REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 38 | abril-maio | 2013

 
 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES 

Um bilhete para o Teatro do Céu

 

Peça escrita por sugestão de Alexandra Soveral Dias e Lucília Valente, a quem é dedicada

Foto: Ed. Guimarães    

Maria Estela Guedes. Poeta, ficcionista, cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados.                   

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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NOTAS MÍNIMAS

AÇÃO – Todas as personagens, terrestres e extraterrestres, se encontram em situação de queda, por isso aspiram à felicidade, imaginada como o Céu. No final, descobrem que o Paraíso ainda é a Terra.

A Gravelina é uma figura realista. Os extraterrestres são algo fantasmáticos e falam cantando, à maneira de gregoriano.

CENA – Compreende três setores: o palco divide-se em duas partes, uma, fechada, a outra em espaço aberto. De um lado, uma eira. No outro, a sala de ensaios do Teatro do Céu. O terceiro setor abrange o espaço do público.

Caso haja muitos atores, alguns podem treinar-se na sala de ensaios, enquanto decorrem as conversas: saltam, tocam instrumentos, dançam, fazem malabarismo, etc..

GUARDA-ROUPA – Os extraterrestres vestem fatos metalizados, com pequenas asas nos ombros e nos tornozelos e usam uma auréola nos capacetes, do mesmo material.  

PERSONAGENS

NO TEATRO DO CÉU: CENÓGRAFA, ENCENADORA, GRAVELINA, RAFAEL, MIGUEL, LILI

Outros artistas, cantores e bailarinos

NA CÁPSULA : BEL, KEZABEL, YEKUN

 
  ENTRADAS PARA O TEATRO DO CÉU


Dez bilhetes para o Teatro do Céu | Isolina Lages
E o Céu, onde está? | Alexandra Soveral Dias
Bilhetes para o Teatro do Céu | Francisco Chinita
Um bilhete para o Teatro do Céu | Maria Estela Guedes
 
  ENTRADA

NA SALA DE ENSAIOS DO TEATRO DO CÉU.

Um coro ou uma banda ensaiam. Erram e repetem. Alguns bailarinos fazem exercícios.

   
 
  MARIA ESTELA GUEDES
Um bilhete para o Teatro do Céu
Lisboa, Apenas Livros, col. Teatro no cordel, nº 14, 2013
http://www.apenas-livros.com/pagina/inicio
   
 

PRIMEIRA CENA

NO TEATRO DO CÉU.

Montada num escadote, com um balde ao lado, a cenógrafa pinta o cenário, numa zona acima da sua cabeça. Pinta em tons de azul e começa a distinguir-se, na noite constelada, com Lua e Sol lado a lado, o bilhete para a estreia da nova peça:

«AUTO DA BARCA DO INFERNO»

GIL VICENTE

TEATRO DO CÉU

 

Entra a encenadora, com as folhas da peça na mão.

ENCENADORA (admira a pintura) – Belo céu constelado, parece que anuncia bom tempo… Então, como vai esse trabalho?

CENÓGRAFA – Mais os menos, mais ou menos, tirando a dor que já sinto no braço, de tanto pintar ao alto…

ENCENADORA – Imagina agora Miguel Ângelo a pintar o teto da Capela Sistina…

CENÓGRAFA – Muito obrigada pela comparação, mas não mereço tanto…

ENCENADORA – Ora, ora, nem tanto ao céu, nem tanto à terra… A cada um o seu próprio mérito, e até no esforço físico ele se mede. O desgraçado passou uma eternidade deitado de costas, num andaime, a pintar Moisés, Adão e Jeová nas cúpulas do céu… Muito sofreu ele…

CENÓGRAFA – O que mais me apaixona no que ele pintou é essa imagem de Deus e Adão a tocarem-se, dedo no dedo… Lembram-me o ET…

ENCENADORA – Spielberg é que se deve ter lembrado do toque dedo no dedo de Miguel Ângelo quando criou o ET… Sopros e toques mágicos, símbolos da criação… (Olha para a entrada) Estes atores são tão pouco profissionais, chegam sempre atrasados!

CENÓGRAFA – Estudantes, que querias? Não respeitam nada, nem os professores, nem os pais, nem a disciplina, nem pelos vistos a encenadora…

ENCENADORA – E dizem eles que gostam de fazer teatro…

CENÓGRAFA (espreguiça os braços, pega no balde e diz, descendo do escadote) – Se me acho em casa, numa bela banheira, vou-me sentir no Paraíso…

ENCENADORA – Paraíso… Quem me dera… Nem tenho dormido com tanta ralação…

 
 

SEGUNDA CENA

NO TEATRO DO CÉU.

A cenógrafa continua a pintar o céu, montada no escadote, com o balde ao lado. A encenadora estuda a peça. Entra uma camponesa, o avental dobrado com ovos dentro, pergunta à encenadora:

GRAVELINA – Vocemecê compra-me uns ovos?

ENCENADORA – Não… Ovos?! Não, muito obrigada, não preciso…

GRAVELINA (volta-se para a cenógrafa) - Compre-me estes ovos, são caseiros, fresquinhos…

CENÓGRAFA – Obrigada, obrigada, não preciso de ovos… A menos que fosse o ovo cósmico…

GRAVELINA (ofendida) – Não é cómico, é caseiro! Não diga mal dos meus ovos, olhe que as galinhas que os puseram não comem ração! Só lhes dou milho, couves com farelos e restos da minha comida!

