PAULO MENDES PINTO

A RELIGIÃO NA ESCOLA
UM DESAFIO PARA A DEMOCRACIA E PARA A CIDADANIA (1)


pour qui jette sur lévolution religieuse de lhumanité un regard même rapide ou distrait, les continuités religieuses sont évidentes.
Pierre LEVEQUE, Introduction aux premières religions.

1. Introdução – um desafio para a democracia e para a cidadania
1.1. Após o 11 de Setembro
Depois do ano de 2001, falar de «retorno do sagrado» é mais que legítimo ou natural; Trata-se de uma necessidade avassaladora do nosso tempo. Muitas das estacas da nossa normalidade foram sacudidas e arrancadas por fenómenos directa ou indirectamente relacionáveis com a Religião.

Aparentemente, 2001 não será catalogado como a excepção: 2002 já nos forneceu ataques terroristas em número e dimensão suficientes para se perceber que estamos longe de epifenómenos no tempo, e que nos encontramos a viver novas linhas de continuidade em novas formas de luta e de afirmação de poder e de identidades.

A nível internacional, vimos e vivemos acontecimentos que nunca julgámos possíveis. Fomos levados a equacionar aquilo que nos parecia impensável. Obrigámo-nos a olhar para todo um campo que nos estava a ultrapassar: o fundamentalismo religioso e as suas armas.

Nesse ainda tão próximo ano, deparámo-nos com o vazio deixado pela destruição dos Budas afegãos em Badyan. Nada se pôde fazer; o mundo multiplicou-se em apelos e em tentativas vãs de auxílio, mas em nada essas movimentações resultaram. Vimos esse mesmo Afeganistão, meses mais tarde, tornar-se imenso na ameaça contra o Ocidente através de um movimento sem contornos definidos e com uma organização e objectivos em tudo diferentes do que poderíamos conceber.

Ruíram as torres do Worl Trade Center, mas com elas ruiu muito mais. Mas mais que ruir, muito se construiu a nível dos medos do dia-a-dia: pelo terrorismo, arma mais letal dos fundamentalismos, tornou-se a ter a religião no campo dos assuntos do quotidiano.

Efectivamente, a religião nunca lá deixou de estar. Nós é que nos habituámos a vê-la como um aspecto cada vez mais periférico do nosso Mundo Ocidental, retrógrado, ultrapassado, no fundo, o tal ópio do povo que exclamava Marx há mais de um século – mais tarde ou mais cedo, o sentido das sociedades era o esquecimento das religiões, a sua subalternização face a novos desafios da humanidade. E, de repente, sem pedir autorização para entrar, aí estava ela com manifestações que facilmente qualificaríamos de «bárbaras» apenas com guarita nas imaginações mais férteis de Hollywood.

Mas, internacionalmente, vimos e vivemos muito mais. Mais próximo de nós, foi-nos mostrado o drama de um grupo de crianças católicas em Belfast ao ser atacado quando se dirigia para a escola. Esta situação alertava o civilizado Ocidente para os problemas religiosos dentro das suas portas; problemas quase sempre escamoteados e considerados simplesmente políticos.

Pouco tempo antes, a Europa acordava para o facto de alguns países europeus ainda obrigarem à indicação da religião no Bilhete de Identidade. A Grécia, nossa colega da Comunidade Europeia, mergulhava numa profunda e inconclusiva discussão sobre o eventual fim dessa obrigatoriedade – a laicidade que logicamente atribuíamos à construção europeia mostrava algumas ambiguidades.

Um pouco mais tarde, o actual Dalai Lama visitava Portugal num clima algo perturbante: o país institucional e político não soube o que lhe fazer. A sociedade civil, ao contrário, organizou-se: as conferências multiplicaram-se, os eventos, as homenagens.

Por fim, e já em 2002, depois de superadas as que, aparentemente, eram as principais dificuldades para uma eventual integração da Turquia na União Europeia (abolição da pena de morte e integração das minorias étnicas), fomos surpreendidos com a posição da Comissão Europeia ao não integrar esta república laica no próximo pacote de países em processo de adesão. Afinal, o facto de a Turquia ser um país predominantemente islâmico terá tido algum peso no equacionar da situação; o conceito de Europa continua a coincidir com o de cristandade?

*

A predisposição para a compreensão dos fenómenos religiosos tomou, finalmente, posição vincada na nossa escala de prioridades. Por medo, por um certo retorno a práticas e ritos, por conhecimento, busca de conhecimento, ou até por moda, a religião entrou no dia-a-dia. O mundo já não pode esquecer-se, e não esquece, que a Religião está aí.

