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Adelto Gonçalves,
doutor
em Literatura
Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de
Os
vira-latas da madrugada
(Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981;
Taubaté, Letra Selvagem, 2015),
Gonzaga, um poeta do
Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002),
Bocage – o perfil
perdido
(Lisboa, Caminho, 2003),
Tomás Antônio Gonzaga
(Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2012), e
Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015),
entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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ADELTO GONÇALVES
Diálogo com a Ibéria hebraica
na poesia de Moacir Amâncio |
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I |
Moacir
Amâncio (1949) é um dos maiores poetas
brasileiros contemporâneos e passa a ocupar o
vazio deixado por Lêdo Ivo (1924-2012) e
Ferreira Gullar (1930-2016), de geração
anterior, que foram para o andar de cima sem o
reconhecimento do Prêmio Nobel de Literatura,
que seria o segundo da Língua Portuguesa, depois
daquele atribuído a José Saramago (1922-2010) em
1998. (E pensar que, quando se trata da
literatura de países do Hemisfério Norte, até
compositor de música popular merece ganhar o tal
prêmio...).
De fato, depois de um
jejum de nove anos, Amâncio cumpre agora, ao
publicar o seu sétimo livro de poesia,
Matula
(São Paulo: Annablume
Literária, 2016), uma trajetória singular dentro
da Literatura Brasileira, que vai de uma obra
romanesca de raízes populares até uma poesia
refinada, que repetindo, de certa forma, uma
“deglutição antropofágica” à maneira de Oswald
de Andrade (1890-1954), absorve a herança
cultural judaica, especialmente dos
cristãos-novos, e a tradição da cabala para
devolver experiências poéticas que levam o
leitor a uma viagem através da língua, na busca
de um diálogo com a Ibéria hebraica de Sevilha e
Córdoba. Essa herança fica explícita com a
inclusão no livro de um poema do filósofo hebreu
Ibn Gabirol (1201-1055), traduzido por Amâncio:
O inverno
escreveu com tinta de chuva
E a pena de raios nas mãos das nuvens
A carta no jardim de azul e púrpura.
Jamais dessa maneira o poeta escreve.
Nesse tempo do zelo a terra ao céu
Qual estrelas bordou canteiros breves.
O livro é também
resultado de um longo diálogo com o poeta
português E. M. de Melo e Castro (1932),
iniciado em Lisboa e continuado em São Paulo,
mas ainda em progresso. Como se sabe, Melo e
Castro é um dos pioneiros da poesia concreta
visual em Portugal, autor de
Ideogramas
(1962), marco fundador da poesia experimental em
terras lusas, que se radicalizou com o tempo,
passando a utilizar o vídeo e o computador na
produção literária, a chamada
videopoesia.
É o que se percebe nestes versos:
se o poeta
ernesto melo e castro encomenda a
a quem visita a terra traga-lhe uma lembrança
dos
seiscentos anos atrás pelo menos aonde nunca foi
sabedor não indiferente
no que converge
aquele montanhês entre o país das gerais e o
país
de são paulo aprende da vizinha: nunca entra na
igreja mas se entrares dize tudo que vejo é pau
e
pedra
do mundo: amanhã será dia bom
respeita todo aquele que tiver a barba crescida
pois
está de luto (...)
Como
observa o editor José Roberto Barreto Lins no
texto de “orelha” deste livro, é a partir desse
caldo de cultura que Amâncio “monta uma espécie
de constelação de textos que permitem uma
simbiose entre passado e presente como se o
tempo fosse um conjunto aos olhos do poeta que
expõe esse panorama caleidoscópico ao leitor,
para que este de sua parte detecte os pontos que
lhe permitam montar a sua própria rede de
significados”.