CENÓGRAFA – Acredito, acredito, não dizia mal dos seus ovos… A senhora quem é? Nós estamos a trabalhar…

GRAVELINA – A trabalhar?! (Faz um gesto em volta) Lindo trabalho, não há dúvida… Uma festa, é o que é! (Vira-se para a cenógrafa) Atão?! Não me conhece? Sou a Gravelina, da casita ali ao lado, com quintal… Vende-me esse pincel?

CENÓGRAFA – Tenha paciência, Gravelina, estamos a trabalhar! Não queremos comprar nem vender nada…

GRAVELINA – Ora o carago! Ninguém quer comprar nem vender nada! Que inferno, como é que este país há de progredir se ninguém quer vender nem comprar nada? (Sai por entre os espectadores, com gestos dramáticos, aborrecida, quase deixando cair os ovos,  e pergunta ao primeiro que apanha a jeito) Juro pelas alminhas que são frescos! Das minhas galinhas! Compra-me meia dúzia? (Continua a perguntar, enquanto vai saindo) Vende-me essa gravata? Ah, não? Inferno… Compra-me os ovos? Fresquinhos… Não me quer vender essa bolsa? Diacho de vida, neste país já ninguém quer comprar nem vender nada!

 
  TERCEIRA CENA

NA EIRA.

Cai uma cápsula de plástico transparente no meio da eira, com grande splash! Dentro estão três ETs, que se estampam no chão. Levantam-se, magoados, amparando-se às paredes. Verificam se as auréolas não ficaram amolgadas.

KEZABEL (sacudindo o fato) – Temos problemas graves, cara comandante Bel!

BEL (palpando o traseiro) - Pois temos, bem os sinto…

YEKUN (olhando para os painéis de comandos) – Ficámos sem comandos, sem instruções nenhumas… Lá terei outra vez de vos ensinar a ler, e a escrever à mão, com tinta…

BEL – Não te deites a adivinhar, isso seria o fim do mundo, um retrocesso de milhares de anos na civilização! (Para os outros, que desmontam e remontam computadores) Já no planeta Lugar eu tinha avisado, avisei durante toda a viagem... Que O Cintilante nos livre de recuarmos a eras pré-ciberespaciais!

YEKUN (mexendo numa máquina) – O gerador de signos não funciona. Não é por nada, mas lá terei de vos ensinar…

BEL – Cala-me essa boca, Yekun! Tu não digas um absurdo desses! Sem gerador de signos, voltávamos à era pré-lugárica!

KEZABEL – Que desgraça, o descodificador linguístico também se avariou…

BEL - O descodificador também não funciona?! Não acredito, não é possível! Yekun, vê se consegues recuperar alguns dados, não sei onde aportámos…

YEKUN (tentando abrir a porta) – Sim, comandante. Certo é que estamos muito longe de casa, mesmo muito longe… Se ao menos pudéssemos sair da cápsula para analisar o terreno in loco… Ai, quem me dera ter chegado a um planetazinho habitado, mesmo que fosse atrasado e pobre!

BEL – Às vezes, por um desses fenómenos probabilísticos… (Tenta abrir a porta) A porta está encravada, Yekun, e não me arrisco a deixar sair ninguém sem saber se o planeta onde estamos é amigável. Precisamos de enviar a troika com um robô para coligir amostras!

YEKUN – Não sei se a troika está a funcionar, pode ter avariado também. Depois verifico se ainda tem rodas. (Tenta de novo abrir a porta) Está encravada, eu já tinha tentado abri-la e não consegui… Ai, quem me dera voltar para o céu!

BEL - Bem podes esquecer Lugar, não existe retorno a casa…

KEZABEL – Não me conformo com o exílio, a minha terra prometida ainda está lá em cima, apesar de destruída.

YEKUN – Exílio? Não é exílio, é expulsão… Fomos expulsos por nossa própria causa, demos cabo do planeta com tanta ganância e tanta corrupção!

BEL – Nem exílio nem expulsão, sejamos práticos e baixemos a grimpa: ainda me dói o rabo da queda.  E a porta que não abre…

KEZABEL – Seja queda, se preferes. Em circunstâncias tão delicadas, não perderei o meu tempo a discutir palavras… Importante é que em Lugar não deve ter ficado ninguém, a atmosfera já estava irrespirável, não havia alimentos, nem água potável, e as cidades costeiras já se tinham afundado todas.  Fomos dos últimos a sair.

BEL  – Fomos dos últimos a cair…

KEZABEL – Ou isso, ou isso… Pode ser que nos píncaros mais altos das montanhas… Se este planeta onde aportámos for habitado por alguma espécie idêntica à nossa, podemos procriar com os indígenas.

YEKUN – Não pensas em mais nada, pela corte divina!

BEL – Não pensas em mais nada, Kezabel! A superpopulação foi o primeiro passo para a queda! Um planeta tão pequeno como Lugar era lá capaz de suportar o desgaste agrícola para alimentar tanta gente! Nem aquíferos havia já, secaram todos! Sabes quantos litros de água se consomem para produzir uma simples alface? Vá, vê lá se abres a porta, depois tratarás da sobrevivência da espécie. (Tenta abrir a porta) Já em Lugar eu tinha reclamado que não íamos longe numa cápsula hipergalática sem manutenção…

KEZABEL – Sorte ainda tivemos nós de chegar a algum lado nela, depois de toda aquela devastação! O pior é a porta estar encravada, temos de a abrir. Pelo Senhor de Lug!, temos de a abrir para enviar a troika! Empurrem, empurrem, vamos todos fazer força ao mesmo tempo: um, dois, três! (Fazem muita força para abrir a porta mas ela não abre).

 
 

QUARTA CENA

NO TEATRO DO CÉU.

