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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP) e autor de
Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro,
José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra
Selvagem, 2015),
Gonzaga, um poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher
Brasil, 2002),
Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003),
Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de
Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2012), e Direito e Justiça em Terras
d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre
outros.
E-mail:
marilizadelto@uol.com.br |
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ADELTO
GONÇALVES
Uma
radiografia da elite senhorial
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I |
De onde veio a elite senhorial
brasileira? De Portugal, claro. Mas não de
Lisboa. Veio, isso sim, em grande parte, do
Norte de Portugal e das ilhas açorianas. Na
maioria, os fundadores das famílias que
constituíram a aristocracia rural, da qual
resultaram alguns influentes políticos que ainda
hoje se destacam no cenário nacional, chegaram
aqui com uma mão na frente e outra atrás, em
busca da chamada “árvore das patacas”. À custa
de muito esforço, obtiveram sesmarias,
escravizaram indígenas e tornaram-se
latifundiários, escravocratas e capitalistas, ou
seja, “homens bons” no século XVIII. Quase todos
seriam pessoas de escassas letras.
Quem duvida que procure ler o
Dicionário
Histórico do Vale do Paraíba Fluminense,
publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico
de Vassouras (IHGV) e pela Prefeitura Municipal
de Vassouras, com o apoio da Nova Imprensa
Oficial do Estado do Rio de Janeiro, organizado
pelas historiadoras Irenilda R.B.R.M.
Cavalcanti, Neusa Fernandes e Roselene de Cássia
Coelho Martins com a colaboração de mais 21
pesquisadores, entre os quais se destacam
Antonio Henrique Cunha Bueno e Carlos Eduardo
Barata, autores do
Dicionário das famílias
brasileiras (São Paulo, Editora
Ibero-Americana, 1999).
Quem tiver a sorte de colocar as mãos neste
livro vai conhecer um trabalho pioneiro sobre
seis municípios fluminenses – Vassouras, Barra
do Piraí, Campos dos Goitacazes, Barra Mansa,
Resende e Volta Redonda –, que recupera a
história de 45 famílias tradicionais, além de
reunir informações sobre instituições culturais,
políticas, educacionais e religiosas. Constitui
ainda importante conjunto patrimonial e
histórico da época áurea do café que, no século
XIX, marcou os destinos do Vale do Paraíba
Fluminense.
Uma importante família foi a Andrade, que teve
início na região com a chegada em 1751 de
Cristóvão Rodrigues de Andrade, natural do lugar
de Nogueira da Costa na freguesia de São Pedro,
bispado do Viseu, que fica no encaixe entre o
Centro e o Norte de Portugal. Outra foi a
Antunes Moreira, cujo patriarca no Brasil foi
Manuel Antunes Aldeia, natural da Aldeia da
Ponte, termo da Vila dos Alfaiates, na Guarda.
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II |
Uma família que não se destacou por sua riqueza,
mas que ficou bastante conhecida no Brasil foi
aquela iniciada por João Augusto Soares Brandão
(1844-1921), nascido no povoado de Lomba da
Maia, na ilha de São Miguel, nos Açores, aliás,
a mesma terra do avô materno deste resenhista,
cujo pai era natural do lugar de Peias,
freguesia (hoje vila) de Carvalhosa, no concelho
de Paços de Ferreira, Norte de Portugal.
Brandão adquiriu as primeiras letras no Brasil,
tendo trabalhado como caixeiro em uma padaria e
charuteiro no centro do Rio de Janeiro, antes de
seguir a carreira artística, o que se deu depois
de assistir a várias peças do grande ator João
Caetano (1808-1863). Atuou em companhias
mambembes que percorriam as cidades do interior
do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Em
1883, passou a morar em Vassouras,
apresentando-se no teatro local. Um de seus
rebentos foi o célebre ator e comediante Brandão
Filho (1910-1998).
Uma família que se destacou em Vassouras foi a
de Benjamin Benatar (1809-1859), que nada tinha
de português. Era natural do Gibraltar,
Marrocos. Chegou ao Brasil em 1829,
instalando-se em Vassouras, em 1838, como dono
de botequim, com jogo de bilhar, e venda de
secos e molhados. Casou-se em 1841 no Rio de
Janeiro com a paulista Brites Maria da Costa
Gavião. Foi um dos comerciantes mais prósperos
da cidade, mas o episódio que o marcou para
sempre foi a opção no leito de morte de morrer
como judeu. Por isso, embora fosse participante
da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de
Vassouras, foi-lhe negada sepultura no único
cemitério da cidade.
Curiosamente, a família de Vassouras mais
conhecida também não era totalmente de origem
portuguesa: Lacerda Werneck, da aristocracia
rural cafeeira, do qual descendia Carlos
Frederico Werneck Lacerda (1914-1977),
jornalista, fundador do jornal
Tribuna da
Imprensa e da Editora Nova Fronteira, do
Rio de Janeiro, deputado federal e governador do
Estado da Guanabara (1960-1965), que teve
importante papel na articulação do golpe
civil-militar de 1964, até que, mais tarde,
decidiu romper com a ditadura (1964-1985). Teve
início esta família com Johan Werneck
(c.1670-1722), que se declarava de nação alemã,
embora haja uma corrente de historiadores que
indica esta linhagem como de origem irlandesa.
