam a expansão da fé como um dos desejos dos monarcas responsáveis: a expansão da fé, a busca do mítico Prestes João, a ideia de conquista de Meca (para troca com Jerusalém) por Afonso de Albuquerque - a teia interpretativa é complexa, implica muitos factores, mas o móbil religioso tem o seu lugar reservado. De facto, e citando Jorge Borges de Macedo, podemos afirmar que o património europeu assenta numa unidade de atitude, que tem permitido uma evolução diversificada, mas confluente (Macedo, 1988, p. 31.). Esta visão que coerentemente se pode generalizar à Europa ocidental, é ainda mais forte nos países do Sul, do Mediterrâneo. Quando a Europa Central e do Norte enceta o caminho da Reforma Protestante, o Sul mantém-se aliado e ligado a Roma de forma cada vez mais forte. Em plena idade das luzes, o português D. João V pagava para que em Lisboa se tivesse um patriarcado, e conseguia o título de Fidelíssimo, a Roma. |
2.2. O conturbado passado recente |
Depois desta breve passagem pela História mais antiga de Portugal, centremo-nos agora nos seus últimos séculos. Os séculos XVIII, XIX e XX são percorridos, em diversos momentos, por movimentos totalmente antagónicos face a algumas instituições muito significativas do catolicismo. Tais fenómenos confirmam fortemente a presença de Roma na formulação dos nossos ideais, da nossa forma de estar, da nossa forma de viver. Ou por recusa e consequente afrontamento a essa religião estrutural e secular na nossa sociedade, ou por afirmação da sua essencialidade, o catolicismo foi referência omnipresente na vida cultural, política e institucional do país. Na segunda metade do século XVIII (1779), a Companhia de Jesus era expulsa de Portugal. Há todo um quadro europeu que integra e enquadra este revés dos jesuítas, mas no nosso país a situação tomou contornos míticos no nosso imaginário colectivo. O fim da presença desta instituição religiosa no nosso país alterou profundamente alguns aspectos relacionados com o ensino: a principal parcela do ensino em Portugal estava-lhe até então entregue. Ora, pela mesma época em que os jesuítas são expulsos, verificamos que influentes e importantes intelectuais portugueses, alguns deles judeus radicados no estrangeiro, não se sentem à vontade para regressar a Portugal. Nomes como Ribeiro Sanches trocam correspondência com altos dignitários da nação, mas não regressam ao solo pátrio. A Inquisição ainda grassara muitas vidas na primeira metade de setecentos: a expulsão dos Jesuítas não equivalera a uma laicização significativa da estrutura social e política do reino. De facto, só no reinado de D. Maria já não haverá relaxados em carne, condenados à morte pelo Tribunal do Santo Ofício (e o número de autos da fé foi apenas de quatro); desde 1774 que esta instituição estava sob a directa alçada do Estado, não se podendo realizar autos sem a prévia autorização do monarca. Mas, imediatamente antes, no reinado de D. João V ainda tiveram lugar sessenta e quatro autos da fé (27 em Lisboa, 19 em Coimbra e 18 em Évora, a que corresponderam 3453 vítimas desde simples condenados a relaxados em carne). Por exemplo, o auto de 1761 foi particularmente famoso pela Europa: nele foi condenado e morto o Pe. Gabriel Malagrida e relaxado em estátua Francisco Xavier de Oliveira, o “Protestante Lusitano”. Na segunda metade de setecentos, a Inquisição ainda matou em Portugal quarenta indivíduos. Realmente, quando Voltaire escrevia o seu Candide, em nada a imagem das práticas da Inquisição portuguesa se tinha alterado aos olhos dos homens das letras europeias, e com razão. Acentuando a factologia desta aparente incongruência, pela mesma época, o Marquês de Pombal realizava um profundo passo no sentido da tolerância religiosa, promulgando legislação que dava por finda a diferenciação entre Cristão-Velho e Cristão-Novo (25 de Maio de 1773). Já antes, em 1748, Ribeiro Sanches escrevera um texto a propor esta medida adoptada por Pombal, a ideia era corrente, mas só com a Revolução Liberal (1820) é que veremos o regresso de algumas famílias judaicas a Portugal. Impressionantemente, só sete décadas depois da redacção desse texto de Ribeiro Sanches, nos anos vinte de oitocentos, a Inquisição é extinta (7 de Abril de 1821). Na 8ª sessão das Cortes Constituintes é proposta, por Francisco Simões Margiochi, a extinção do Santo Ofício e do Juízo da Inconfidência. A proposta era discutida a 24 de Março e o correspondente documento legal afirmando o fim desta instituição era votado no dia 26, sendo publicado no Diário das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes de sete de Abril de 1821:
Como acabamos de ver, o nascente e revolucionário Portugal liberal enceta nova fase de relacionamento com o mundo religioso católico. Posteriormente, as ordens religiosas são expulsas em 1834; é a perfeita imagem do fim do Antigo Regime. Mas esse facto, que tanto valeu ao Estado em hastas públicas onde foram leiloados os bens dos religiosos, não levou a uma laicização da sociedade. Com esta radical ruptura com o passado, eram as instituições e as estruturas do Estado as visadas, não o credo. Pela Constituição de 1822, o país continuava Católico Apostólico Romano; o seu artigo 17º era claro. Mas mais, pelo artigo 10º dessa Constituição, o Estado estava obrigado a ajudar as entidades religiosas a perseguir e a castigar os cidadãos que fugissem à ortodoxia católica: o Estado permitia, no texto constitucional, que a Igreja, pelos seus bispos, mantivesse a censura em matéria de dogma e de moral, auxiliando-a a atingir esse fim… Ao mesmo tempo, suspendia a entrada nas ordens de noviços e noviças (os primeiros a 23 de Março de 1821, e as segundas a 21 de Agosto do mesmo ano). O Estado é católico e assume a defesa da ortodoxia, mas afronta algumas formas de poder eclesiástico e religioso. Nos anos sessenta (1865-67), os meios intelectuais eram sacudidos pela polémica em volta da questão do casamento civil. Pelo meio, em 1848 era, finalmente, assinada uma Concordata com o Vaticano, resultado de uma franca estabilização da situação. Ao longo de parte do século, fortes linhas de contestação a estas medidas surgem; correntes ultra-montanistas agitam o tecido social, nomeadamente os mais próximos aos valores miguelistas, mais conservadores. Pessoas como o Pe. José de Sousa Amado dirigem jornais e revistas de expressiva tiragem, redigem apologias e levam ao prelo manuais escolares portadores de visões do mundo enquadráveis entre as mais retrógradas que se possam imaginar. Fruto desta forma conturbada de se relacionar com o mundo religioso, é a polémica que surge quando em 1857 as Irmãs da Caridade são acusadas de intervir no campo do ensino. A polémica sobe às instâncias parlamentares e ganha foro de agitação de rua; Alexandre Herculano é um dos inflamados cidadãos que dirige manifestações e outras formas de luta. Passados cinco anos, em 1862, essa congregação religiosa abandona o território nacional. Mas, apesar destas conturbadas situações, o Estado é confessional. Quando, nas célebres Conferências do Casino é apresentada uma comunicação sobre o Jesus histórico, por um membro da comunidade judaica, as autoridades apressam-se a proibir este evento. A Geração de 70 afastava-se e acusava violentamente o catolicismo e a sua relação com o Estado da causa da decadência pátria (veja-se entre outros textos importantes, Causas da decadência dos povos peninsulares de Antero de Quental, ou Liberdade de Cultos de Oliveira Martins). Perante esta sementeira no final de novecentos, o republicanismo português ir-se-ia desenvolver anticlerical por natureza. Logicamente, quando se tenta resolver questões religiosas, de cultura e hábitos sociais, com actos legislativos tempestuosos, tudo tende a voltar a uma relativa normalidade inicial. E assim aconteceu: uma monarquia que afirmava uma Religião de Estado em nada estava consentânea com um regime que expulsara as Ordens Religiosas. Quando já no século XX, em 1904, a primeira pedra da sinagoga da Lisboa é lançada, a construção não pôde, por lei, ter fachada virada para a rua, para o espaço público: a Rua Alexandre Herculano ainda esconde essa fachada por detrás de um outro edifício da época. O país tinha sido católico pelos séculos da sua história, e assim se mantinha na viragem de novecentos. Pelo censos de 1900, apenas 5000 portugueses seriam cristãos não católicos. Passado menos de um século, a jovem instaurada República, pela mão de Afonso Costa, ministro do significativamente designado Ministério da Justiça e dos Cultos, voltava a expulsar e extinguir, lançando uma ainda significativa perseguição ao clero. A sua sequência principal de decretos é, para 1910: a 8 de Outubro expulsa os Jesuítas e adopta um formulário laico na correspondência oficial, abolindo a expressão «de Cristo» na indicação do ano civil, a 10 do mesmo mês decreta a abolição do juramento religioso nos actos civis, a 12 do mesmo mês abole a quase totalidade dos feriados religiosos transformando-os em dias úteis de trabalho, no seguinte dia 21, suspende o bispo de Beja, a 3 de Novembro publica o Decreto-Lei sobre o divórcio, significativamente, a 25 de Dezembro publica o Decreto-Lei sobre o casamento e a protecção dos filhos; em 1911, é de referir o Decreto-Lei de 20 de Abril que separa a Igreja do Estado, e as anteriores crispações entre o Governo Provisório e o bispo do Porto, que acabaria por ser demitido, a propósito da Pastoral colectiva do episcopado português ao clero e fiéis de Portugal. No campo do ensino, a 22 de Outubro era extinto o ensino da doutrina cristã das escolas, e no dia seguinte eram anuladas as matrículas na Faculdade de Teologia de Coimbra só os alunos já em formação terminariam os seus estudos. A Constituição votada a 21 de Agosto de 1911 pela Assembleia Constituinte, presidida por Anselmo Braamcamp Freire, afirmava de forma clara e inequívoca, num forte articulado estrategicamente colocado entre a primeira dezena de estipulações, a laicidade do Estado e a liberdade de crença:
A situação apontada, completamente nova, era bastante clara e surgia como uma forte impressão que o novo regime pretendia não deixar ténue. Todo o anti-clericalismo desenvolvido desde o início do movimento republicano, dezenas de anos antes, e culminante na Revolução de 5 de Outubro de 1910, estava aqui patente. Pela mesma mecânica que conduz as sociedades humanas a encontrar os equilíbrios antes estabelecidos, o Estado Novo mais não fez que afirmar a catolicidade da Nação, como que respondendo, de forma oposta, à visão e às práticas executadas e preconizadas pela Constituição de 1911 e por sucessivos governos desde 1910. Afirmando genericamente a liberdade religiosa, herança impossível de perder da I República, assumia e levava para o campo do ensino a noção de que a nação tinha uma religião: a católica. Vejamos a Constituição aprovada por plebiscito a 19 de Março de 1933:
Nestes dois artigos temos espelhadas as duas formas como a questão religiosa foi gerida pelo regime de Salazar. Por um lado, era afirmada a catolicidade base da nação, através da adopção dos seus princípios para constarem no modelo de ensino. A noção de anterioridade e de identidade nacional são a base da justificação: orientadas aquelas pelos princípios da doutrina e moral cristã, tradicionais no país. Por outro lado, assumindo a relação privilegiada com a Igreja Católica, o Estado preferia um mais robusto quadro constitucional e legislativo para a sua própria salvaguarda (algumas das conquistas da República eram por demais importantes para o fortalecimento do poder do regime), criando todo um «Título», o décimo, sobre «Das relações do Estado com a Igreja católica e do regime dos cultos». Mais que criar um título próprio para a Igreja Católica, que teria futura expressão na Concordata assinada posteriormente, era a própria noção de religião que era formulada com base na identidade católica: era incluso nesse título claramente destinado à regulamentação das relações com a Igreja Católica (a sua designação era clara) que eram definidos os campos onde se deixava algum espaço de manobra aos restantes cultos e crenças. O “outro” só era conceptualizado com base numa norma pré-estabelecida; isto é, não existiam crenças com características próprias, existia a crença base e um tremendo saco onde cabia tudo o que nela não se integrava. Assim, e depois de um longo artigo sobre a Santa Sé e a forma como ela se relacionaria com o Estado, surge finalmente:
A Igreja Católica, no artigo 45º, gozava, logo à partida, de personalidade jurídica aceite e estabelecida na Constituição, como que fazendo parte da essência da nação. Em 1940 era assinada uma Concordata entre o Estado português e a Santa Sé. Durante dezenas de anos estes pontos permaneceram quase inalteráveis. Em 1971, a Constituição, profundamente reformulada, afirmava ainda no mesmo «Título X»:
Numa proposta de uma então criada comissão inter-confessional, integrada pelo pároco da Encarnação, o Presidente da Comunidade Judaica de Lisboa, e o Presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa, o artigo 45º dizia: O Estado, consciente das suas responsabilidades perante Deus e os homens, assegura a liberdade de culto e organização das confissões religiosas (Cruz 1990, p. 213.). Como nesta aparente postura ecumenista, o Estado era muitas vezes empurrado para uma militância teísta que em tudo negava a organização dos Estados Modernos: se esta posição tivesse avançado, a nação, pela sua lei maior, reconhecia a existência de Deus. Só a Lei 4/71, poucos dias depois da data de aprovação desta revisão constitucional, clarificava significativamente a questão religiosa, assegurando plenamente algumas liberdades, mas tomando sempre o catolicismo como a religião, por defeito:
O ensino era plena imagem desta visão que do próprio espírito humano se tinha: era a excepção ao que era tomado como sendo a regra que implicava o pedido de anulação da matrícula automática na disciplina de Religião e Moral, obviamente, católica. Só este caso era ponderado como possível, plausível e, acima de tudo, merecedor do apoio do Estado. Este princípio estava em total sintonia, em pleno acordo, com o ponto segundo da Base II: As confissões religiosas têm direito a igual tratamento, ressalvadas as diferenças impostas pela sua diversa representatividade. Estava legalmente aberto o caminho para a apresentação de uma relação entre o Estado e a Igreja Católica cimentada na tradição e na identidade colectiva. Ao estar plenamente inserida no currículo nacional, não só o Estado assumia a sua necessidade para a formação dos cidadãos, como previa os meios para que tal se concretizasse (salas de aulas, espaços nos horários, professores, etc.). É dito que as demais religiões podem existir e ter culto, mas só uma tem efectivo reconhecimento no quadro do ensino. É assim que chegamos a 24 de Abril do ano de 1974. |