A cenógrafa continua em cima do escadote a pintar o céu. Entra um grupo de estudantes. Diz a encenadora, acolhendo-os com ar teatral, a declamar a peça:

ENCENADORA –

«À barca, à barca, houlá!

que temos gentil maré! »

LILI (continuando o texto de Gil  Vicente) – «- Ora venha o carro a ré!»

RAFAEL  - «Feito, feito! Bem está!

Vai tu muitieramá,

e atesa aquele palanco

e despeja aquele banco,

pera a gente que virá.»

GABRIEL - «À barca, à barca, hu-u!

Asinha, que se quer ir!

Oh, que tempo de partir,

louvores a Berzebu!»

 ENCENADORA - «Ora, sus! que fazes tu? Despeja todo esse leito!»

CENÓGRAFA – Ena, ena! Parece que Mestre Gil Vicente já está todo decorado!

ENCENADORA – Parabéns, parabéns! Estava aqui a resmonear contra vós, pois chegais sempre atrasados, mas pelo menos já sabeis a entrada!

GABRIEL – Passámos a noite a decorar o «Auto da Barca do Inferno», mas Gil Vicente é muito difícil, não se percebe quase nada do que escreveu…

RAFAEL – E não é por ser em verso… Aquilo que se percebe levanta problemas…

LILI (para o Rafael) – Fogo!, tens problemas? Também eu! E ainda dizem que é teatro popular!

GABRIEL – Popular, uma ova! É do mais erudito que há!

RAFAEL – Tem muitos palavrões…

CENÓGRAFA (advertindo o Rafael com o pincel) – São as nossas raízes culturais!

ENCENADORA – Vá, a língua não é um corpo inorgânico, inerte como um bloco de pedra. Vai mudando ao longo dos tempos. Por isso o modo de falar de Gil Vicente já não corresponde ao atual. No tempo dele, essa era a linguagem usada pelo povo. Hoje, como o discurso de Gil Vicente se tornou difícil de decifrar, ganhou ar erudito. Tudo depende do grau de conhecimentos. Se souberdes, é popular.

RAFAEL - «Muitieramá»! «Vai tu muitieramá»! Precisamos de um descodificador para saber o que isto quer dizer…

ENCENADORA – Má ocasião… Muitieramá: muito má hora! Vai em muito má hora - é o que isso quer dizer…

LILI – Vai para as profundas dos infernos…

ENCENADORA – Claro, Lili, a ideia é mesmo essa. «Muitieramá» até pode ser um palavrão… A barca vai para o Inferno, carregada de pecadores, e as personagens dizem muitas asneiras. É natural, quando estamos exaltados. Mas olha que temos também a barca da Glória, que vai para o Paraíso… Não leste? Uma das personagens que o Anjo se recusa a levar para o Céu é especialista em palavrinhas! Lá chegaremos, à alcoviteira. Ela tenta seduzir o Anjo, chamando-lhe «meu amor, minhas boninas», gaba-lhe o «olho de perlinhas finas», mas o Anjo não se deixa seduzir e manda-a para o Diabo.

LILI  – Ah, é? Cool!

GABRIEL - Bué de fixe!

ENCENADORA – Daqui a trezentos ou quatrocentos anos, também vai ser preciso um descodificador para sabermos o que significa o arcaísmo «bué de fixe»! E «cool», céus! «Cool» é inglês, vejam se falam a nossa língua! «Cool» é que está tão errado que nem figura no dicionário, agora os palavrões estão lá todos, são bom português! Bem, vamos ao ensaio?

CENÓGRAFA – A palavra «cool» já foi dicionarizada…

ENCENADORA – Não me digas!

CENÓGRAFA – Sim, por Houaiss…A primeira edição saiu no Rio de Janeiro em 2001.

ENCENADORA – «Bué» figura nos dicionários digitais. Se formos à Internet, ao «Dicionário Priberan», lá está. Sem origem certa, talvez quimbundo. Deve ter sido contributo dos angolanos. De qualquer modo, interessa é assimilar a ideia de que os termos considerados grosseiros têm a sua função própria na língua e operacionalidade estética na arte. Tal como as imagens obscenas, de longuíssima tradição…

CENÓGRAFA – Ah, isso é uma coisa que tenho atravessada na garganta! As imagens obscenas que ornavam o portal da Sé de Lamego foram quase todas destruídas, por iniciativa dos padres! Fulcanelli deve dar saltos na cova quando se fala do assunto, e mais não foi na catedral de Notre Dame que se perpetrou tal sacrilégio!

ENCENADORA – A hipocrisia da Igreja tem servido para se destruir a si mesma. Só gerou essa moral doentia em que pululam padres pedófilos, beatas, e sobretudo ignorância dos valores culturais. Reprimindo a sexualidade, o catolicismo só conseguiu gerar vícios.

CENÓGRAFA – Li algures que um cardeal teve a coragem de dizer que a Igreja está atrasada duzentos anos… E isto foi há dias.

ENCENADORA – Pois, mas o problema é que a Igreja não é constituída só pelo clero, Igreja é o mundo de todos os católicos. Os católicos, na sua maioria, e não só provinciana, é que estão atrasados duzentos anos. O seu discurso é completamente estranho à experiência e às necessidades das pessoas que frequentam os serviços religiosos. É lamentável, lamentável! Mas voltemos a Gil Vicente… Diz, Gabriel…

GABRIEL – Dão-se louvores a Berzebu…

ENCENADORA – Oh, meus amigos, isto é o Teatro do Céu, mas a peça é sobre os ladrões e outros criminosos, e já se sabe que os maus vão para o Inferno, onde reinam os demónios, comandados por Belzebu!