Já o
filósofo Rodrigo Petronio, no prefácio “Moacir
Amâncio: poesia e paralaxe” que escreveu para
este livro, procura desvendar as influências que
marcam a atual fase do autor, notadamente
embalada por suas leituras de obras da
literatura hebraica, até porque o poeta tem
doutorado em Língua Hebraica, Literatura e
Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo
e, atualmente, é professor doutor adjunto da
Universidade de São Paulo, com experiência na
área de Literatura e Cultura Judaica e
Literatura Brasileira, atuando principalmente
nos seguintes temas: poesia, poemas, cinema,
judaísmo, literatura e artes plásticas.
Diante
disso, não surpreende que, em seus versos,
retome a arte e o pensamento do século XVI, como
observou Rodrigo Petronio com perspicácia, ao
desvendar também nos versos abaixo a influência
da tradição neoplatônica e cabalista do
filósofo, poeta, místico e teólogo Ramón Llull
(c.1232-c.1315), ou Raimundo Lulio em
castelhano, nascido em Mallorca, e de Abraham
Abuláfia (1240-1291), talvez o mais
revolucionário mestre da cabala, nascido em
Zaragoza:
prefiguração do sempre
num
círculo
que
abulafiano
que
llulliano
rompe o
círculo
se faz
letra
Em outros versos,
percebe-se a influência da circunvolução do
mundo, a saga dos navegantes que, de ouvidos
moucos para o que (pre)dizia o velho do Restelo,
atiravam-se ao destino incerto para descobrir os
confins não só nos mares como nas terras da
América, da África e de outros continentes. O
texto abaixo, por exemplo, parece aludir à
Inquisição, mas ao mesmo tempo tem a ver com a
expansão colonial e qualquer processo
totalitário. É o que se depreende destes
versos:
a grande
ratazana imaginou
a máquina do mundo um vasto cérebro
pronto a ser roído até o vazio oco
onde ela se alojasse em próprias fezes
e o mundo se fizesse por inteiro
à sua semelhança e justa imagem
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II |
Nascido na cidade de
Espírito Santo do Pinhal, na região Sudeste do
Estado de São Paulo, na divisa com Minas Gerais,
mas estabelecido na cidade de São Paulo desde
jovem, Amâncio estreou na literatura com a
novela O saco
plástico (São
Paulo: Editora do Escritor, 1974), e, depois,
surpreendeu a crítica com a prosa fragmentária e
experimental de
Estação dos
confundidos
(São Paulo: Símbolo, 1977), romance que trata da
vida de Joaquim Chapeta Arruda, um deserdado
perdido na desumana e impessoal “terra da
garoa”.
Redator de texto
conciso e preciso, Amâncio, que passou a maior
parte de sua vida profissional nas redações dos
jornais Folha
de S. Paulo e
O Estado de S.
Paulo,
publicou ainda o livro de contos
O riso do dragão
(São Paulo: Ática, 1981), em que parecia já
disposto a extravasar as fronteiras do gênero,
deixando de lado certo convencionalismo dos
primeiros livros, embora o fragmentarismo e as
quebras de frase já indicassem o caminho futuro.
Esse procedimento se
acentuou em
Súcia de mafagafos
(São Paulo: TA Queiroz Editor, 1982), que reúne
duas histórias bastante fragmentadas e com a
linguagem da prosa já se misturando com a
poesia, num tom meio juvenil. O autor não renega
sua obra anterior, mas, aparentemente, prefere
deixá-la esquecida, pois não consta dos dados
bibliográficos que aparecem em seus livros mais
recentes.
O que se conhece é
que se rendeu à poesia a partir de 1992, quando
lançou Do
objeto útil
(São Paulo: Iluminuras), disposto a oferecer uma
nova proposta ao gênero, como se tivesse por
meta escapar de certa linguagem exaurida pelo
uso ao longo de todo um século de
experimentação, repetição e diluições, para se
assumir aqui o que o romancista Eustáquio Gomes
(1952-2014) escreveu na apresentação de
Contar a romã
(São Paulo: Record, 2001).
Em
Figuras na sala
(São Paulo: Iluminuras, 1996) faz uma homenagem
à melhor tradição modernista brasileira,
assumindo-se como herdeiro do impulso poético de
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João
Cabral de Melo Neto (1920-1999), mas também paga
um tributo ao poeta francês Stéphane Mallarmé
(1842-1898), que se valia de símbolos para
expressar seus sentimentos através da sugestão,
mais que da narração.
