Há muito, muito tempo, beijar era um acto que se
dividia em várias dimensões. Tudo podemos sistematizar e organizar
julgando que assim criamos conhecimento. Os romanos tinham 3 tipos de
beijos: o basium, trocado entre conhecidos; o osculum,
dado apenas em amigos íntimos; e o suavium, que era o beijo dos
amantes.
No beijo ao anel dos bispos ainda temos uma herança do
mundo romano. Contudo, é o suavium que aqui nos interessa, a
mesma raiz linguística que nos remete para o belo texto religioso musicado
para coros por muitos dos mais magistrais mestres em composição.
Ao contrário da mundivivência latina, hierarquizada e
quase por castas, o beijo nos lábios, na boca, remete-nos para o campo da
partilha, e não da hierarquia. No beijo todos são iguais. No beijar, as
duas bocas são a imagem da igualdade na dádiva.
E o que são dois
amantes? Recordo um amigo que há uns meses dizia numa conferencia que a
base da palavra francesa para conhecimento era exactamente a ideia de
«nascer com...». "Connaître" = "con"+"naître". No fundo, só conhecemos
aqueles com quem nos damos de tal forma que tornamos a nascer. Se o êxtase
sexual pode ser solitário, o beijo dificilmente é masturbatório. Há sempre
um outro no beijar. É sempre com...
Há beijos que ficam na memória. A intensidade, a
doçura, tudo neles nos deixa recordações inesquecíveis. Os lábios, a pele,
os jeitos de entrega e de partilha. Sim, recordo a imagem do texto
gnóstico em que o beijo de Jesus a Maria Madalena era... de amante ou de
transmissão de sabedoria?...
Mais que igualdade, o beijo é, de facto, conhecimento –
e agora não o cartesiano, não hierarquisador, mas interior, do ser
irrepetível que cada um expressa no beijo. É do campo da Verdade, o in
vino veritas, ou inebriamento desse mesmo néctar como o Cântico dos
Cânticos nos indica.
O beijo possibilita, numa catadupa de sentimentos,
aceso ao íntimo, ao recôndito e tantas vezes escondido ou esquecido. O
beijo marca. Um beijo deixa marca como a que ficara no ombro – “toquei-te
no ombro e a marca ficou lá”, dizia Sérgio Godinho; se esse
toque tivesse sido um beijo, desejo eu, Estrela!
No limite, na troca de um beijo intenso, nas
humidades e fluídos variados, há um renascer com a parceira, há um
baptismo vivido, uma imersão, na intensidade do Eu e do Tu que se
misturam.
Sim, o Beijo é um conhecimento que é entrega, porque
partilha. É o «Com» que dá sentido. Um sentido recíproco que torna todos
os momentos verdadeiramente únicos, irrepetíveis e de constante
re-nascimento.
Renascer, crescer, viver. Tudo se conjuga com
beijar.
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Paulo Mendes Pinto (Portugal).
Director da Licenciatura e do Mestrado em Ciência das Religiões na
Universidade Lusófona, onde também dirige o Instituto Al-Muhaidib de
Estudos Islâmicos. Recentemente foi nomeado Embaixador do Parlamento
Mundial ads Religiões (Oct. 2014). Especializado em Mitologia Antiga,
dedica actualmente o sue trabalho à definição do campo disciplinar da
Ciência das Religiões, e ao Diálogo entre as Religiões e Cidadania. Foi um
dos coordenadores dos volumes Evangelhos - Comentados (2005, 2006 e 2007),
que reuniram mais de 150 altas individualidades nacionais e lusófonas em
torno de comentários a trechos do Novo Testamento, reunindo colaboradores
de quase todos os horizontes religiosos presentes e Portugal. Com Mohamed
Abed, foi fundador do Clube de Filosofia Al-Mu'tamid, criado entre a Un.
Lusófona e a Comunidade Islâmica de Lisboa. Dirige as entrevistas
«Conversas em Religião» onde regularmente se entrevistam importantes
personalidades religiosas. Na área da Ciência das Religiões foi o
responsável por diversos projectos de investigação, entre eles o Inquérito
à Cultura Religiosa em Portugal. Participou também nos projectos FCT
«Dicionário Histórico das Ordens e Congregações Religiosas em Portugal»,
onde coordenou a equipa encarregue das Ordens Religiosas Masculinas.
Coordenou, na sua fase inicial, a participação portuguesa no projecto
«EUREL - Données sociologiques et juridiques sur la religion en Europe»,
da Un. Robert Schuman e do CNRS. Participou, também, no projecto do
British Council «Our Shared Europe». É ainda investigador da Cátedra de
Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Universidade de Lisboa, onde é
o responsável editorial pela revista científica Cadernos de Estudos
Sefarditas. Em termos de investigação, coordenou os projectos «Dicionário
dos Italianos Estantes em Portugal» e «Dicionário Histórico dos Sefarditas
Portugueses». Participa, actualmente, nos projectos FCT «Isolados
lingüísticos e religiosos no nordeste de Portugal: aportes da Genética e
da Demografia» do IPATIMUP, da Un. do Porto, e «Iluminura Hebraica
medieval em Portugal» do Ins. de História da Arte da Un. de Lisboa.
Actualmente, é o responsável pelo projecto de catalogação dos manuscritos
portugueses da Biblioteca Ets-Haim / Montesinos da Sinagoga Portuguesa de
Amesterdão, apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Consultor da
Associação de Professores de História. Fundador do Observatório para a
Liberdade Religiosa. Membro da redacção ou dos órgãos científicos de
várias revistas internacionais. Colaborador regular do jornal Público onde
assina a secção Religião na Cidade. |