Revista TriploV . ns . nº 64. abril-maio . 2017 .
Homenagem do Triplov aos Capitães de Abril

Ronaldo Cagiano Barbosa (Brasil). Cagiano publica em diversos jornais e revistas do país e do exterior, dentre os quais Jornal do Brasil, Hoje em Dia, Jornal de Brasília, Correio Braziliense e revista Cult. Obteve o primeiro lugar no concurso Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com o livro de contos Dezembro indigesto. Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, Brasília, 2001), Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, Brasília, 2001) e Todas as Gerações - O Conto Brasioliense Contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006).

RONALDO CAGIANO

"Renascimento" e outros poemas
 
 

RENASCIMENTO 

 

É sempre amanhecer depois daquele outubro.

 

A vida, que era longe,

território insosso onde dormiam meus fantasmas,

já não é a seara onde semeei as desilusões:

eis o planeta onde não me escondo,

porque resgatado dos abismos. 

 

Quebrei o silêncio dos invernos

destituí do trono o inferno geral

em que a existência havia se corrompido. 

 

Onde tudo parecia distante

como um atol de sarças venenosas

agora é sonho que se materializa,

habitante que sou de um mundo sem escamas.

 

MARCHA INSONE

 

                               “...existir é sangrar.

                                   Hildeberto Barbosa Filho

  

Havia sempre uma madrugada a vencer

feito Sísifo na interminável caminhada:

 

viver era a pedra renovada

sob os ombros que suportavam

o rigor das punições. 

 

Contra a escuridão

planejei caminhos de fuga,

mas sempre era o boicote

ou a soez tocaia. 

 

O caminho longo sob a escuridão impenetrável

já não é a pirâmide que desafia

nem a esfinge que devora:

 

teu coração decifrou para mim

os códigos da batalha

          

no teatro insone

           entre sóis hibernados

 

e a vida que passava sonâmbula

acordou-me antes da sinfonia dos galos.

 

 

Penetrei o vazio,

rio imóvel a estancar-me a felicidade,

para me reencontrar nos mistérios

de um coração aberto

                                     feito asas de anjo.

TERRA EM TRANSE 

 

Sobre as escarpas sem fim

lá onde o horizonte se confunde com o tédio

dos olhos que vêem um mundo sem conserto

trovoadas rangem em meu coração.

 

São as catedrais de dúvidas

que se levantam

e insistem

no duro engenho das compreensões.

 

As vozes agudas ferroam

com a mesma intensidade dos acicates:

consciência efervescente

no vácuo das torres de marfim inócuas

que habita os corações.

 

Cataguases Buenos Aires Teerã

Berlim Pirapetinga Lisboa

Nova York Brasília

Alentejo

geografias do ocaso

onde pululam pássaros aziagos

 

e os homens ensimesmados

habitam cidades sem memória,

cemitério dos vivos.

 

Museu de ossos

expondo olhos extenuados

pela visão do território devastado

com suas reminiscências de luto

miséria

medo.

 

Sussura bem longe uma chuva

e suas águas

as mesmas que invadiram

os porões da infância

é agora rio imóvel

que não lava

a intempérie das mortes antigas

que se renovam

nos obituários que não se fatigam.

INSONDÁVEL 

 

O apito do trem

o atrito do trem

o arbítrio do trem

 

            Como a serpente histérica

            rasgando os montes

            a existência vai c(r)avando

            em nós uma estrada de mistérios

 

            No duelo coma  vida

            a literatura me concede suas armas

 

            Tão triste como um passado

            tão vivo como uma ferida:

            assim é o tempo

            com sua carpintaria de enigmas

            a sagração dos labirintos

 

 

GÊNESE 

 

Busco na palavra sua unção,

labirinto de paradoxos

em que mergulho

como escafandrista a garimpar (im)possibilidades.

 

Território de invenções,

ela me estende a ponte

entre o sagrado

         e o profano

 

Em cada manhã

rompe com sua insistência de rio.

Meticuloso engenho do verbo

que se faz silêncio

            ou boato

 

Rumino a sua nudez

ou desvelo as suas rugas.

 

Entre a fuga

e os deslizes

o poema vinga

      

           rosa intimorata no asfalto

 

nutre-me do que é míngua

recicla-me do que é sangue.

 

ANIMAL DA NOITE 

 

No desterro de um instante qualquer

um homem sem rosto

                  sem pátria

atravessa a avenida

como um pássaro

 

Balé débil na dança das horas

 

o ritual se repete

em cada lixeira:

garimpo de sobras

 

        Só a lua o abastece

        da impossível claridade

 

O sol que amanhã virr,

inevitável para nós,

será tão serôdio para ele

como um pão dormido.