Em 1997, publica um
livro de reportagens e artigos,
Os bons samaritanos e
outros filhos de Israel
(São Paulo: Editora Musa), interrompendo a
sequência de obras dedicadas à poesia. Mas logo
volta com O
olho do canário
(São Paulo: Musa Editora, 1998), que, aliás,
diferencia-se de seus livros anteriores de
poesia na alternância e variedade dos ritmos,
como observou Carlos Vogt na apresentação, e na
linguagem elíptica que emprega.
Como gosta de jogar
com a ideia de que as línguas latinas são, na
verdade, um só idioma, defendendo o argumento de
que determinadas emoções e ideias só caberiam
adequadamente em italiano, outras em francês, em
português, romeno, catalão ou espanhol, Amâncio
publica
Colores siguientes
(São Paulo: Musa Editora, 1999) em que reuniu
poemas escritos em castelhano. É o livro que
marca o início de uma série de peregrinações
poliglotas, que vão atingir o seu auge com
Abrolhos
em que várias composições estão escritas em
hebraico. Esses poemas em hebraico formam um
conjunto, na verdade, um livro, que foi
inteiramente publicado pela revista
Etc.,
de Curitiba.
Antes, o poeta já
havia experimentado no então parcialmente
inédito At
a construção em inglês de um universo paralelo
ao português. Já em
Contar a romã
presta homenagem ao idioma de Góngora
(1561-1627), Quevedo (1580-1645) e Cervantes
(1547-1616), especialmente em "Duelo de la nariz
y la cara" em que transita do espanhol para o
português e igualmente da poesia para a prosa
poética (e vice-versa) sem perder o sentido.
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III |
Em 2001, Amâncio
doutorou-se em Língua Hebraica, Literatura e
Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo
com a tese
Dois palhaços e uma alcachofra:
uma leitura do
romance 'A Ressurreição de Adam Stein', de Yoram
Kaniuk (São
Paulo: Editora Nankin, 2001) em que discute as
diferentes formas de se ver o Holocausto em
estudo sobre a expressão judaica contemporânea
centrada no escritor israelense Yoram Kaniuk
(1930-2013) e seu romance
Adam filho de cão
(Rio de
Janeiro: Editora Globo, 2003, tradução de Nancy
Rozenchan).
Em
Ata
(Rio de Janeiro: Record, 2007), reuniu seis
livros de poemas publicados até então e outros
inéditos, além de ensaios como
Dois palhaços e uma
alcachofra e
Yona e o
Andrógino – notas sobre poesia e cabala
(São Paulo: Nankin/Edusp, 2010) mais a antologia
por ele organizada e traduzida de poemas do
israelense Ronny Someck (1951) sob o título
Carta a
Fernando Pessoa
(São Paulo: Annablume, 2015). Também traduziu
Badenheim 1939
(São Paulo: Amarilys, 2012),
livro de
Aharon Appelfeld (1932) e participou da tradução
dos poemas da poeta israelense Tal Nitzán (1960)
incluídos no livro
O Ponto da Ternura
(São Paulo: Lumme, 2013).
É autor ainda de
O Talmud,
tradução de trechos e estudos (São Paulo:
Iluminuras, (1995),
Ato de presença:
Hineni (São Paulo: Associação Humanitas, 2005),
organizador, coletânea de ensaios em homenagem à
professora Rifka Berezin,
Kelipat Batsal
(Rio de Janeiro: Book Link, 2005), conjunto de
poemas hebraicos que foi publicado também em
Ata,
e Óbvio,
poemas (São Paulo: Travessa dos Editores, 2004).
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Matula,
de Moacir Amâncio,
com prefácio de Rodrigo Petronio.
São Paulo: Annablume Literária, 169 págs., R$
40,00, 2016.
Site: www.annablume.com.br
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