CENÓGRAFA (hasteia o pincel) – Acima de Belzebu, o chefe máximo é Lúcifer, o que transporta a Luz!

ENCENADORA – Ah, sim… Ou ah, não… Lúcifer, ao que se diz, não é nenhum demónio. Tudo não passou da tradução errada de uma passagem do profeta Isaías, em que aparece a palavra «lucifer», atribuída ao planeta Vénus, com o significado de «aquele que transporta a luz». Nada mais.

CENÓGRAFA (exaltada) – Isso, más traduções e manipulação, para demonizar as divindades antigas, como o deus celta Bel, a que outros chamam Lug. E os ladrões vão mas é para as Caraíbas e têm gordas contas nos bancos da Suíça… Quem se lixa sempre somos nós! (Tropeça no balde, este cai do escadote) Poça! Poça que entornei o caldo!

RAFAEL (aflito, apanha o pincel e devolve-lho) – Cuidado! Cuidado!

ENCENADORA – Não desperdices tinta, olha a política de austeridade! Estamos sem dinheiro. Quem se lixa somos nós, claro, concordo. Depois nunca há verbas para a cultura. Ainda não consegui patrocínio, por isso o cenário vai ser só o céu pintado. Como não há dinheiro para barcas, resolve-se o problema com mímica. (Vira-se para o Rafael) Rafael, finge que levantas a vela! (Vira-se para o Miguel) E tu, faz de conta que estás dentro da barca, tira o saco de cima do banco para as almas se sentarem! (Vira-se para a rapariga) Lili, ensaia-me aí esses remos!

CENÓGRAFA – Olhem, para se perceber bem que somos governados com política de austeridade, vou pintar dois letreiros, um a dizer «Barca da Glória», outro a dizer «Barca do Inferno».

ENCENADORA - O teatro é isso mesmo, alegorias e representação! Os espectadores terão de imaginar o cenário e os adereços!

 
  QUINTA CENA
 

NO TEATRO DO CÉU.

A cenógrafa pinta, a encenadora estuda as marcações, andando de cá para lá com os estudantes, a posicioná-los nos lugares certos. Entra a Gravelina, com um cocho muito grande às costas.

GRAVELINA (para a Lili)  – Vocemecê compra-me este cocho?

LILI (espantada) – Não, senhora! Não quero cocho nenhum, obrigada, estamos a ensaiar a peça de Gil Vicente!

GRAVELINA (olha em redor) – E onde está esse Gil Vicente, para me comprar o cocho ou vender a peça?

LILI – Tenha calma, eu explico…

GRAVELINA – Explica nada, eu não como explicações, como açorda de coentros! Preciso de comprar e vender, quero é fazer negócio! Compre-me o cocho, carago! Ainda está novo, nunca serviu lá em casa! Nunca, que eu não o queria estragar!

RAFAEL – Para que queria o cocho se nunca o usou?

GRAVELINA – Ai, menino! Atão? Se eu fosse a usar as louças e a mobília, estragava-se tudo, depois ficava sem nada! (Volta-se para a Lili) Vá lá, um cocho tão bonito… Cortiça da melhor qualidade…

ENCENADORA – Acabou o recreio, vamos à peça! Vamos à cena das palavrinhas, Rafael! O que vais reprovar são as palavras sedutoras, carregadas de malícia, e não os palavrões! Vá, não tenhas medo! Tu és o Anjo e vais levar os bons para o Paraíso na barca da Glória. Lili, tu és Brízida Vaz, a Alcoviteira. Vendias virgens aos padres! Apesar das tuas poucas vergonhas, agora, depois de morta, queres ir para o Céu. Para isso, tentas seduzir o Anjo! Mas o Anjo dá-te com os pés.

MIGUEL – Ah, boa! O Anjo vai-te mandar para a barca do Inferno, hi-hi!

ENCENADORA – Haja disciplina, Miguel! Não interfiras! Rafael, dá a deixa à Lili.

RAFAEL (ANJO) - «Eu não sei quem te cá traz...»

LILI (BRÍZIDA) –

«Peço-vo-lo de giolhos!

Cuidais que trago piolhos,

anjo de Deos, minha rosa?

Eu sô aquela preciosa

que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas

pera os cónegos da Sé...

Passai-me, por vossa fé,

meu amor, minhas boninas,

olho de perlinhas finas!

E eu som apostolada,

angelada e martelada,

e fiz cousas mui divinas.

Santa Úrsula nom converteu

tantas cachopas como eu:

todas salvas polo meu

que nenhüa se perdeu.

E prouve Àquele do Céu

que todas acharam dono.

Cuidais que dormia eu sono?

Nem ponto se me perdeu!»

ENCENADORA – Está perfeito, Lili, perfeito!

GRAVELINA (para a Lili) – Pelas alminhas lhe juro: cortiça da melhor qualidade, um cocho em estado novo!

LILI  – Obrigada, obrigada, os meus pais deixaram de me dar mesada, não posso comprar cocho nenhum…

GRAVELINA – Atão vende-me o seu colar?

LILI – Ai!, tenha paciência! Então não sabe que não temos verba, por causa da política de austeridade? Não se pode comprar nem vender nada!

GRAVELINA – Ora o carago!

RAFAEL – Ai, se a mamã ouvisse!

GRAVELINA – Já ninguém pode comprar nem vender nada! Este país está de pernas para o ar, nunca tal se viu! Putaça de vida, ninguém pode comprar nem vender nada! (Vai saindo de cena por entre os espectadores, a perguntar, a um e outro) Vende-me essa pulseira? Compra-me o cocho? Em estado novo, cortiça da melhor qualidade… Caraças, neste país de miséria já ninguém pode comprar nem vender nada!

