PAULO MENDES PINTO

A RELIGIÃO NA ESCOLA
UM DESAFIO PARA A DEMOCRACIA E PARA A CIDADANIA (3)

3. O actual papel do Estado – o lugar das religiões desde 1974
O actual papel do Estado nas questões educativas tem de ser equacionado a partir da revolução de Abril de 1974. Por dois campos legais temos de encontrar as vias que foram sendo lançadas: o da Constituição e o da legislação específica sobre o lugar da religião na escola.

A Constituição pós-revolução apresenta de forma simples a relação entre o Estado e as confissões religiosas. Na sua «Parte I: Direitos e deveres fundamentais», «Título I: Princípios gerais», artigo 13º (Princípio da igualdade), ponto 2º a questão é colocada de forma cristalina:

  • Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.

Diz também no seu artigo 41º (Liberdade de consciência, religião e culto), a lei passa a cobrir, a incluir nos seus fins e aplicações, todas as religiões, sem deixar marca alguma da antes tida como religião tradicional. De forma significativa, imagem dos tempos e de quão complexa era o tratamento das confissões religiosas, fossem elas a católica ou outras, há uma quase anulação das instituições, vindo ao topo das prioridades da Constituição a individualidade de cada crente e a correspondente questão de consciência. Vejamos o texto constitucional:

  • 1. A liberdade de consciência, religião e culto é inviolável.
  • 2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
  • 3. As igrejas e comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
  • 4. É garantida liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades.
  • 5. É reconhecido o direito à objecção de consciência, ficando os objectores obrigados à prestação de serviço não armado com duração idêntica à do serviço militar obrigatório.

De alterações essenciais nas várias revisões a este artigo, apenas temos a apontar a inclusão da preocupação estatística já antes presente nas Constituições de 1911 e de 1933; agora, era assegurado que o tratamento estatístico nunca poderia implicar a identificação do inquirido.

Seguindo o articulado, logo no artigo 43º, a questão do ensino é retomada:

  • 2. O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.
  • 3. O ensino público não será confessional.

Assim, era no campo da educação que o Estado, através da sua lei constitucional, colocava de forma bastante clara a sua posição face às religiões e, logicamente, aquilo que mais lhes interessa: a formação catequética dos seus membros e a integração dos seus conteúdos no instrumento de massificação que é a escola.

De facto, a Constituição da República Portuguesa de 1976 veio abrir um novo ciclo no que respeita a esta temática, mas por mais de uma dezena de anos a situação ficou bastante idêntica.

Só em 1987, mais de uma dezena de anos depois da revolução de 1974, é que o Tribunal Constitucional deu o primeiro passo. Assim, e citando de Dias Bravo (Bravo, 2002): o Acórdão deste Tribunal, nº 423/87, no Processo nº 110/83, que mereceu o aplauso dos nossos constitucionalistas, veio a decidir-se pela não declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º do Decreto-lei nº 323/83, de 5 de Julho, que havia consagrado que o Estado ministraria o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, médias e complementares, declarando, todavia, a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do artigo 2º, nºs1, 2 e 3 do mesmo diploma legal.

Parece este aresto acolher a tese de que o diploma referido não seria inconstitucional por prever apenas ensino religioso católico, antes a inconstitucionalidade decorreria da não previsão de ensino das demais confissões religiosas não católicas. […] De qualquer forma, é de salientar que foi o Tribunal Constitucional que inspirou o começo do ensino da religião e moral evangélica no nosso País no ano lectivo de 1990/1991.

Mais estranho ainda, diria qualquer analista, a Lei da Liberdade Religiosa viria apenas com a viragem do milénio…

O matizado das religiões no nosso país tem-se tornado complexo nos últimos anos. Em Portugal, segundo a Comissão da Liberdade Religiosa (Ministério da Justiça), há 572 associações religiosas não católicas. Destas, 245 estão sedeadas em Lisboa, 84 no Porto, 68 em Setúbal e 30 em Leiria -grande parte delas apenas depois dos anos 90.

A juntar à longa a profunda tradição católica e à recente orientação do Estado Novo, a inexistência de uma política centrada na religião, qualquer que ela fosse, no pós-25 de Abril, veio como que criar uma situação de facto consumado. Efectivamente, quem no início dos anos noventa fosse a uma escola pública, apenas encontraria professores de Religião e Moral Católica, e não outras religiões.

Chegados ao fim do século, era gritante a necessidade de uma Lei de Liberdade Religiosa. Dezenas depois de as restantes «leis de liberdade» terem sido promulgadas, o campo religioso continuava sem a sua lei específica. Mesmo o universo católico mostrava essa necessidade, por exemplo, através da edição das Actas das V Jornadas de Direito Canónico, de 1997, sob o tema “Liberdade Religiosa: realidades e perspectivas”.

