As minhas primeiras palavras são de
agradecimento ao Autor e ao Editor pelo convite
que me fizeram, e pela honra que assim me dão,
para aqui proceder à apresentação pública deste
livro de José Manuel Monteiro,
A (im)perfeição
dos dias.
É sempre um motivo de júbilo verificar que a
poesia continua a ter os seus cultores, que há
novos poetas que por ela continuam a ser tocados
e que há Editores que à sua publicação dedicam o
melhor dos seus esforços.
Neste caso concreto de José Manuel Monteiro, se
é este o seu primeiro livro, autónomo e
exclusivo, há que reconhecer, com grande
satisfação, que
A (im)perfeição dos
dias se insere
numa colecção __ Luar de Poesia __ caracterizada
por um grande dinamismo. Basta dizer que lhe foi
atribuído o número 77, o que não deixa de ser um
facto simpático e agradável, propiciatório e
feliz, de algum modo um número perfeito (e mesmo
mágico para aqueles que, como eu, se divertem
com estas minudências). Também por essa via,
admitamos, se convoca a boa sorte e os melhores
augúrios para a obra que aqui apresentamos.
José Manuel Monteiro coloca a sua procura do
Graal sob o signo da perfeição. A mim parece-me
que o prefixo que ajuda a compor o título __A
(im)perfeição dos dias
__ deve ser entendido como modéstia de autor. E
foi talvez também por excessiva humildade que
ele não convocou explicitamente, ao nível dos
paratextos, o nome de Cesário Verde. É que a
mim, com franqueza o confesso, ao pela primeira
vez folhear o volume, o que logo me veio à mente
foram os versos famosos do poeta novecentista:
Se eu não morresse nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
constantes, como se
sabe, do justamente célebre O sentimento dum
ocidental, dedicado a Guerra Junqueiro.
Vejamos, no entanto, com algum pormenor, como se
organiza esta obra de José Manuel Monteiro.
Apesar de este ser o seu primeiro livro
publicado, e de os poemas não serem datados, é
manifesto que se trata de um poeta experiente,
conhecedor dos segredos da língua. Parte deste à
vontade lhe virá, certamente, para lá da idade,
do seu labor profissional de professor de
português (e de literatura). Ele tem,
visivelmente, uma cabeça bem arrumada e o que em
primeiro lugar se pode dizer deste
A (im)perfeição dos
dias é que se
trata dum livro homogéneo e coerente, e não duma
mera colectânea de poemas, como tantas vezes
acontece.
Ele reúne 77 poemas __
cá está, outra vez, o número mágico, ímpar,
símbolo da totalidade. Organiza-se em oito
partes, de desigual extensão, mas todas
precedidas por epígrafes __ ou dedicatórias,
apenas num caso __ de outros escritores. Talvez
se pudesse sugerir, neste ponto, que nos fosse
dada a indicação concreta das obras donde estes
excertos foram retirados __ já que se a mesma é
evidente para o poeta, já o não será para a
generalidade dos seus leitores.
O livro arranca com o
que poderemos chamar uma parte teórica,
Palavras vivas,
sobre a própria poesia, o instrumento, digamos
assim, de que o poeta se serve para alcançar a
almejada perfeição. São apenas três instantes
precedidos por uma epígrafe de Alberto Caeiro:
«Eu nem sequer sou poeta: vejo. / Se o que
escrevo tem valor, não sou eu que o tenho: / O
valor está ali, nos meus versos.» Entendo-a como
um apagamento do criador face à sua criação. O
poema que me parece mais eloquente deste ponto
de vista, mais significativo mesmo do que
quaisquer palavras que eu pudesse encontrar __ é
o terceiro poema desta primeira secção,
intitulado, singelamente,
Poema (página 10 ):
Um poema é vida: avança
/ sem medo / e em cada penedo / de serra
temerosa e altaneira / encontra a esperança / do
recomeço.
E ao chegar ao cume do
cabeço / (obstáculo transformado em verso) / a
bonança prometida / em cada vale apazigua, / dos
sentidos, a ansiedade.
Porém, renovado o
desejo, / como quem recebe um amoroso beijo, / a
profusão de uma estrofe / constrói-se dia a dia
/ na chama da palavra escolhida.
Feita a selecção / e
escrito verso a verso / o poema retrata a
perfeição / da imperfeição humana seu reverso.