 
  SEXTA CENA
 

NA SALA DE ENSAIOS.

A cenógrafa pinta o céu. Um grupo de estudantes recorta bilhetes azuis e mete-os numa caixa. A encenadora vigia o trabalho.

GABRIEL – Quem ganhar o primeiro prémio tem direito a três entradas para a estreia.

RAFAEL – Lotaria das Almas? Até diz bem com o Teatro do Céu. Quem teve esta ideia tão original?

GABRIEL – A ideia não é original, já existiu uma Lotaria das Almas, em tempos… Fui eu que me lembrei, estava a consultar na biblioteca um número da Revista Lusitana, para o meu trabalho de pós-pós-doutoramento…

LILI – Como eu te entendo bem… A minha irmã também acabou o curso há mais de cinco anos, não conseguiu colocação em parte nenhuma, de maneira que tem andado a especializar-se em projetos de pós-pós…

GABRIEL – Esperem aí, vou só buscar a fotocópia…

LILI – Os prémios desta Lotaria das Almas deviam dar direito a emprego…

RAFAEL – Eu era para acabar este ano, mas já sei que vou viver de bolsas para projectos pós-pós o resto da vida…

LILI – Isso, se te derem bolsa…

RAFAEL – Se não derem, que remédio senão continuar a viver à custa da mamã! Ai, e nós no Teatro do Céu! É que só mesmo em teatro, porque a vida vai por aí num inferno!

GABRIEL (volta com as fotocópias)  – Olhem, é um artigo do Visconde de Vila Moura sobre a Lotaria das Almas, no século XVIII…

LILI – Ah!, Lotaria das Almas, Lotaria das Almas! Só pode ser obra da Igreja a sacar dinheiro ao povo…

GABRIEL – Vou ler um pedacinho:

«Aos fiéis devotos das boas almas: Não obstante ser tão grande a multidão de penas, aflições e trabalhos que o pecado trouxe consigo ao Mundo; e sendo tão terríveis os tormentos que a astúcia do demónio, e a crueldade dos tiranos inventaram para atormentar os mártires com Cristo, sua cabeça: a tudo é superior e excede incomparavelmente qualquer pena do Purgatório, ainda a mínima de todas das que aí se padecem: assim o afirmam claramente Santo Agostinho e São Bernardino de Sena. Daqui se infere, e claramente se conhece, que aquelas Benditas Almas têm uma necessidade de sufrágios tão extrema que, no sentir de São Boaventura, não pode ser mais extrema. Este o motivo porque com pranto contínuo nos pedem e obrigam a que com o socorro das boas obras as tiremos de tal abismo de penas…

Este é pois o meio mais eficaz para mover a Divina Clemência ao alívio, e desejada liberdade daquelas Benditas Almas; por ele se tem livrado das vorazes chamas mais de 600 almas.»

LILI – Só nos faltava o Purgatório, no inferno já vivemos nós…

CENÓGRAFA – O que mais nos falta é a felicidade…

LILI (irritada) – Acho uma impertinência! Todos sacam e ninguém dá trabalho! O governo rouba, o patrão rouba, todos roubam e até a Igreja saca o mais que pode! Que futuro será o meu? A única saída é emigrar, tenho uns primos na Austrália, vou para lá catar cangurus! (Dá um encontrão à caixa dos bilhetes, que saltam no ar e voam, levados por uma rabanada de vento. Ficam todos a olhar para o céu e a tentar agarrar os bilhetes).

ENCENADORA – Agora a Igreja já não fala de Inferno nem de Purgatório. Calou-se com esse folclore.

RAFAEL – Credo!, se a mamã ouvisse!

LILI - Quem agora se ocupa de anjos e demónios são os especialistas de ovnis. Dizem que são extraterrestres…

CENÓGRAFA – Ah, mas o mal existe, o mal existe! (Acena com um dos bilhetes e desce do escadote, no último degrau tropeça e atira-o ao chão). Diabos, eu não dizia?! O mal existe, o mal existe!

ENCENADORA – Pois existe! O inferno somos nós!

RAFAEL – O inferno são os outros…

LILI – E o Céu, onde está ele?

ENCENADORA (faz um gesto abarcar o teatro todo)  – Aqui. 

CENÓGRAFA (aponta para a pintura) – Ora essa, o céu está aqui!

 
  SÉTIMA CENA
 

NA CÁPSULA.

Um bilhete azul da Lotaria das Almas paira dentro da cápsula, acima das cabeças dos extraterrestres. Olham para cima, tentam apanhá-lo.

KEZABEL – Pel’O Cintilante!, consegui agarrar o objeto!

BEL – O que é?

KEZABEL – Não sei… Parece feito de celulose.

YEKUN – Não é por nada, mas ainda terei de vos ensinar de novo a escrever com tinta e a ler…

BEL – Cala-te com essa conversa, já aborreces! Que teima! Kezabel, deixa ver esse objeto voador não identificado. (Kezabel entrega-lhe o bilhete, ela volta-o de todos os lados, intrigada) Parece feito de celulose… Não veio de Lugar, na nossa cápsula intergalática.

KEZABEL – Não, definitivamente. Que estranho, nunca na minha vida tinha visto um objeto destes… (Chama) Yekun, por gentileza…

YEKUN – Farto que estou de garantir que ainda terei de vos ensinar de novo… E os métodos de ensino são radicais…

BEL – Por Lug, o Senhor de Lugar! Cala-te com essa redundância e tenta identificar!