Dois foram os campos de discussão que nos interessam trazer para a argumentação. Por um lado, a lei implicava a definição dos agrupamentos, das associações religiosas que seriam abrangidas. Ora, entramos numa questão doutrinal importante: como pode o Estado laico definir, decretar, que religiões são válidas para integrar um grupo reconhecido? Mas, obviamente, por mais complexa que a questão seja, havia que definir, que começar por algum lado.

Por outro lado, como se resolveria, finalmente, a questão da religião na escola? Quem mais avançou nesta matéria foi o Bloco de Esquerda, apresentado um Projecto de Lei da Liberdade Religiosa e de Laicização do Estado (Nº 66/VIII), que no seu artigo 10º dispunha:

  • Não é permitido ministrar o ensino religioso em nenhum nível de ensino das escolas públicas.

Este projecto não foi aceite, mas a sua apresentação teve o mérito de suscitar uma ampla discussão sobre a problemática do ensino religioso na escola pública. Pena é que à data não se tenham criado consensos construtivos e fundamentados da questão em causa.

De facto, a recente discussão da Lei de Liberdade Religiosa em nada veio alterar a situação da(s) religião(ões) na escola. A forma como na sequência da referida lei não se avançou para o seu quadro de regulamentação junto dos credos mostra bastante bem a não centralidade da questão nas preocupações do Estado.

Vejamos esquematicamente uma breve síntese da legislação sobre a disciplina de «Religião e Moral»:

DESP 17/ME/90 (6-Fev-1990) Data da publicação: (7-Mar-1990)
Educação moral e religiosa católica
Despacho nº 17/ME/90, de 6-2-1990, D.R. (II série) de 7 de Março:
Determina que a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica, integrada nos planos curriculares dos ensinos básico e secundário, a que se refere o Decreto-Lei nº 286/89, de 29 de Outubro, suceda, para todos os efeitos legais, nomeadamente de concursos e demais efeitos previstos no Decreto-Lei nº 407/89, à disciplina de Religião e Moral Católicas.

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DN 6-A/90 (31-Jan-1990)
Educação moral e religiosa católica - Leccionação - Habilitações
Despacho Normativo nº 6-A/90, D.R. de 31 de Janeiro: - Estabelece as habilitações próprias e suficientes para a leccionação da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica.
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DESP 144/ME/88 (19-Ago-1988) Data da publicação: (2-Set-1988)
Universidade Católica Portuguesa
Despacho nº 144/ME/88, de 19-8-1988, D.R. (II série) de 2 de Setembro:
Determina que os alunos do Curso de Educação Moral e Religião Católica do Instituto de Ciências Religiosas da Universidade Católica Portuguesa realizarão a prática pedagógica do curso que frequentam nos estabelecimentos oficiais ou particulares e cooperativos dos ensinos preparatório e secundário.
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DN 70/88 (13-Ago-1988)
Religião e moral católicas
Despacho Normativo nº 70/88, D.R. de 13 de Agosto:
Define as habilitações consideradas como próprias para a leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas dos ensinos preparatório e secundário.
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P 344-A/88 (31-Mai-1988)
Religião e moral católica
Portaria nº 344-A/88, de 31 de Maio (suplemento):
Define regras a observar, nos processos de matrícula, para a inscrição específica na disciplina de Religião e Moral Católica. - Revoga as normas constantes dos ns. 6º a 10º da Portaria nº 333/86, de 2 de Julho e respectivos anexos (quanto ao ensino primário), e as normas constantes dos ns 1.1 a 1.3 do Despacho nº 121/ME/85, publicado no D.R., 2ª série, nº 138, de 19 de Junho de 1985 (quanto aos ensinos preparatório - 2º ciclo do ensino básico - e secundário - 3º ciclo do ensino básico e secundário).
Diário da República nº 126, Série I, 1º Suplemento, pp. 2346-(2) a 2346-(3)
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DESP 56/ME/88 (5-Abr-1988) Data da publicação: (19-Abr-1988)
Religião e moral católicas
Despacho nº 56/ME/88, de 5-4-1988, D.R. (II série) de 19 de Abril
Estabelece algumas equivalências ao curso complementar do ensino secundário, para efeitos da leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas, nos termos do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 469/82, de 14 de Dezembro.
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DESP 44/ME/87 (17-Nov-1987) Data da publicação: (3-Dez-1987)
Religião e moral católica
Despacho nº 44/ME/87, de 17-11-1987, D.R. (II série) de 3 de Dezembro:
Determina que o regime de frequência da disciplina de Religião e Moral Católicas previsto no Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, e no artigo 47º, nº 3, da Lei nº 46/86, de 2 de Julho, passe, para todos os efeitos a aplicar-se apenas àqueles alunos relativamente aos quais for feita declaração positiva e confirmatória nesse sentido no acto da declaração complementar de matrícula (publicada em anexo).
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P 333/86 (2-Jul-1986)
Religião e moral católicas
Portaria nº 333/86, de 2 de Julho:
Regulamenta a leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário. - Revoga a Portaria nº 1077/80, de 18 de Dezembro.
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DESP 121/ME/85 (4-Jun-1985) Data da publicação: (19-Jun-1985)
Religião e moral católicas
Despacho nº 121/ME/85, de 4-6-1985, D.R. (II série) de 19 de Junho:
Estabelece as normas por que se deve orientar o ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas nos estabelecimentos dos ensinos preparatório e secundário.
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DL 323/83 (5-Jul-1983) Data da publicação: (11-Jul-1983)
Religião e moral católicas
Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho:
Regulamenta a leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas.
Diário da República nº 152, Série I, pp. 2433 a 2434
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DL 469/82 (14-Dez-1982)
Religião e moral
Decreto-Lei nº 469/82, de 14 de Dezembro:
Estabelece normas sobre as habilitações para a docência da disciplina de Região e Moral.
Diário da República nº 287, Série I, pp. 4102 - 4103
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P 1077/80 (18-Dez-1980)
Ensino de religião e moral católicas
Portaria nº 1077/80, de 18 de Dezembro:

Regulamenta alguns aspectos do ensino de Religião e Moral Católicas no ensino primário e sistematiza num único diploma as normas vigentes sobre o mesmo ensino. - Revoga todos os diplomas ou normas anteriores sobre a matéria, nomeadamente a Portaria nº 21 490, de Agosto de 1965.

Para além do já citado acórdão do Tribunal Constitucional, é ainda de ter em conta os dois registos de jurisprudência e doutrina:

  • Ac. do Trib. Const. nº 174/93 de 17-2-1993 (P. 322/88) (17-Fev-1993)
    Ensino de religião e moral
    Tribunal Constitucional
    I - Nas matérias reservadas pela Constituição a competência legislativa da Assembleia da Republica, apenas são admissíveis regulamentos governamentais de execução, não podendo o Governo administrador emanar normas regulamentares que vão além da mera execução ou pormenorização da disciplina contida em lei anterior.
  • II - Limitando-se as Portarias ns. 333/86, de 2 de Julho, e 831/87, de 16 de Outubro, ao estabelecimento de meros pormenores de execução, de natureza secundária e cariz organização, sem conterem normação inovatória relativamente aos diplomas legais que visam regulamentar, não violam a reserva de lei referente a matéria de direitos, liberdades e garantias, constante do artigo 168º, nº 1, alínea b), nem o estatuído no nº 5 do artigo 115º da constituição.
  • III - Os princípios constitucionais da separação entre a Igreja e o Estado e da não confessionalidade do ensino público não obstam à cooperação ou colaboração entre aquelas duas entidades, incumbindo ao Estado o dever de proporcionar à Igreja Católica a possibilidade de esta ministrar o ensino da disciplina da Religião e Moral Católicas aos alunos cujos pais, ou quem as suas vezes fizer, manifestarem expressamente a vontade de o receber, com fundamento no princípio da liberdade religiosa, perspectivado na sua vertente positiva.
  • IV - O referido princípio da cooperação implica ainda o dever de o Estado fornecer condições logísticas a formação e apoio pedagógico aos professores da disciplina de Religião e Moral Católicas, bem como o estabelecimento de uma disciplina especial optativa, da responsabilidade da Igreja Católica, no âmbito das instituições que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, com vista a ficarem estes habilitados a assumir a educação moral e religiosa dos seus alunos.
  • V - Os citados princípios da separação e da não confessionalidade do ensino público não são incompatíveis com a dupla representação do professor da turma, no ensino primário, como representante do Estado, quando lecciona as disciplinas curriculares, e como representante da Igreja Católica, enquanto exerce funções docentes da disciplina de Religião e Moral Católicas, já que a docência desta disciplina surge como emanação da Igreja, apenas podendo ser exercida por professores de turma que, desejando encarregar-se dessa tarefa, sejam para ela propostos pela Igreja.
  • VI - Em relação aos alunos do ensino primário, são constitucionalmente legítimas as normas que estabelecem formas obrigatórias de ocupação alternativa dos alunos que não frequentarem a disciplina de Religião e Moral Católicas, enquanto decorrerem as aulas desta, no caso de a sua regência incumbir ao professor de turma.
  • VII - A circunstância de as normas regulamentares em causa apenas preverem a leccionação no ensino primário da disciplina de Religião e Moral Católicas, deixando de fora o ensino da religião e confissões não católicas, não constitui violação do princípio constitucional da igualdade, já que a discriminação das confissões não católicas apenas poderia traduzir eventual inconstitucionalidade por omissão, insusceptível de cognição no âmbito do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade.
  • Bol. do Min. da Just., 424, 249

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Anotação do Prof. Jorge Miranda ao Ac. do Trib. Const. nº 423/87
(26-Nov-1987)
Ensino de religião e moral
Tribunal Constitucional
ENSINO DE RELIGIÃO E MORAL NAS ESCOLAS PÚBLICAS.
O Direito, 1988, 475