Vêm depois seis composições que creio estarem na
origem da edição de todo o volume. José Manuel
Monteiro quis prestar uma homenagem aos seus
pais, no centenário do seu nascimento.
Quantitativamente é a evocação da mãe que
predomina, com quatro poemas, contra os dois do
pai, que são os primeiros. Como eu o entendo, ao
último verso __ «Fazes-me falta!» __ deste
segundo poema, dito
In memoriam.
A terceira secção destina-se ao desenhar do
mundo, ao balizar das fronteiras, ao fixar das
relações da família poética de José Manuel
Monteiro. Ele evoca aqui, ou fala, de algumas
das personalidades a cuja leitura foi mais
sensível. A epígrafe, de Antoine de
Saint-Exupéry, é particularmente adequada: «Cada
um que passa em nossa vida, / passa sozinho, mas
não vai só / nem nos deixa sós. / Leva um pouco
de nós mesmos, / deixa um pouco de si mesmo.» As
devoções, digamos assim, do nosso trovador
passam por Sophia de Mello Breyner Andresen,
Miguel Torga (um poema perfeitíssimo, Urze, com
dedicatória explícita,
página 21),
Ricardo Reis, José Carlos Ary dos Santos,
António Lobo Antunes, Eugénio de Andrade, Mário
de Sá-Carneiro e várias vezes, ainda que não
explicitamente, nem apenas nesta parte, outros
heterónimos de Fernando Pessoa.
Este poeta múltiplo, o único que pode
emparceirar com Camões e o único que como ele
tem sepultura nos Jerónimos, é talvez a maior
presença neste
A (im)perfeição dos
dias.
Não só figura, como vimos, nesta secção de
Pegadas,
como é sua a epígrafe que abre a parte IV,
Sensis
__
«Sentir? Sinta quem lê! __, e vários outros
passos me parecem denotar a sua frequência,
diurna e nocturna, como aos dicionários
aconselhava Mestre Aquilino Ribeiro. (Nas
páginas 90 e 92 as referências pessoanas são
explícitas.)
Esta divisão IV, tal
como a última,
Outonices
__ com uma inscrição de Augusto Gil: «Outono.
Morre o dia. / Cai sobre as coisas plácidas e
calmas / um véu de sombra e de melancolia / que
dulcifica e embrandece as almas.» __ introduzem
poemas sem título, apenas numerados, 8 no
primeiro caso e 4 no último.
Resta-nos falar __
até porque a apresentação de uma obra de poesia
não deverá ser longa __ das três restantes
secções. Em
Sensis
são, de facto, as
sensações que predominam __ e o vocábulo surge,
explicitamente, em cinco dos oito variações que
a integram. Lerei a número
5
em que ele, curiosamente, não figura __
página 38:
Explode coração louco! /
Já te resta muito pouco / da velha sensatez.
Perdeste a agilidade /
malefícios da idade: / estaticismo e rigidez.
Revolta-te, clama, grita
/ o amor é a nobre dita, / o elixir da
juventude.
Revive a velha paixão! /
Liberta-te, coração, Amar é plenitude!
O V conjunto
intitula-se
Emoções,
dez poesias em que é mais nítido o envolvimento
emocional, e mesmo erótico, do poeta. A epígrafe
preambular é de Fernando Pinto do Amaral __ «Não
vás embora, / precisarei de mais alguns minutos,
/ horas, dias, semanas, meses, anos, /
eternidades para te esquecer…». Referências
explícitas podem encontrar-se na página 44,
Cerejas: «Essas maduras cerejas / Que
encaixilham tua boca / Dizem: Não me beijas? /
Não é isso que desejas / na tua imaginação
louca?» mas é o poema da
página 45, Abraça-me,
que melhor me parece sintetizar o espírito desta
parte central.
Abraça-me devagarinho /
como se fosse de manhã / à hora em que o sol se
levanta / e tu cheia de carinho / me retiras
docemente a manta / fresca, sadia e louçã.
Abraça-me com paixão /
como se fosse meio-dia / e o sol em esplendor /
deitasse sobre a bela flor / a seiva da brava
alegria / e a semente da ilusão.
Abraça-me, não digas
nada / como a noite fechada / que envolve a
serra inteira / num beijo de melancolia. /
Aspira a brisa derradeira. / Abraça-me… Já é
dia?