YEKUN – Isto é um suporte de mensagem em celulose, e entrou por aquele buraco da cápsula, lá em cima…

(Olham todos)

BEL – Se entrou, veio de fora… Por conseguinte, em relação a nós, é um objeto alienígena… Se é de celulose, quer dizer que este planeta tem florestas e é habitado por seres capazes de as transformar…

KEZABEL – E se tem florestas e a cápsula rebentou, aquilo que estamos a respirar é oxigénio… Ah, valha-nos ao menos isso, só falta abrir a porta para podermos entrar no Céu!

YEKUN – Sinto-me aliviado, é como se não tivéssemos saído de casa… Uma viagem tão longa, tão longa, e partir não passa afinal de um regresso… Enfim, quase… Um regresso a tempos anteriores à queda…

BEL (palpando o rabo) – Identifica o objeto, Yekun! Não te percas em considerações estranhas à conversa…

KEZABEL – Aconselho-vos sinceramente a procriar com os indígenas… É o que vou fazer mal ponha o pé neste novo mundo… A hibridação tem sido um recurso dos deuses desde os confins dos tempos! Só espero não precisar de me disfarçar de cisne, de touro, nem de…

BEL – Nem de dinossauro, não é? Cala-te, Kezabel! Não pensarás tu em mais nada? (Volta-se para Yekun) E dizes tu, Yekun, que neste suporte de celulose está impressa uma mensagem? Uma mensagem para nós, Yekun?

YEKUN – Sim, pel’ O Cintilante! A mensagem caiu do céu, logo é para nós.

BEL – O que diz?

YEKUN – Sem descodificador nem gerador de signos, tereis vós de a decifrar… Disso depende a nossa salvação.

BEL – Não sei ler… (Volta-se para Kezabel, dá-lhe o bilhete) Kezabel!

KEZABEL (olha para o bilhete, vira-o de todos os lados, perplexo e desolado) – Por Lug, o Senhor de Lugar!, não sei ler…

YEKUN – Tendes a salvação pendente de uma insignificante mensagem e atreveis-vos a declarar que não sabeis ler? (Ordena) Lê!

KEZABEL – Não sei ler…

YEKUN (furioso, estica o indicador e toca na testa de Kezabel) – Em nome de Lug, o Senhor de Lugar, lê!

KEZABEL (vai tentando soletrar, erra muito, até acabar por ler de forma perfeita):

 

LOTARIA DAS ALMAS – PRIMEIRO PRÉMIO

Três entradas para a estreia

«AUTO DA BARCA DO INFERNO»

Teatro do Céu

 

YEKUN – Olha, este planeta é tão minúsculo que a mensagem nem refere o nome do país…

BEL – País? Pelo que ouvimos, nem o nome da cidade vem indicado…

KEZABEL – Querem ver? O teatro é mesmo aqui ao lado, para a mensagem omitir sinais de referência que seriam indispensáveis em qualquer informação global…

BEL (pega no bilhete e vira-o de todos os lados) – Ainda não sei ler esta língua estranha, Yekun… E sou eu quem comanda a nave! Quem havia de dizer que a nossa queda ia ser tão apocalíptica? Sem gerador nem descodificador de signos, sou uma verdadeira analfabeta. Concede-me o dom de falar esta língua…

YEKUN (toca-lhe na testa com o indicador) – Em nome de Lug, o Senhor de Lugar, ordeno-te que leias!

BEL (palpando a auréola) – Ah, sinto a cabeça rodeada por uma auréola de estrelas flamejantes! Agora, sim, entendo… Auto da Barca do Inferno… Ganhámos três entradas para a estreia de uma peça de teatro, o que é um bom augúrio! O planeta é habitado por seres inteligentes e amigáveis. Até nos enviaram um anúncio de salvação, a dizer que chegámos ao Céu! Estamos no Céu, amigos! No Céu! Mas ou o planeta é minúsculo ou a mensagem é secreta, pois não diz onde se localiza o Céu… Precisamos de comunicar com esta gente, Yekun! Vamos tentar abrir a porta outra vez!

KEZABEL – Teremos voltado ao Céu?! (espreita através do plástico) Não percebo, não se vê nada…

YEKUN – Mensagem mais selada que um texto sagrado, é verdade… Vamos lá então tentar de novo, para podermos enviar a troika. Um, dois, três! (Fazem força para abrir a porta mas ela não abre).

 
  OITAVA CENA
 

NA EIRA.

A Gravelina, com um molho de couves nos braços, está espantada diante da cápsula. Estica o dedo, com cuidado, e mal toca no plástico.  Para sua surpresa, abre-se uma porta. Entra a medo.

GRAVELINA – Ora o carago! Que barraca é esta? E vocemecês são do teatro? Que fatiotas mais engraçadas… Compra-me este molho de couves?

YEKUN – Muito obrigado, mas não temos dinheiro… Acabou-se, lá em cima… E o Céu, sabe onde se localiza?

GRAVELINA (sem entender) – Onde se localiza o Céu?! O Céu?! Onde fica o teatro, é isso? Atão, é ali! Ali, onde estão os seus colegas! (Volta-se para a comandante) Compra-me as couves? Couves tronchas, acabadas de apanhar na minha horta! Limpinhas, sem bicho…

BEL – Sem bicho, curioso… Sabe a senhora, acabou-se o dinheiro lá em cima, não havia mais alternativas…

GRAVELINA – E vendem-se, as alternativas?