 

Sem limites

para sua solidão

ele colhe a dura oferenda

o que reverbera do caos

o que surge das privações

em meio à pontualidade do nada

               que beatifica

               seus desertos

enquanto tenta (re)colher

no pomar infértil da vida

o frutos amargos

                da manhã sempre adiada.

 

AMOR

 

 

Quando estou diante de teus olhos,

eis o espelho em que me reconheço.


Esta luz

convulsiona meus sentidos

condenando as imagens provisórias

e arquivando todo o susto de viver

 

Agora vejo por inteiro

os cacos reunidos de um vitral

e você está ali, sem perceber,

cirurgiã dos meus passivos

 

Esculpindo na epiderme de outrora

o corpo útil

que recolherá a alma

agora ressuscitada dos íntimos naufrágios

 

A sombra do que fui

extingue-se

no crematório das ruínas. 

 

PORTO E ALIMENTO 

 

Teu corpo é tudo que anseio:

 

refugio pros meus desejos

na rota dos meus cansaços.
 
Campo florido de enigmas

           entre um pomar de mistérios e um regato de sonhos.
 

 

ANTEVISÃO 

Há na saudade a ciência do intangível,
flor de lótus furando o asfalto da noite
nesta antemanhã de soluços.  

 

MIRAGEM

Tecelãos de mistérios,

teus olhos carregam todas as eras

 

            templo do qual enxergo tudo

 

eles me ajudam a decifrar o tigre no espelho

e a esfinge de Borges camuflada nos porões da nossa casa
onde um dia nos deixaram sozinhos

como à espera de um barco que nos levaria a outra margem

onde não haveria naufrágios

               nem serpentes

 

 

MOTIVO 

 

No coração

a palavra rumina

a indignidade do chumbo

que escurece as manhãs.

 

Com suas garras de luz

os versos que vingam

no deserto interior

anunciam o oásis

onde a linguagem sacia

a sede de sonhos.

 

Na manhã dourada

que se anuncia

entre um vento e outro

 

as estrelas mortas

ressuscitarão na obscuridade da alma

reverberando um farol de mel

contra as varizes do desencanto

sepultando o latifúndio as noites.

 

Eis o poema

 

           ponte dialética

 

entre a sintaxe do abismo

e a gramática dos silêncios.

 

PASTOREIO 

 

Hóspede do impossível

desafio as cartilagens do tempo

com as esporas do sonho.

 

Dos espasmos oníricos

com seu arsenal de enigmas

 

lavro uma geografia agreste

 

para colher

nas glebas da ansiedade

as ervas do êxito

com seus gumes de mel

 

Pastor de ilusões

a pregar no deserto de crepúsculos

converto-me em latifundiário de estrelas

e venço as varizes da noite

com meu repertório de delírios.

 

ROTEIRO 

 

Caminhos a percorrer:

 

as curvas do teu corpo

contêm todos os lugares

 

mapa de múltipla geografia

onde tudo é paisagem

 

e nele reencontro os porões da nossa infância

a caligrafia perdida dos cadernos

a ira de Deus nas cheias do ribeirão em fúria

os esconderijos secretos das bonecas

o diálogo com as serpentes

o irmão viajando com as Parcas

a fita despregada de seus sapatos bailarinando contra a estupidez da morte

a voz pânica da mãe

as hastes de seus sonhos explorando o invisível

a ferrugem nos brinquedos de lata

as trapaças da vida

os olhos cicatrizados por insônias

as latitudes do orgasmo

 

 

MOMENTO

 

Apenas a rosa

e o peso de sua beleza

contrastando

com a rude ambiência

da favela.

 

Há canteiros de incertezas

impedindo ao avanço das cores

 

 

            mas no ar dançam pássaros insistentes

            numa coreografia que se repete

            contra a sisudez do caos

 

Anjos de porcelana

se insinuam na parede sem cal

 

sussuram segredos de Rilke

entre balas perdidas.

 

 

CICLO 

 

Enquanto o cortejo seguia

em meio aos gestos automáticos

das mãos que cerravam as portas

 

        outros continuavam a vida

        imunes à que passava,

        despojada de sua última chama.

 

A cidade não seria diferente

porque amanhã

outras notícias viriam

 

e o rio no qual navegamos,

 

Tejo a repetir a lógica de Heráclito,

 

seguiria pontualmente

como o sangue em nossas veias,

entre urgências que se renovam.

 

Entre o solene despedir dos mortos

e a maquinal dor dos vivos

 

         a criança se demorava

         num olhar pensativo e inquiridor

         rumo ao insondável.