Hoje, quem for a Nova Iorque encontrará uma imensa cratera no solo, uma ferida que a América se esforçará por manter viva, para cultuar até ao fim dos tempos.

Fazendo um balanço possível, um ano depois do inesquecível dia 11 de Setembro de 2001, muito deveria ter sido equacionado. Ao contrário, para além da tal cratera-ferida de NY, pouco se alterou entre o um-ano-antes e o um-ano-depois desse dia na forma de construir as relações entre mundos de tradições religiosas diferentes.

O Ocidente, nomeadamente os EUA, continuaram a policiar o mundo e, em especial, a manter a mesma forma de relação com o chamado mundo árabe e islâmico. A questão palestiniana, por exemplo, longe de estar resolvida, viu uma maior intensidade na luta.

Talvez o maior problema deste também cada vez maior e mais assumido conflito entre parte do Ocidente e parte do mundo islâmico resida na impossibilidade de ambas as partes dialogarem de facto. O léxico cultural e mental que tentamos aplicar ao mundo islâmico em nada coincide com a realidade do terreno, muito menos quando a realidade a lidar se enquadra dentro de uma linha fundamentalista.

Há que ter em conta que certas categorias base da cultura ocidental não encaixam linearmente em todo o resto do mundo. Princípios como os da laicidade do Estado ou os Direitos Humanos são relativamente despropositados quando aplicados de forma simplista a qualquer outra cultura que não a ocidental onde nasceram.

Há uma diferença radical que interessa ter em conta ao analisar os principais contrastes entre as partes, entre o Ocidente dito de democrático e o Islão fundamentalista. No Islão que pratica o terrorismo sobre o Ocidente, mais que cidadãos, há crentes. Mais que Direitos Humanos, como nós os entendemos, há deveres para com Deus e para com o próprio Islão.

Mesmo o que normalmente designamos como política, nessa parcela de Islão não o é. Muitos dos Estados Islâmicos são confessionais no mais profundo rigor do termo. Não é que haja uma religião do Estado, é a própria organização do Direito que rege o Estado que se baseia na estrutura e nas convicções religiosas.

Neste contexto, em parte do Islão é, de facto, impossível separar política de religião. Nesses casos, o Estado não é laico e não o pretende ser. Isso não é visto como um defeito, é uma virtude e emana da esfera religiosa e se deseja manter.

Se tivermos em conta unidades populacionais onde, muitas vezes, a teologia e os dogmas religiosos são o centro assumido e incontestado da lei e da ordem, facilmente começamos a perceber que até a noção de guerra é diferente: o Ocidente preocupa-se em provocar baixas no inimigo com o menor custo de vidas do próprio lado; ao invés, nesse Islão fundamentalista, é a própria vida, mudando radicalmente a natureza do confronto, que pode ser usada como arma.

Isto é, na Palestina, quem morre sacrificando-se pela causa obtém o paraíso, uma recompensa celeste, não uma Cruz de Guerra. A diferença reside aqui.

1.2. A urgência do estudo das religiões

O estudo dos fenómenos religiosos, na sua complexidade e na sua teia de implicações sobre a mentalidade e cultura das sociedades, torna-se de dia para dia mais urgente.

A religião é, provavelmente, um dos campos no qual se desenvolvem ideias feitas com maior facilidade e com a mais surpreendente inconsciência do erro. Julgamos conhecer suficientemente a cultura religiosa dominante no nosso país, e em verdade pouco dela sabemos; supomos compreender as outras religiões com as quais lidamos interna ou externamente, nada de mais errado. Mesmo entre os profissionais do culto o nível de conhecimento sobre a evolução histórica do universo religioso em que estão mergulhados é, por vezes, quase inexistente, o que é assustador. Sobre a visão do outro reina quase sempre um abismo apenas superado por pequenas elites.

E no entanto, a construção de uma visão introspectiva e crítica sobre a nossa sociedade, bem como de um relacionamento saudável com as outras culturas passa, em boa medida, pela construção e divulgação de conhecimento sobre o fenómeno religioso que a todas atravessa.