BEL – Vender alternativas!? Não…

GRAVELINA – Putaça de vida,  já ninguém vende nem compra nada! Atão, se não vende alternativas nem compra as couves, troca esse capacete pelo meu avental? O capacete dava jeito ao meu filho, por causa da mota…

BEL – Não posso, preciso dele…

GRAVELINA – Mundo de merda, já nem por troca me sustento! (Sai por entre os espectadores a gritar) Não me compra as couves? Pois vá para o inferno, também não lhe compro nada a si! Ora a minha vida, como hei de pagar a renda e dar de comer aos filhos, se já ninguém tem dinheiro para comprar nada? Eu bem me esforço por aguentar o negócio, mas isto é um desgoverno! Ninguém tem dinheiro para comprar nada! E aqueles ali a ensaiar prò teatro! Que rica vida, não há dúvida! Aquilo é que é uma festa! E devem ganhar bem… Eu também quero ir prò Teatro do Céu! (Volta para trás, entra em cena) Teatro? Carago,  se o teatro dá dinheiro, também quero entrar nessa barca! Eu já vos canto a minha cantiga!

KEZABEL – Extraordinária espécie, apesar de biologicamente idêntica à nossa. (Para o público) Preciso de uma indígena boa em período fértil…

 
  NONA CENA
 

NA SALA DE ENSAIOS.

Presentes todos os que entram na peça, salvo os extraterrestres. Ocupam-se a dançar, sozinhos ou em pequenos grupos. A cenógrafa continua a pintar o céu.

ENCENADORA – Vá, Rafael, é a tua vez. Íamos na parte de Joane, que é o Parvo no «Auto da Barca do Inferno» e morreu de caganeira. Vá lá, isso com energia! Joane está muito zangado porque o Diabo o quer levar para o Inferno, mas ele recusa-se a entrar na barca do cornudo, quer é ir com o Anjo na Barca da Glória. E o Anjo concede-lhe a graça, porque Joane não tem malícia, por isso merece ir para o Céu. Que diz ele ao arrais do Inferno? Vá, Rafael, descontrai-te! (Para o Miguel) Dá a deixa do Diabo, Miguel.

MIGUEL - «Ó Inferno! Entra cá!»

RAFAEL (muito encolhido) – Não sou capaz…

ENCENADORA – Não és capaz de entrar na barca do Inferno ou não és capaz de dizer umas falas de Gil Vicente?! Mas que teatro é este?

RAFAEL – A mamã não ia gostar…

ENCENADORA – A tua mãe não ia gostar?! E de quê?

RAFAEL – Dos palavrões…

ENCENADORA – Não acredito nas minhas orelhas! Que parolice é esta, Rafael?! E andas tu aqui em projectos pós-pós!

RAFAEL – A mamã não ia gostar…

ENCENADORA – Outra vez a mesma conversa? Ora, Rafael, já é mania! Os homens gostam de palavrões, até se julgam no direito de os ter só para eles! Sentem-se uns machões! Olha, Rafael, Gil Vicente é o mestre dos mestres, o ponto mais alto do nosso teatro! Os palavrões são como as palavras e as palavrinhas, têm o seu lugar próprio para ser usadas! Adequação de linguagem, a-de-qua-ção de linguagem! A linguagem tem de estar adequada às personagens e às situações! Não podes criar uma figura do povo sem asneirada, as pessoas têm horizontes baixos, exprimem a sua materialidade com signos marcados pela moral convencional, decorrente da visão limitada da vida! E às vezes é preciso um palavrão como tratamento de choque, para despertar as consciências! Farta que estou de explicar, Rafael: mais indecentes que os palavrões, são as palavrinhas, quando usadas para seduzir, para ludibriar! (Exemplifica) Não é, Rafaelinho? Queridinho, ele é tão amoroso, o Rafa, tão maneirinho!

LILI – Tão basicozinho, tão menino da mamã…

ENCENADORA – Já devias ter percebido que Gil Vicente dá lições nessa matéria, Rafael! Quando as personagens querem enganar outras, usam palavrinhas, diminutivos… Mentir, usar linguagem hipócrita, sim, isso é que é condenável!

RAFAEL (envergonhado) – A mamã não ia gostar…

CENÓGRAFA (ameaçando-o com o pincel do alto do escadote) - Porra, Rafael, avança com Mestre Gil Vicente, ou nem és homem nem és nada!

RAFAEL – Não consigo, a mamã não ia gostar…

LILI - Este gajo é um anjinho… Fogo, Rafael! Se não usarmos as palavras, as palavrinhas e os palavrões, a língua apodrece na boca e faz-nos cair os dentes!

RAFAEL – Não, a mamã não ia gostar, depois tirava-me a mesada!

LILI – Ah!, fez-se luz! Eureka, está tudo explicado!

MIGUEL – Hi-hi, a mamã tira-lhe a mesada!

 RAFAEL - E para cúmulo estamos na Universidade!

ENCENADORA – Pois estamos, Rafael! Estamos na Universidade, e onde querias tu representar Gil Vicente? Na casa paroquial da tua aldeia, com os putos da catequese? Ai a minha vida, e agora? Nós quase-quase a estrear e não há quem te substitua!

RAFAEL – Desculpe, a mamã não ia gostar…

GRAVELINA – Olha o pandorca! Caem-lhe os parentes à lama por dizer as verdades? Eu digo, eu digo! Carago, a verdadinha é comigo! Qual quer que diga? Ora o merdicas!, digo eu, digo eu! Já chega de inferno, agora o povinho quer é paródia, quer riso! É preciso espantar a desgraça com umas boas gargalhadas, e mandar esses governantes de merda prò Inferno! Eu já não me consigo governar a comprar e a vender, nem trocas já ninguém faz, há que mudar de vida. (Para a encenadora) Dê-me vocemecê trabalho!