 

E percebia,

ainda na antemanhã de sua existência,

que viver é um lento aprendizado de extinção.

 

 

SOLIDÕES

 

A metrópole, fatigada me dá lições de entardecer.

 

Todas as estações cheiram a outono

e entre o burburinho dos animais metálicos

e o silêncio das almas

a ausência ergue suas catedrais.

 

Onde está a saída

nesse beco sem saídas – sumidouro da viabilidade humana,

território labiríntico onde a morte, Minotauro reciclado,

desfiando Dedalus,

resiste aos fios que uma Ariadne qualquer em vão estica?.

 

Um oceano confuso de corpos e olhares

decretando suas procelas

é o que aguarda na escura projeção

nessas pátrias sem nome e sem epiderme.

 
RESIDÊNCIA PROVISÓRIA
                         

           

Viajei mundos,

mas ainda não me (re)conheço:

duro é o trajeto  por dentro.

 

Registro de um percurso inacabado.

 

As solas intactas dos sapatos

resumem o muito que não andei.

 

O cansaço de existir

interdita o reconhecimento

do futuro.

 

Escravo da solidão eletrônica

nessa era de pastores mercenários

         (mascates da salvação improvável)

em quantos me divido

                    para me tornar inteiro?

 

Quantos deuses hão de morrer

para ressuscitar o Deus que tantos, em vão,

procuram nos shoppings centers de uma fé inócua?

 

As fotos na parede me desmentem:

esse rio que me leva,

cemitério de anzóis,

sabe mais do que não viu.

 

A pele da solidão não envelhece

– inúteis as plásticas –

nenhum bisturi

reduzirá o seu império,

 

e ela reverberando pelos cantos

seu canto de cisne da inutilidade existencial.

 

Até quando conseguirei unir as margens do abismo?

 

HOJE

 

Da estação do passado

restauro meus pensamentos

que um dia, em núpcias com a solidão,

segredaram com a melancolia.

 

Insubmissa,

a minha resistência

tocou a face da verdade

 

e na paisagem de teu rosto

chamei-te para reinventar o amor.

 

 

NOTÍCIAS                       

 

Agora já não és como antes,

leito indisciplinado

desafiando a opressão das margens.

 

Apenas um rio imóvel

onde jazem sonhos antigos

 

já não sei dos teus percursos

nem da linguagem ferina de suas cheias.

 

As mesmas águas

que um dia invadiram os porões

da minha infância

com histórias de perdas e sangue

agora retornam

com sua quota de disciplina

e fertilidade.

 

CARTOGRAFIA DO INEVITÁVEL

 

               Je viens au pur silence offrir mês

               vaines larmes.

                             Paul Valéry  

 

O que sobrevive

ainda é vida

no escasso minifúndio

de sua jornada.

 

Mapas de rugas

selaram teu rosto

com o inerte tecido da enfermidade.

 

A juventude sob escanteio

deserta a fisionomia

onde tudo é imobilidade

e a consciência paraplégica

não ultrapassa o maciço

de sombras.

 

A natureza

com suas garras de Chronos

foi tornando remota

a face antiga de meu pai.

 

Jazigo de células inócuas

teu corpo em descompasso

sucumbe ao peso

da verdade.

 

No leito em que

o tempo o devora

imune aos apelos dos antibióticos

o minuto a mais

faz a diferença

enquanto o que restou

da antiga força

se dissolve

no mar de fios sinuosos

entre o arruído das máquinas

e a inutilidade das orações.

 

Do claro-escuro

de seus dias derradeiros

nasce

o filho que nunca fui.

 

O RITMO DAS COISAS 

                     

O tempo

com sua máquina de esquadrinhar

esfarela o museu de ossos

escondido sobre minha epiderme natimorta.

 

 

O tempo

e seu evangelho de dissoluções

escultor insone

burilando o caminho rumo às Parcas.

 

O tempo

com sua vigília

sobre os escombros

em que nos transformamos a cada dia.

 

O tempo

arsenal de punhais

com a lógica taliônica

de sua rude cronologia.

 

 

O tempo

esfinge e abismo

no qual me lanço

para ser absorvido pelo insondável

na inexpugnável viagem ao vazio.

 

O tempo

animal invisível

que nos rouba todas as idades

e nos devora

com seu ritual insensato

              destes afiados

como uma nuvem gafanhotos.

 

O tempo

a moenda dos dias

impondo o ritmo das coisas. 

 
 
 
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Contacto: revista@triplov.com
ISSN 2182-147X
Dir.
Maria Estela Guedes
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