Ao contrário do seu filho Carlos, expoente do
pensamento conservador, o tribuno e escritor
Maurício de Lacerda (1888–1959) destacou-se como
advogado defensor de operários anarquistas e
comunistas. Era o ex-governador também neto
paterno do magistrado Sebastião Gonçalves de
Lacerda (1864-1925), ministro do Supremo
Tribunal Federal (1912) e ministro da Viação e
Obras Públicas no governo de Prudente de Morais
(1894-1898). Sua mãe foi Olga Caminhoá Werneck
(1892–1979). Embora nascido no Rio de Janeiro,
Carlos Lacerda foi registrado em cartório de
Vassouras e sempre esteve muito ligado à cidade.
Como o pai e os tios Paulo Lacerda e Fernando
Paiva de Lacerda, foi comunista até 1939,
período em que combateu a ditadura de Getúlio
Vargas. Naquele ano, rompeu com o movimento,
depois de concluir que aquela doutrina levaria
“a uma ditadura pior que as outras, porque muito
mais organizada”.
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III |
Uma vassourense ilustre foi Eufrásia Teixeira
Leite (1850-1930), mulher avançada para o seu
tempo, que viveu sua infância e adolescência
numa bela residência senhorial conhecida como a
Casa da Hera. Recebeu educação esmerada,
apreciava literatura, lia Johann Wolfgang von
Goethe (1749-1832) e contos de Edgar Allan Poe
(1809-1849).
Viveu um romance de 14 anos com Joaquim Nabuco
(1849-1910), advogado, herdeiro de latifundiário
pernambucano e defensor da liberdade para os
escravos, grande tribuno e jornalista combativo,
que despertava a ira dos conservadores que o
consideravam um “arrogante mulato nordestino e
perigoso abolicionista”, segundo a historiadora
Neusa Fernandes. Aliás, quem quiser conhecer a
fundo a história desse romance deve procurar ler
o livro Eufrásia e Nabuco (Rio de
Janeiro, Mauad, 2012), da historiadora Neusa
Fernandes, que teve acesso à longa
correspondência trocada entre os amantes.
O Dicionário também inclui verbetes
dedicados ao chefe quilombola Manoel Congo, que
teve seu memorial inaugurado em 1996. Manoel
Congo, com sua companheira Mariana Crioula,
liderou uma rebelião que envolveu mais de 300
escravos em novembro de 1838. Sufocada a
rebelião, Manuel Congo foi enforcado em 1839. O
memorial, um modesto monumento, hoje pode ser
visto no antigo Largo da Forca, localizado no
bairro da Pedreira, a 100 metros do centro
histórico de Vassouras. Sobre o quilombo de
Manoel Congo, Carlos Lacerda publicou em 1935 um
livreto assinado sob o pseudônimo Marcos.
Epifânio Moçambique, outro líder da revolta de
escravos ocorrida em 1838, é também recordado em
verbete. Coube ao coronel-chefe da Legião da
Guarda Nacional, Francisco Peixoto de Lacerda
Werneck, também senhor de escravos e
proprietário de fazenda de café, organizar a
grande força policial que sufocou a revolta.
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IV |
Neusa Fernandes é historiadora,
museóloga e pós-doutora em História e
Literatura. Professora da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) e da UniRio, é sócia
efetiva do IHGV e pesquisadora do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), além de autora de dez livros
de História e de Museologia, entre os quais
A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII
(Rio de Janeiro, Mauad, 3ª ed., 2014), outra
obra imperdível para historiadores e estudantes
de História.
Irenilda Cavalcanti é doutora em História Social
pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
professora adjunta e coordenadora dos cursos de
mestrado e graduação em História da Universidade
Severino Sombra (USS), de Vassouras. Sócia do
IHGV, é autora de capítulo do livro
História
Urbana: memória, cultura e sociedade,
publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Roselene de Cássia Coelho Martins é graduada em
História e pós-graduada em História do Brasil
pela USS, com mestrado em História Social pela
mesma instituição. Sócia-fundadora do IHGV, é
consultora e pesquisadora em História na área de
Arqueologia (em sítios urbanos e rurais) e
Arquitetura de patrimônios tombados.
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Dicionário Histórico do Vale do Paraíba
Fluminense,
de
Irenilda R.B.R.M. Cavalcanti, Neusa Fernandes e
Roselene de Cássia Coelho Martins, com
apresentação de Carlos Wehrs, membro emérito do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB). Vassouras-RJ: Instituto Histórico e
Geográfico de Vassouras/Prefeitura Municipal de
Vassouras/Nova Imprensa Oficial do Estado do Rio
de Janeiro, 344 págs., 2016.
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