Revista TriploV
ns . nº62. janeiro-fevereiro 2017 . ÍNDICE








Arlinda Mártires nasceu em Alfundão, Baixo Alentejo, na madrugada fria de 13 de Novembro de 1955. Entre as voltas pelo mundo, reside em Alvito, no Alentejo, local de culto, onde, impreterivelmente, tem de voltar, para preparar nova partida.
Licenciou-se, pela Universidade Nova de Lisboa, em Estudos Portugueses e Ingleses e fez Pós-Graduação em Literaturas e Culturas dos Países Africanos de Expressão Portuguesa.
É professora do ensino secundário desde 1989 e tem servido a língua e a literatura portuguesas em Portugal, na Guiné-Bissau, na Namíbia, em Angola e em Timor-Leste. Momentaneamente está de regresso à escola a cujo quadro pertence, em Viana do Alentejo.

 Tem quatro obras publicadas: Além-Rio, poesia, prémio nacional Raúl de Carvalho (1999); Guynea, poesia; Sete Histórias de Gatos, contos, em co-autoria com Dora Gago; e Impressões do real, poesia, prémio de poesia do Concelho de Alvito, no âmbito do prémio nacional de poesia Raúl de Carvalho (2013). Integra ainda a Nova Antologia dos Poetas Alentejanos, cuja direcção é de Eduardo Raposo. Obteve Licença Sabática e realizou um projecto literário do qual resultaram três obras: Fábulas de Portugal e da Guiné-Bissau (ensaio), Contos da Terra Vermelha (ficção) e Guynea (poesia; já publicado). Tem artigos e poemas dispersos em jornais e revistas e participa em conferências, tertúlias e eventos relacionados com a língua portuguesa, a literatura e a música.


ARLINDA MÁRTIRES

O circo

De Contos da terra vermelha
 

Alice acordara com o forte cheiro a maresia. Entre a névoa do mosquiteiro foi descortinando os sons: os pássaros no seu jardim das maravilhas, as vozes na estrada, o chocalhar da água junto à janela, brincadeira de cardume por cima das margaridas... e o perfume salgado, melancia no verão, já perto dos lábios. Levantou-se e, no seu passo miudinho e rápido, abriu a janela. Sacudiu as pestanas, abriu muito os olhos e meteu-lhes dentro o tio Augusto, com a água pelos joelhos , dentes no canhuto (1), que lhe mordeu um bom dia, sinhôra e  sorriso no olhinho vivo e malandro, lá foi explicando que a água subira na vala e alagara o jardim e a estrada.

Alice atentou no seu jardim das maravilhas e não viu as margaridas, nem as begónias, nem as violetas, nem os amores-perfeitos e nem as muitas outras, trazidas semente de um supermercado europeu. Água – lodo cinza - , o cheiro a maré e o gargalhar da  enchente nas rótulas descarnadas do tio Augusto que num vaivém  acarretava enormes pedregulhos, a fazer de passadeira.

Alice embalou no barulhinho, olhou as copas das palmeiras ponteadas de sol e foi para outro filme – os jardins suspensos da Babilónia...

- Um jardim suspenso... É isso mesmo!... Umas pontes...tapetes de hera e rosmaninho...estrados de madeira, mesas, baloiços, o pano da tenda nupcial tuaregue e muitos véus (é exótico e protege dos mosquitos)...Em baixo, o charco... (lapsus linguae) o lago...Vou pedir ao tio Augusto que plante nenúfares... Será que fica bem um ou dois crocodilos bébés?...

Um grito fê-la sair da cena e entrar no mundo do circo. Brigite, a vizinha e companheira de madrugares, saía de casa de cadeira em cadeira.

Acostumada às inundações das chuvas, experimentara já vários exercícios de arame e, nas últimas monções tinha vindo a ensaiar o número das cadeiras.

Assim, quando ao acordar se viu rodeada de água, pensou que a chuva tinha chegado mais cedo e foi calmamente tirar os rolos com que dormia todas as noites, ao mesmo tempo que gritava pelo nescafé.

Depois de desfazer os rolos, empeçar o postiço (que lhe dá a meio das costas e roça os candeeiros de tecto), desenhar nos olhos o traço de rainha egípcia, vestir e despir três ou quatro toilettes , aspergir-se com três ou quatro perfumes franceses, engolir o nescafé e o cigarro, saíu de casa de cadeira em cadeira que, diligentemente, a empregada ia mudando. Enquanto Brigite, de tacão alto e esguio, se empoleirava numa das cadeiras, a moça, com a água pelos joelhos, a tropeçar em peixes-sapato (2) e cagalhões, fazia avançar a outra cadeira. Qual gazela recém-nascida, lá ia aos gritos mudando de cadeira, unhas cravadas na carapinha da rapariga.

Alice esquecera o jardim suspenso, bruscamente cortado pela cena almodovariana e seguiu na direcção do perfume do café acabado de fazer.

Ao som da harpa céltica, magicava na maneira de sair de casa. Primeiro pensou no trapézio – umas lianas... e poderia sair de palmeira em palmeira...Não. não era lá grande ideia...mesmo porque o tio Augusto não se parece com o Tarzan... De gôndolaaaa!...Não. não era muito prático. Também não podia copiar o número da cadeira!

E acabou personificando Inês Pereira. Saíu às cavalitas do tio Augusto, abraçada ao colarinho do seu jaquetão, lustroso de muito uso e pouco sabão, nariz franzido ao pensamento “ Antes asno...mas tão fedorento!”.

Com o passar dos dias já ensaiou outras performances . Por exemplo passar de calhau em calhau com o tio Augusto a fazer de cajado. Mas lá estava o maldito bafo!

Quem faz agora de asno é a Fina. Comadre - cozinheira, perfumada, pintada, penteada segundo modelo pombalino, penduricalhos nas orelhas, pau de canelas submersas, riso de graça e de medo, segue em ziguezague até piso seco. Alice vai formosa e bem segura, a gritar  para o tio Augusto que lhe arranje um casal de pelicanos para o jardim das maravilhas...

 .

(1) cachimbo

(2) peixe da África sub-sariana que abunda nas valas, frente às casas

 
 
 
 
 
 
 
 
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Maria Estela Guedes
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