Com muito ou pouco conhecimento mútuo, a verdade é que a presença do fenómeno religioso no relacionamento entre indivíduos e comunidades está aí em todo o seu esplendor. Sentimo-la forte no dia 11 de Setembro de 2001. Continuamos a senti-la sempre que nos cruzamos com sínteses noticiosas sobre o Islão fundamentalista, os conflitos entre protestantes e católicos na Irlanda, o problema da laicidade do Estado na Grécia, ou o peso político das igrejas evangélicas no Brasil, ou o incómodo ruído que os madrugadores sinos das igrejas católicas produzem no interior de Portugal, entre tantos outros exemplos dramáticos de conflitos mais ou menos violentos.

Alguns países europeus seguem as passadas já antes lançadas pelo Canadá: o Ministério da Educação francês decretou recentemente o ensino das religiões nas escolas. Assumindo o papel laico do Estado, e não um papel menosprezador do fenómeno religioso, Jack Lang anunciou recentemente a criação de uma disciplina obrigatória, no Ensino Secundário, sobre as Religiões.

Porquê? Essencialmente porque o conhecimento fomenta a tolerância, a visão compreensiva, tendencialmente igualitária e o não preconceito face ao tal outro. Mais, para além da noção e da ideia de tolerância, o conhecimento mostra a todos os que com ele convivem, que só pela multiplicidade a sociedade se completa e as partes se complementam; não é só o catolicismo que tem um lugar na sociedade, é toda a grelha da variação que é desejada e que cumpre um papel cívico.

Ainda, os indivíduos, tendo deixado de ser maioritariamente crentes ditos de praticantes, deixaram de ter uma cultura base sobre a sua própria cultura religiosa. Não havendo, nem tendo lugar, uma formação religiosa, é a própria sociedade na sua pluralidade que deixou de se encontrar nas noções culturais de religião (sejam as religiões minoritárias, seja o próprio catolicismo). A laicidade do Estado implica a formação para a compreensão dessa heterogeneidade, dessa multiculturalidade cada vez mais acentuada à medida que também a origem dos cidadãos é mais díspar.

Os massivos fenómenos migratórios levam a sociedade ao confronto com a sua própria ignorância e incapacidade: em 2001, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras concedeu 126.901 autorizações de permanência (45.233 a cidadãos ucranianos, 8.984 a moldavos, 7.461 a romenos, e 5.022 a russos); a esmagadora maioria destes cidadãos é de raiz cultural não católica. A estes números de 2001, altamente marcados pela origem leste europeia, há a juntar a grande comunidade guineense que é islâmica, a crescente comunidade hindu, a imensa comunidade brasileira com as suas sínteses afro-brasileiras e os cultos evangélicos, entre muitas outras. Nos últimos dez anos, de acordo com os censos, a população residente de estrangeiros duplicou; desta população, 81% encontra-se dentro dos limites da idade activa, isto é, não são idosos e permanecerão em Portugal durante um significativo número de anos.

Qualquer sociedade pretende ter os seus cidadãos perfeitamente capazes de tomar consciência cívica – seja ela também religiosa ou não – face aos desafios do mundo, sejam eles internos ou externos.

Como ter uma consciência crítica e construtiva face aos fenómenos religiosos que nos avassalam o dia-a-dia se os indivíduos nada sabem da génese, do desenvolvimento, da implantação e dos fundamentos dessas religiões?

Que sabem os portugueses de formação cultural média sobre o Islão, sobre o Judaísmo, sobre o Protestantismo, sobre o Induísmo?

Que quantidade de verdades feitas julgamos serem correctas nos juízos de valor que fazemos quando nos questionamos sobre o próprio cristianismo católico em que nascemos e em que a maior parte de nós foi baptizado?

A nossa sociedade deve pretender formar os seus membros e dar-lhes as ferramentas mínimas necessárias para a execução dos seus direitos e deveres de cidadania. Neste momento de globalização, incluindo religiosa, uma dessas ferramentas essenciais é o estudo das Religiões, o conhecimento da sua génese, história e desenvolvimento, enraizamento, vivenciação e fundamentos.

Onde se pode encontrar o ecumenismo de que tanto se falou e escreveu nos últimos anos? Neste momento só se fala de fundamentalismo. Não é exactamente o oposto?

Talvez a rotação essencial a fazer resida na valorização cívica do conhecimento e da compreensão dos factores de identidade das comunidades religiosas. Com credo ou sem credo, uma cultura baseada no conhecimento cimenta a noção de “si”, e ao mesmo tempo a possibilidade de dar um lugar ao “outro”.