ENCENADORA (entrega-lhe uma folha de papel) – Se acha que é capaz…

GRAVELINA – Eu sei ler, o que é que julga? Leio muito bem até, fiz a quarta classe com uma boa professora! (Estuda o papel) Oh, até pareço eu a falar, hi-hi!

ENCENADORA - Dá-lhe a deixa, Miguel. Vamos lá a ver…

MIGUEL - «Ó Inferno! Entra cá!»

GRAVELINA – Eu?! Ir prò inferno? T’arrenego, Satanás! (interpela todos)

«Ò Inferno?... Eramá... Hiu! Hiu!

Barca do cornudo.

Pêro Vinagre, beiçudo,

rachador d'Alverca, huhá!

Sapateiro da Candosa!

Antrecosto de carrapato!

Hiu! Hiu! Caga no sapato,

filho da grande aleivosa!

Tua mulher é tinhosa

e há-de parir um sapo

chantado no guardanapo!

Neto de cagarrinhosa!

Furta cebolas! Hiu! Hiu!

Excomungado nas erguejas!

Burrela, cornudo sejas!

Toma o pão que te caiu!

A mulher que te fugiu

per'a Ilha da Madeira!

Cornudo atá mangueira,

toma o pão que te caiu!

Hiu! Hiu! Lanço-te uma pulha!

Dê-dê! Pica nàquela!

Hump! Hump! Caga na vela!

Hio, cabeça de grulha!

Perna de cigarra velha,

caganita de coelha,

pelourinho da Pampulha!

Mija n'agulha, mija n'agulha!»

RAFAEL (tapa as orelhas) – Basta! Basta!

GRAVELINA (para o Rafael) – O que basta é a miséria em que nos pôs a porcaria do governo! (Respira fundo, orgulhosa, e dirige-se à encenadora) Carago, disse tudo num fôlego! Atão, consegui ou não consegui?

ENCENADORA – Maravilhoso! Quem diria? Esta mulher até parece saída do auto de Gil Vicente! Então quer entrar na peça, Gravelina?

GRAVELINA – Quero, sim senhores! Vá a crise pròs infernos, que eu no Paraíso estou!

 
  DÉCIMA E APOTEÓTICA CENA
 

NA SALA DE ENSAIOS.

Todos os intervenientes. A cenógrafa continua montada no escadote a pintar o céu. Entram os extraterrestres, tímidos, a puxar pela corda uma carreta de tábuas, cheia de luzinhas e de arames no ar, com «Troika de Luz» escrito nos dois lados. A Bel traz o bilhete azul na mão. A cena deve ser quase toda rezada em cantochão e remata com um fandango bem sapateado e bem dançado por todos.

ENCENADORA – Não tinha conhecimento da vossa participação na peça! Isto assim é uma desorganização total, um caos, o Apocalipse! Estamos quase-quase a estrear, e à última hora aparecem-me aqui três anjinhos de asas a abanar?

CENÓGRAFA – Calma, calma, tudo se há de compor!

ENCENADORA – Que hei de eu fazer com eles? E já trazem fatos prontos?! De onde é que vocês vieram?

BEL, KEZABEL e YEKUN (coro) – Caímos do céu! Caímos do céu!

CENÓGRAFA (do alto do escadote) – Já chegou o fim do mundo?

BEL, KEZABEL e YEKUN (coro) – Sim, já chegou o fim do mundo!

TODOS – Já chegou o fim do mundo!

BEL, KEZABEL e YEKUN (coro) – Já chegou o fim do mundo!

ENCENADORA (para a Bel, apontando o bilhete azul) –  Essa mensagem é para nós? O que diz?

BEL – Diz que neste planeta há água, ar, florestas e animais.

ENCENADORA – E então?

BEL  – Então?! No nosso planeta já não há nada disso!

ENCENADORA – E aqui ainda há?

YEKUN – Aqui ainda há, por isso estamos no Céu!

TODOS – Estamos no Céu!

ENCENADORA – E essa «Troika de Luz» é a carreta do futuro?

GRAVELINA – Bonito carro, bonito carro, para que serve?

KEZABEL – A troika? A troika avariou, não serve para nada!

TODOS – A troika não serve para nada! A troika não serve para nada!

ENCENADORA – Isto assim não pode ser, isto assim é um inferno! Ai, ai, ai, temos a peça ameaçada!

TODOS – Ai, ai, ai, temos a peça ameaçada!

ENCENADORA – Bem, caluda! Um minuto de silêncio e vamos ao sapateado final!

TODOS – Vamos ao sapateado final!

KEZABEL (para a Lili, muito delicodoce) – A indígena dança? Está em período fértil? Deseja procriar comigo? (Agarra-se a ela, faz-lhe festas, encosta-se, etc.. Todos cantam e dançam a «Apoteose» com música de fandango).

 

APOTEOSE

Aliviados da riqueza

Cantamos no Céu de tanga

Oh, que grande gentileza

A dos gerais governantes!

Bué! Bué! Bué!

Sem dinheiro pra funerais

Vamos muito mais discretos

Sem massinha pra esponsais

Aprendemos a ser espertos!

Bué! Bué! Bué!

Não temos cama nem mesa

Que bom o frio do inverno!

Dancemos na barca da Glória

Que a outra vá prò Inferno!

Bué! Bué! Bué!

 

FIM

Casa dos Banhos, 3 de novembro de 2012

 

 

© Maria Estela Guedes
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