Luarejos,
divisão sexta, é como que um intervalo, uma
espécie de repouso, um tomar de balanço, no
percurso do bardo. São apenas cinco poemas,
precedidos por uma citação de Miguel Torga __ «E
vão lá desdizer o sonho do menino / Que se
afogou e flutua / Entre nenúfares de serenidade
/ Depois de ter a lua!». Todos eles têm a ver
com a lua, ou o luar __ mas o quarto, intitulado
Tu,
página 59, é
uma pequena delícia:
Saio à rua / E no
espesso nevoeiro / Entrevejo-te. Pareces-me nua.
/ Mas vista de mais perto / Entre as gotículas
que joeiro / Finalmente acerto: / Não és tu, é a
lua!
E assim chegamos à
parte mais volumosa deste livro, a sétima,
designada por
Ocasionais,
29 poemas, precedida pelo seguinte excerto de
Cecília Meireles: «O vento do meu espírito
soprou sobre a vida. / E tudo o que era efémero
se desfez. / e só ficaste tu que és eterno.»
Este penúltimo conjunto de poemas de
A
(im)perfeição dos dias,
sendo o mais extenso é também o mais variado e
poderia mesmo funcionar como uma síntese de todo
o livro, e quiçá de toda a poesia do autor.
Formalmente é aqui
que comparece o primeiro dos dois textos em
prosa poética que integram o volume. (O segundo
é logo a seguir, mas já na última divisória do
livro,
Outonices,
com referências explícitas a Alberto Caeiro e
Ricardo Reis,) É aqui, na página 65, que figura
o eco assumido do Camões lírico, interrogando-se
o vate__ A quem «cantarei de amor tão
docemente?» __ e utilizando aspas, como quem
sabe dar o seu a seu dono.
Também aqui figuram as referências à liberdade
__ Em Abril, página 66 __ e os títulos em latim:
spes, esperança, nas páginas 68/69. O poema da
página 77
parece-me ser uma espécie de resposta ao carme
talvez mais famoso de Augusto Gil: «Batem leve,
levemente / Como quem chama por mim…», a Balada
da Neve, incluída no seu livro Luar de Janeiro.
Mas José Manuel Monteiro tem, neste caso, o dom
da concisão e não precisou de mais de duas
sextinas para tratar o mesmo tema,
Neve.
Caia lenta e breve /
levada no vento vindo / do alto cume dos céus /
envolta em ténues véus / ensaiando ao de leve /
um breve bailado lindo.
Caía lenta e branca / de
imaculada beleza / descendo sorrateira / caiando
de qualquer maneira / sem porta nem retranca, /
noivando a natureza.
E assim chegamos ao fim deste processo
panorâmico, à
vol d’oiseau
como diriam os franceses, sobre esta primeira
mas muito meditada realização poética de José
Manuel Monteiro, um nome a fixar. É altura de
terminar, mas não o quero fazer sem antes
explicar o título que dei a este meu trabalho,
«O sonho da perfeição». Mas pensando melhor,
afinal, creio que não será necessário alongar-me
em justificações.
Estou convicto que a
qualidade da poesia que aqui apresentámos é,
neste momento, óbvia para qualquer um de nós __
mais firmemente estabelecida do que estas minhas
hesitantes expressões que andaram à volta desse
objectivo sem do mesmo jamais se terem
assenhoreado.
Mas assim mesmo é que
deve ser, a poesia está e vai sempre à frente, e
sobrepuja em importância todas as paráfrases
que, quais borboletas tontas, possam andar à
volta dela, da luz que da mesma irradia. E é por
isso mesmo que eu me atreverei a pedir a todos
os presentes, dentro em breve, uma grande salva
de palmas: para celebrar a poesia em primeiro
lugar, esta linguagem divina que os deuses nos
deram para nosso consolo e superação, e depois
para felicitar José Manuel Monteiro por este seu
tão conseguido labor. Francamente espero __ e
assim termino __ que este vosso apoio possa ser
o estímulo suficiente para ele se abalançar à
publicação de outros títulos, já que,
visivelmente, as necessárias qualidades não lhe
faltam. O poeta está de parabéns, Apolo e as
musas estão certamente satisfeitos.
Muito obrigado a todos
pela vossa atenção.
Tenho dito.
Cristino
Cortes
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