E em Portugal? Infelizmente, no nosso país reina sobre este domínio um silêncio quase ensurdecedor. Numa altura em que muitos dos nossos parceiros europeus já avançam há largos anos nesta questão, equacionando-a nomeadamente a partir do universo escolar, nós apenas ensaiamos alguns gestos. Ora, a escola é o instrumento primeiro de construção de uma sociedade; é nela que se concentra o essencial do que queremos transmitir, do corpo de saberes e da praxis que desejamos serem os nossos através das gerações vindouras. É, por isso, o local privilegiado para fomentar uma cultura de conhecimento e de capacidade crítica sobre os aspectos mais marcantes da(s) nossa(s) cultura(s).

Num quadro em que, a todos os níveis, a compreensão dos conflitos entre grupos e sociedades passa cada vez mais pelo entendimento dos fenómenos religiosos que os enformam, o estudo científico das religiões é uma ferramenta de tomada de consciência fundamental. E a sua ligação ao universo escolar, à educação dos cidadãos de amanhã, é uma questão que não pode continuar adiada.

Portugal é um dos países em que a cultura católica dominante corresponde cada vez menos a uma efectiva percentagem hegemónica de cultuantes, em que a erosão das referentes cristãs tradicionais é bastante acentuada. Por outro lado, a crescente mesclagem étnica da população (emigração tradicional oriunda dos PALOP, e populações totalmente novas, vindas do Brasil e de países do leste europeu) lança inevitavelmente novas formas de religiosidade no tecido social. Perante este quadro, cabe ao Estado tomar em mãos a formulação de uma cultura de cidadania que inclua a religião como um lugar comum, não de culto, mas de entendimento, de diálogo.

Muito se tem falado (e muito mais se falará) sobre o ensino das religiões na escola. A recente polémica em volta do lugar curricular da Religião e Moral é o claro exemplo de como pouco se tem reflectido sobre a questão, e de quão premente ela se nos apresenta.

De facto, a recente proposta de inclusão curricular da disciplina de Religião e Moral por parte do Ministério da Educação veio levantar fortes protestos do PS e do BE. Entre acusações de inconstitucionalidade e pedidos de esclarecimento, o Governo PSD/CDS-PP recuou.

A solução foi, a nível de consensos, a melhor, mas o importante é que, apesar de esta não inclusão ser positiva, mais uma vez, não foi aproveitada a polémica para o Estado se definir ao certo sobre a questão da religião na escola. Não se definindo, a fundo, esta questão, adia-se eternamente o esclarecimento da própria posição do Estado face às confissões.

Este adiamento inconclusivo é, logicamente, imagem da complexidade da problemática em causa.

O primeiro ponto que o Estado deveria definir tem a ver com a natureza do que transmitir: quando se fala em religião nas escolas está-se a falar do quê? «ensino religioso» ou «ensino das religiões». São duas realidades totalmente diferentes no posicionamento do Estado e nos objectivos a atingir.

Por um lado, a identidade nacional construiu-se ao longo dos séculos anexada a uma identidade supra-nacional que é a de cristandade. Mas, por outro lado, a sociedade é cada vez mais confrontada com os desafios constantes das religiões: é a desagregação das grandes religiões históricas, é o nascimento de novos movimentos religiosos, é um certo regresso ao sagrado, é a emigração e o nascimento de sensibilidades totalmente novas.

É todo um conjunto de desafios que interessa integrar na cidadania. É a identidade do todo social que deve residir, modernamente, no próprio Estado e não fora dele. Isto é, a nossa identidade deve-se encontrar no próprio Estado, que é laico, que se identifica por si próprio e não por pertencer à “cristandade” ou outra qualquer noção de pertença que esteja acima dele. É nesta dimensão que se constrói a cidadania participativa que, desta forma, não deixa parte da população de fora.

Da mesma forma, é de esperar e de desejar que todos os grupos minoritários se sintam tão portugueses quanto os católicos ou os ateus.

É urgente equacionar o lugar das religiões na escola, definindo claramente o lugar que o Estado lhes confere e o que, civicamente, espera do desempenho das funções correspondentes.

No sentido de fornecer ao leitor algumas ferramentas para uma crítica consciente e cimentada no conhecimento da complexa teia em causa, iremos fazer um percurso desde alguns factores da nossa identidade mais recuada, até aspectos da nossa História mais recente, assumindo a nossa herança cultural, obviamente hegemonicamente católica, mas aceitando e tornando visíveis os desafios actuais da cidadania.